Por Rangel Alves
da Costa*
Beraldo, o
jagunço, tentava a todo custo esconder uma lágrima teimosa. Mastigou e depois
engoliu o toco do cigarro de palha, levantou a mão grossa e suja de terra e
pólvora até os olhos, deu uma cusparada e levantou do tronco de pau.
Estivera
sentado por mais de uma hora, na malhada de casa, debaixo de uma quixabeira.
Ali o seu confessionário, o local onde procurava se reconhecer como gente,
conversar consigo mesmo, se atormentar de doer no juízo. Mas sempre tendo de
lado seu instrumento de trabalho para o caso de investida do inimigo. E eram
muitos, sabia.
Mas talvez nem
tivesse sequer um só inimigo. Matava de emboscada, de tocaia, de traição,
atirando de dentro das moitas ou dos tufos fechados na mataria, de modo que
ninguém podia reconhecer o rosto de quem atirava, do jagunço.
Os inimigos
estavam na mente. Mesmo sua consciência rude e brutal não o fazia desconhecido
das tantas maldades praticadas, das tantas vidas tiradas nas curvas das
estradas e veredas sertanejas. Por isso mesmo que suas vítimas permaneciam como
fantasmas atormentando.
Levantou,
olhou de canto a outro, ergueu suas mãos em direção ao sol e avistou os
próprios dedos como inimigos. Por causa daquelas mãos e daqueles dedos havia
feito tanta maldade, praticado crueldades indescritíveis. A mão levantava a
arma, ajeitava, fazia deitar no braço, na mira do olho, para depois os dedos
cuidarem de fazer o resto. Bastava um tiro só, no meio da testa.
Quantos já
havia matado, dez, vinte, cinquenta? Agora não importava a quantidade de
vítimas, o número de pessoas, até mesmo inocentes, que rolaram ensanguentadas
após seu tiro certeiro. Bastaria um, um só homem derrubado para ser assassino
do mesmo jeito, principalmente pela covardia da tocaia, quando não se dá nenhum
direito de defesa ao outro.
Era jagunço,
matador, perigoso, bandido sertanejo, sabia disso. Desde o primeiro que
derrubou até aquele morto ainda naquela manhã, jamais conheceu a motivação de
ter de fazer assim, de tocaiar, esperar, atirar e derrubar. Jamais perguntou ao
mandante, ao coronel seu patrão, a justificativa dessa ou daquela morte.
Recebia a ordem de matar e cumpria, apenas isso.
O coronel seu
patrão era quem ordenava, quem dizia quem e quando deveria morrer. A culpa
pelas mortes era do seu patrão? Não, de jeito nenhum. O patrão tinha seus
motivos, suas inimizades, seus desafetos e interesses, mas quem puxava o
gatilho era ele, o jagunço. Então a culpa era sua.
E várias
culpas. Como é que se leva uma vida inteira matando gente sem ganhar o suficiente
nem pra manter uma família? Como é que ficava horas, o dia inteiro e até dias
esperando alguém para matar e sequer sabia o que tinha feito para merecer tal
destino? Como é que não havia abandonado aquela vida terrível desde muito
tempo?
Então a culpa
era sua. Já envelhecido, com sangue na alma, no corpo, nas mãos, em todo lugar,
não havia riacho de água benta que lavasse tanta impureza num homem só. Não
conseguia dormir ouvindo seus próprios tiros, não fechava os olhos para não
surgirem aqueles mortos sobre a terra espinhenta. E também já não suportava ter
serventia apenas como matador.
Culpa sua ou
daquelas mãos, daqueles braços, do seu olho que mirava para apertar o gatilho?
Tanto fazia, pois tudo do seu corpo sujo, imundo, corrompido, cruel assassino.
E o que fazer depois que o seu patrão lhe mandasse embora com um pé na frente e
outro atrás? Nada.
Já estava
velho demais, precisava viver, mas viver qual vida, se a seu lado só apareciam
aqueles fantasmas terríveis? Não, não ia apontar a arma para própria cabeça e
apontar. Tinha que pagar o pecado no sofrimento, e aqui mesmo na terra. Mas não
ia ser mais jagunço, havia decido.
Mas não podia
deixar de ser jagunço. Aquela era sua vida, sua sina. Então chorou de soluçar.
Depois subiu no cavalo e rumou em direção à fazenda do patrão. Tinha de prestar
contas da última tocaia. Por isso mesmo levava as orelhas do morto no bolso.
No meio do
caminho resolveu voltar. Voltou e sentou no mesmo tronco para esperar o que
certamente aconteceria. Seu patrão mandaria outros jagunços no seu encalço para
saber do resultado. Então entregaria as orelhas do morto e daria por realizado
o seu trabalho. O último.
Mas ninguém
apareceu. No dia seguinte e ele continuava lá, sentado, com a face crispada,
olhos sem cor, mastigando uma das orelhas. Estava louco. E assim morreu,
engasgado com a outra orelha.
Poeta e
cronista
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