Em 25 de Setembro
próximo, completa 165 anos da morte do famoso bandido Lucas da Feira, razão
pela qual resolvi trazer para deleite e reflexão dos amigos, algumas
considerações sobre este importante personagem da história do banditismo
nordestino, as quais extraí do excelente livro - “A Pena de Morte em Sergipe”,
do historiador sergipano, Pedrinho dos Santos.
“LUCAS, O
ESCRAVO SALTEADOR”
Os vários
escritores que até os dias de hoje se têm preocupado com a história do
salteador baiano, Lucas da Feira, acabam sempre por defini-lo como o mais
temível de todos os bandidos do Brasil.
Filho dos escravos Inácio e Maria, Lucas Evangelista nasceu 1804, na fazenda
Saco do Limão, de propriedade da fazendeira Antônia, na vila da Feira de
Santana, na província da Bahia.
Com a morte dessa rica proprietária, Lucas, ainda menino, passou para o domínio
do padre João Alves Franco, senhor de escravos, um dos principais herdeiros da
falecida Antônia.
Em 1819, com o corpo já constituído para o trabalho, Lucas foi apresentado pelo
padre Franco a um amigo carpinteiro, a fim de que o menino se tornasse mestre
naquele ofício e, assim, pudesse ganhar a vida de modo honesto, fazendo serviço
decente e lucrativo.
Não demorou muito tempo para o padre Franco cair na real. Lucas não queria nada
com o trabalho. Fugia da oficina a todo instante. Batia nos colegas aprendizes.
Brigava com os companheiros e ameaçava se medir com os mestres da oficina de
trabalho.
Continuadamente o padre tentava consertar o menino sob a inspiração da palavra
cristã. Não havia jeito para os conselhos surtirem o efeito desejado. Parecia a
luta do bem contra o mal. Às vezes, quando chamado pelo padre para uma conversa
tête-à-tête, cara a cara, o menino dava as costas, saía pelo outro lado da casa
deixando o padre sozinho, a falar com as paredes. E não foram poucas as vezes
que o sacerdote teve de almoçar lagartixa, calango, lagarto, minhoca, pata de
cachorro, rato caseiro e outros bichos atirados na fervura da panela, pela mão
maldosa de Lucas.
Vítima de tanta maldade e já cansado das mil diabruras do menino, o padre pediu
ao delegado a prisão do seu escravo menor.
Negro sagaz, Lucas arrombou a porta da prisão e, em liberdade, deu umas boas
bordoadas na escrava empregada do padre Franco e sumiu no mato, passando a
viver por muito tempo escondido, comendo o que podia achar ao alcance das mãos.
Depois, premido pela necessidade de estar sempre saindo de um lugar para outro,
fugindo da caça dos feitores, passou a assaltar as pessoas que iam fazer
compras na feira da vila de Santana.
Como esses assaltos acabavam geralmente numa briga corporal, em virtude sempre
da resistência do assaltado, Lucas passou a matar suas vítimas a facadas ou a
pauladas e, assim, a formar um rosário de crimes. Com a sucessão desses crimes,
alguns narrados de forma horrorosa e sinistra, pouco tempo depois, o nome de
Lucas repercutiu tenebroso por todos os cantos da província da Bahia e se
estendeu por algumas regiões do norte do país como Sergipe, Alagoas e
Pernambuco.
Sendo procurado pela polícia baiana que desejava levá-lo à forca, Lucas
procurou esconder-se num dos vários quilombos do território da Bahia. Célebre e
temido, cedo se tornou chefe quilombola com escravos a seu dispor, para
assaltar e assassinar aos que o resistissem.
Constantemente perseguido, com os caminhos vigiados e boa parte dos comparsas
em debandada, com receio de uma matança policial, Lucas passou a proteger-se
nos lugares de difícil acesso, fato que lhe dificultava nos assaltos tão
necessários ao viver daqueles que, indiferentes ao perigo que corriam,
continuavam em sua companhia.
Para fugir do cerco policial e ser esquecido da memória dos moradores da Feira
de Santana, Cachoeira, Pedra do Descanso, Catumby, Jacuípe, Santo Antonio,
Lagoa Salgada, São José, Registro, Canavieiras, Lagoa do Furno e São Vicente,
localidades por andava “aprontando”, Lucas embrenhou-se pelo fechado das matas
do norte da Bahia, atingindo em sua fuga desesperada, as terras do limite sul
da vizinha província de Sergipe, aonde praticou um dos seus principais atos de
violência contra um senhor de engenho acusado de ter estuprado, em sua
propriedade, uma negra liberta vendedora de cigarro e de rapé, da vila de
Lagarto, fato ocorrido entre os anos de 1844 e 1845, conforme Manoel Pedreiro,
natural da mesma Feira de Santana que, em fins da década de 1950, sentado na
calçada de sua residência, contava para os estudantes a história de Lucas e de
outros facínoras da Bahia.
Com a repercussão do acontecimento, consequência lutuosa daquele evento,
senhores de engenho, proprietários rurais e capitalistas, formaram uma escolta
particular – “uma liga criminosa” -, constituída pelos soldados das delegacias
da região, por escravos, capitães do mato, índios viciados da tribo de Água
Azeda e por jovens ociosos, maconheiros e desocupados, para finalizar as vidas
de Lucas da Feira (...) e trazer de volta, amarrados como uma corda de
caranguejo, todos os escravos fugidos da região sul da província.
Pressionado por essas manobras que visavam matá-lo a qualquer custo e,
consciente, sobretudo, que o tempo de sua estada nos limites de Sergipe já se
fazia suficiente para o esquecerem na Feira de Santana, pôs fogo em todos os
casebres do quilombo e cavalgou de volta ao rincão natal, onde deixara, sob
encomenda, pouco mais de uma dezena de crimes para fazer.
Coitado do Lucas! Iludido, logo percebeu que o seu nome não estava esquecido da
memória do povo. Pelo contrário. Construíram em torno dele uma auréola de
histórias e um volumoso compêndio de anedotas e maldições. Pelas ruas, sítios e
os mais distantes logradouros, já andavam cantadores e violeiros, em duplas,
lembrando o perfil criminoso do salteador. Diziam verdades e mentiras, coisas
estapafúrdias. A Lucas atribuíam todos os crimes, todos os roubos e furtos.
Todos os estupros. Todos os pecados do mundo. A ele dirigiam os grandes e
pequenos males. Todos os desastres ocorridos no quadrado da Bahia eram
atribuídos a Lucas. Comentavam, inclusive, que ele praticara para mais de 150
assassinatos e um montão de defloramentos.
Ante esses comentários que tomavam a atenção e metiam medo, Lucas procurou
proteção ocultando-se do olhar das ruas, indo ocupar o interior das matas, para
se livrar da polícia e executar assaltos nas estradas de Tanquinho, Capoeiruçu,
São José de Itapororocas, Riachão do Jacuípe, Santa Bárbara dos Humildes,
Oliveira dos Capuchinhos, Santo Amaro e outras localidades.
Astuto nas estradas de leito arenoso, onde os passos não podiam ser ouvidos,
Lucas criou um primitivo sistema de alarme, que consistia em cipós
ardilosamente camuflados, em cujas extremidades ele pendurava chocalhos tirados
dos animais. Assim, quando o descuidado tocava num daqueles cipós, Lucas saía
da toca para assaltar sua presa. Para saber a direção que o viajante tomava, se
andava para Feira de Santana ou dela estava se retirando, Lucas inventou outro
sistema rústico de aviso, com gravetos escondidos e bem armados sob a areia.
Assim que os assaltos se tornavam sucessivos, com o cometimento de atrocidades,
a polícia empreendia novas e vigorosas diligências. Proprietários agrícolas e
donos de engenhos reuniam-se nessas ocasiões a dezenas de escravos e a
voluntários que, armados para combater o procurado, saíam à procura de Lucas
por todos os recantos da Bahia.
Várias foram as investidas para prender ou matar o facínora. Às vezes,
conseguiam prender um ou outro escravo fugido dos engenhos. Aí, então, para
disfarçar os tantos insucessos daquelas diligências, saíam com o preso à frente
da escolta, anunciando pelas ruas tratar-se de um perigoso elemento da
quadrilha de Lucas da Feira.
É certo afirmar, porém, que em duas ou três dessas investidas, as escoltas
conseguiram prender dois dos temíveis componentes da quadrilha do salteador:
Floriano e Januário, que após sumário julgamento foram levados à forca. Numa
outra oportunidade, o salteador Nicolau e uma negra escrava, ambos do mesmo,
após bando, foram presos quando tentavam assaltar algumas pessoas. O povo
“morrendo de raiva”, após guilhotinar o escravo Nicolau, saiu arrastando o
corpo sem cabeça pelas ruas do vilarejo, anunciando o prazer da justiça feita
com as próprias mãos.
Assim, depois de horas e horas de exibição do tronco sendo arrastado pelas
pernas e braços, de discursos e palavras de louvação aos reclames da justiça, o
corpo de Nicolau, pendurado num pau, foi atirado a labaredas que crepitavam de
uma fogueira armada logo depois da prisão do negro quilombola.
Prêmios e mais prêmios eram oferecidos a que desse a menor informação sobre o
paradeiro de Lucas ou o capturasse em qualquer lugar. Avisos, boletins e
proclamações eram afixados nos lugares públicos da velha província. Nada se
conseguia. Um chefe de polícia, Francisco Gonçalves Martins, cercado e cobrado
pela população intranqüila, chegou a oferecer a importância de quatro contos de
réis, para quem se aventurasse a prender e levar o salteador à prisão da
capital.
Certo dia, porém, um negro assassino de nome Cazumbá, preso na cadeia pública
da Bahia, ao saber desses “oferecimentos” e da vantajosa oportunidade que se
oferecia para ele, apresentou-se para caçar Lucas da Feira, exigindo, em
contrapartida, ser dispensado do restante da pena que cumpria e receber,
também, a premiação do governo provincial.
Firmado o acordo entre governo e o bandido, este constitui sua “empresa de
facínoras” para cair no mato à procura de uma pegada, de uma pista que o
levasse diretamente ao covil do colega celerado. Não se tem o número exato dos
dias e nem a soma do dinheiro público gastos para efetuar a caçada ao
facinoroso Lucas da Feira. Sabe-se, porém, que durante vários dias e longas noites,
Cazumbá “atravessava cidades, estradas poeirentas, subia e descia morros,
transpunha campos e chapadões, até que, numa segunda-feira, 24 de janeiro de
1848, à tarde, avistou a fera num lugar chamado Pedra do Descanso”.
Desguarnecido de suas armas e mais intimamente de sua proteção espiritual
(...), Lucas, que acabara de tirar uma pestana, foi atingido por um dos tiros
disparados por Cazumbá e sua gente.
Mesmo gravemente ferido, conseguiu correr e manter-se vivo. Cazumbá não quis
perseguir o fugitivo por dentro do mato. Achou perigoso e, prudentemente,
decidiu voltar para organizar uma nova caçada, com mais gente e mais armas de
fogo.
Dias depois, encontrado dentro de uma grota com uma mulher que cuidava do seu
ferimento, sem nenhuma força física para resistir a um grande confronto com
homens armados, Lucas, após ser novamente ferido por uma bala, caiu sentado aos
pés dos caçadores. Foi conservado vivo porque necessitavam que ele mesmo
declarasse ser o real criminoso, o temível escravo procurado pela polícia.
Transportado numa rede até Feira de Santana, a prisão de Lucas foi festejada na
Bahia inteira. Por onde a escolta passava conduzindo o preso, os sinos das
igrejas repicavam em regozijo e muito louvor, foguetes subiam aos céus e, em
algumas cidades, organizavam-se bailes comemorativos e outras festas que
atravessaram as madrugadas da Bahia.
Recolhido à cadeia pública de Feira de Santana, com o braço já amputado, Lucas
foi enforcado no Campo do Gado na manhã do dia 25 de setembro de 1849, aos 45
anos de idade.
Depois da execução, como é de costume do povo brasileiro, o imaginário começou
a trabalhar o seu fabulário, com a narração de estórias, declamação de versos
poéticos, exacerbação do preconceito racial por parte dos intérpretes da
sociologia burguesa, publicação massificada de cordéis e o tocar de violeiros
em desafios nos espaços das ruas e logradouros públicos da Feira de Santana. No
meio rural e nos cafundós, o povão saiu a afirmar que Lucas jamais roubou para
si, mas para os pobres; e que só matava a quem o ofendia ou quando caçado, em
defesa da própria vida. Portanto, Lucas era uma justiceira, roubando dos ricos
para oferecer aos pobres. Ou como bem analisou Jackson da Silva Lima, um dos
mais respeitáveis estudiosos da cultura popular do Brasil. Para uns, Lucas da
Feira não passou de um bandido desprovido de alma, autor de crimes que
estarreceram o país. Para outros, porém, “uma espécie de Hobin Hood, paladino e
vingador dos humildes...”
Para Thomé de Moura, Lucas, além das mãos que o denunciavam como assassino, era
de tamanho médio, cabelos carapinhos, olhos malaio, que nascera assassino,
tendo nos pulmões “o ar mefítico das senzalas, onde, em tão larga escala, se
desenrolavam os tristíssimos quadros da escravidão”.
É certo que o estudo deste escritor é visceralmente preconceituoso e nele
reflete, sobretudo, as teses nefastas da superioridade racial que,
infelizmente, encontraram adeptos naquele instante da história do Brasil.
Portanto, para Thomé de Moura, Lucas, por ser negro e escravo, era uma espécie
muito feia. Além dessa fealdade, sustentava aquele autor, Lucas carregava com
ele o pior de todos os defeitos: a ferocidade de um cruel assassino, portador
“de uma ignorância profunda, um verdadeiro monstro saído dos antros da
escravidão, e, portanto, um exemplar aperfeiçoado dessa classe de gente que não
tem senso moral e para quem não existe o que é belo, sublime e santo”.
A vida de Lucas da Feira teve fim com a corda esticada no pescoço, no Campo do
Gado. Talvez não fosse ele um criminoso sanguinário. Há, em alguns momentos de
sua vida, pegadas de sentimento e de retribuição. Tinha, como bem afirmou
Serafim Franca, a armadura de um vingador. Revoltou-se contra o maldito
instituto da escravidão, contra as iniquidades, contra os inclementes castigos
impostos à raça negra, aos seus irmãos e irmã martirizados nas senzalas,
caçados nas matas para a representação do ato maior da justiça burguesa e
parcial do Brasil: a execução de negros escravos.
Obs.: Das notas de pé de página, transcrevo apenas esta: “Não encontramos nos
arquivos da Bahia e de Sergipe, um só documento que atestasse a presença do
salteador Lucas da Feira na província de Sergipe. Há, tão somente, ofícios
expedidos pelo presidente da província da Bahia rogando que se intensificassem
as investigações para identificar a presença do salteador em terras
sergipanas.”
Imagens: Capas
do Livro e retrato imaginário de Lucas da Feira, da iconografia apresentada.
Fonte: facebook
http://blogdomendesemendes.blogspot.com