Por Rogério Alcoforado
Eu estava
desde às 8h da manhã, em mais um dia de luta pelo que acredito – pela educação,
dignidade, respeito – e acabava de chegar em casa depois de uma das
experiências mais revoltantes que já vivenciei. Era 20h do dia 24 de novembro
de 2017. Estávamos em greve há 14 dias.
Não bastasse o
desrespeito de um governo que drena o dinheiro público, elegendo em quê
gastá-lo, notadamente, em cargos comissionados (que frequentemente são alvos de
escândalos de corrupção) e priorizando o pagamento de benefícios e auxílios
vergonhosos para setores do executivo, legislativo e judiciário (que, apesar de
legais, são imorais); não bastasse a indiferença frente a situação de milhares
de pessoas que estão sem receber seus salários vencidos, em uma demanda
humilhante; ainda assim, e com a maior virulência, insensibilidade e
desrespeito o governo do RN solicitou e endossou uma ação repleta de
violência, abuso, insanidade e deslealdade.
Foi
terrível!!! Eu estava lá e presenciei tudo. Pessoas pacificamente protestando
(não por aumento ou outra coisa qualquer) apenas pelo recebimento de seus
salários… Ali presentes membros da saúde e membros da educação associados em um
único pleito (o recebimento de salários vencidos); contávamos com o apoio de
representes da OAB, membros do grupo “juristas pela democracia”, membros de
movimentos sociais, membro da Câmara de vereadores da cidade do Natal, membro
da Câmara dos deputados do RN, imprensa em peso, professores, técnicos das duas
categorias, alunos, pessoas da sociedade em geral – jovens, idosos, famílias;
todos fomos expulsos, por policiais que se utilizaram de todo tipo de
artifício: bombas de gás lacrimogêneo, de efeito moral, spray de pimenta,
cassetetes…
Uma força
policial que cumpria ordens. Os mesmos policiais que a pouco mais de 15 dias
lutavam pelo recebimento de seus salários e ameaçavam entrar em greve também.
Eles apenas cumpriam ordens, é verdade; mas, paradoxalmente, empatia não houve,
nem há nessas situações – lamentavelmente!!! A culpa é do Governador Robinson
Faria, sem dúvidas; nos tratando, trabalhadores, como bandidos.
Tudo aconteceu
dentro de uma repartição pública, à noite, com cidadãos acuados… O pior,
certamente, poderia ter acontecido… A repartição fica suspensa e tem uma rampa
de acesso frontal de pouca proteção… Houve pânico… O pior poderia ter ocorrido…
Os policiais vieram de dentro do prédio (acesso por portas internas)… Lá dentro
um grande grupo – eu via senhores, senhoras, jovens… Todos acuados… Não se
esperava por aquilo (não daquela forma)… O pior poderia ter acontecido… Fomos
varridos, subjugados e expulsos pelo governo do estado do RN, que se negava (e
ainda se nega) a dizer quando serão pagos os salários de nós trabalhadores,
quando receberemos pelo serviço que desenvolvemos.
Estamos em uma
greve pelo mínimo, uma greve por dignidade, uma greve para que possamos apenas
receber nossos salários.
Sou professor do curso de Direito do campus de Natal, da Universidade do Estado
do Rio Grande do Norte – UERN – desde 2008. Nesses nove anos passei por muitas
experiências, não muito diferentes das que todos que se propõem ao caminho da
docência se deparam no seu cotidiano; e, no caso de uma universidade estadual,
em um estado pequeno como o nosso, mais desafios, obstáculos e dificuldades que
conquistas.
Enquanto
docente, só para ilustrar, posso enumerar algumas atividades que permeiam meu
cotidiano, no exercício de minha profissão: um conjunto contínuo de ações de
ensino, pesquisa e extensão. Tais atividades, além das aulas regularmente
preparadas e ministradas, envolvem desde a elaboração de planos de trabalhos,
suas instrumentalizações e desenvolvimentos, passando pela coleta de resultados
e elaboração de relatórios (principalmente nos níveis de extensão e pesquisa);
confecção e correção de avaliações; organização de eventos; participação em
bancas de trabalhos de conclusão de curso de graduação, especialização,
mestrado e doutorado; apresentação de trabalhos e comunicação em seminários,
encontros, congressos; elaboração de artigos, publicação deles e de livros;
orientação de alunos, etc).
Além disso, a
vida acadêmica, que escolhi por vocação, ainda me exige a atualização constante
de meu repertório técnico-científico, estudos constantes, o que me levou aos
desafiadores concursos para ingresso em mestrado (antes mesmo de começar a
ministrar aulas) e doutorado, com seus compromissos, prazos e cobranças, de
forma que eu pudesse continuar minha qualificação.
É, pois, com
uma sensação confusa, que desorienta meu coração, meus pensamentos e minhas
ações, que me encontro enquanto servidor da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte. O que nos atinge vai desde a perda do básico (atraso no
recebimento de salários vencidos), passa por nossa diminuição, enquanto
indivíduos desprestigiados e violados em nossas condições de vida (através de
cinismo, violência e desprezo lançados por um Governo intransigente, que não
oferece soluções práticas e concretas), pela desvalia da força real de nosso
trabalho (nossa categoria que, dentre outras questões, não tem sequer reposição
salarial há 5 anos), além de outras, que poderiam preencher uma lista enorme –
e sintomática – contra o que se poderia chamar de “dignidade”; mais
precisamente, da desconstrução do significado profundo dessa palavra.
O sintoma,
nesse caso, é uma espécie de registro dual e confuso, como as próprias questões
que o desencadeia: registro de sofrimento e registro de
resistência.
Por quê “greve
por dignidade”?
Não há dúvidas
de que a “educação” pública como um todo sofre ataques coordenados e muito bem
sistematizados. Não há dúvidas…, não mais!!! Em um País, onde sua
democracia se fragiliza, por reação em cadeia, toda a estrutura de direitos e
garantias fica sob risco, esgarçada em sua trama constitutiva.
Apesar de não
ser esse o ponto central de que tratamos aqui, não há como não ter em mente, de
forma lúcida e triste, a compreensão de que tais fatos recentes em nossa
República são determinantes para o cenário de ataques à educação e às múltiplas
tentativas de imprimir uma desconstrução da noção de dignidade, tão cara e tão
valorosa ao nosso mundo do trabalho/trabalhador.
No recorte do
nosso estado do RN, a questão mostra-se crítica e nos gera grande revolta; não
bastasse os possíveis casos de corrupção, amplamente divulgados na mídia e
investigados no âmbito do judiciário, a má gestão (se comparada à estados
vizinhos como Paraíba e Ceará, onde a situação difere) é paradigmática e sem
precedentes. Ouvimos relatos, repetidamente nos encontros e nas ações do
movimento grevista, até mesmo dos aposentados, de que nunca haviam passado por
uma situação tão crítica como a atual. Nós, certamente, em nossos 9 anos de
UERN nunca havíamos visto e passado por isso.
É nesse
contexto que se estabelece a atual greve na UERN; uma greve que traz o selo
de #GrevePorDignidade e #EmDefesaDaUERN não por acaso. É
esse selo, como se disse acima, uma representação da condição dual que nos
envolve: sofrimento e resistência – uma greve que busca o mínimo, apenas o
direito de recebermos nossos salários em dia e que seja apresentado um cronograma
sério, claro e bem estruturado dos pagamentos futuros. Nossa greve é uma greve
para receber salário, APENAS!!!
A Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte é um patrimônio do RN; está espalhada em teia
por todo o estado; conta com o campus central, mais 05 (cinco) campis e vários
núcleos de ensino; entre professores e técnicos (segundo dados de nossa página
oficial na internet, em 2015)[2] contabiliza-se
em torno de 2.000 (dois mil) servidores; mais de 12.000 (doze mil alunos) em
cursos, sendo mais de 61.000 candidatos inscritos para concorrer a mais de
1.200 vagas anuais (registros de 2015); e esses números atualmente já são maiores.
A nossa IES tem papel decisivo na formação de professores por todo o estado
através do Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica –
PARFOR – consolidado; e, dentre outros dados importantes, apresenta o curso de
Direito com classificação entre os 10 (dez) melhores cursos de Direito do País
em aprovação na OAB.
Na contramão
da valorização de uma instituição de educação superior pública tão importante,
relevante e expressiva, é revoltante a forma como tudo vem sendo conduzido por
parte do governo do RN. Nós, servidores da UERN, acabamos de receber os
salários de outubro no último dia 08/12. Os atrasos já se repetem por 23 meses.
Importante
salientar que a saúde do estado passa pelos mesmos problemas no tocante ao
atraso dos pagamentos, e também estão em greve. Foram e são nossos parceiros na
luta, e passaram pela violência do último dia 24 juntamente conosco. Foi
através de uma junção de forças, desde o início, entre os sindicatos da UERN
(ADUERN) e da saúde (Sindsaúde-RN), que o nosso sofrimento veio se
ressignificando em resistência.
Foram feitas
ações sistemáticas desde a deflagração da greve no dia 10/11, que podem ser
entendidas de forma simplificada a partir da seguinte cronologia:
No dia 13/11,
depois de tentarmos ocupar a Governadoria do RN, fomos agredidos com spray de
pimenta, o que gerou a motivação para um acampamento na lateral do prédio da
própria Governadoria, de forma a criar um apelo para a negociação.
Passados 9
dias de acampamento, no dia 22/11, seguindo-se à continuidade do descaso e ao
fracasso da reunião com representantes do governo, no mesmo dia, que não
apresentaram nenhuma proposta, decidimos ocupar o prédio da SEPLAN (Secretaria
de Planejamento e Finanças do RN) – passamos não mais que 48h, pois – foi nesse
local onde se deu o momento mais dramático e que resultou nos eventos narrados
no início desse texto, a nossa expulsão do prédio no dia 24/11.
Irredutível e
insensível o governo estava e assim continuou. Além de atos sistemáticos de
clamor, que continuam, para que se solucione a situação da falta de pagamento
dos nossos salários, no último dia 04/12 ocupamos a antessala da presidência da
Assembleia Legislativa do RN (Alern), com pedidos de intermediação dessa
instância no problema. Do que saímos com a promessa de uma nova reunião com o
Governador, que ainda não ocorreu.
Nesse
turbilhão de acontecimentos e de lutas continuadas, o episódio de desocupação
forçada da SEPLAN ficará gravado na memória e nos corações de quem lá estava
naquela triste noite de 24 de novembro, desse ano. Como dissemos, estávamos lá
e fomos tratados como “bandidos”.
A nossa luta
continuou após aquele episódio e continuará… Resistência é a síntese de um
registro de dor, que, quando interiorizado e elaborado em consciência,
transmuta o sofrimento; por isso, o movimento grevista e a educação pública
grita: RESISTIREMOS!!!
Diante de tudo
que se apresenta, no meio de sofrimento e resistência, de desejos difusos de
uma #GreveGeral que una o País e também diante de um horizonte muito
nebuloso, nos resta também invariavelmente uma agonia interna já cantada
outrora em poesia e aqui apresento revisitada em uma espécie de paráfrase:
“O que será
que será?” que andam costurando os governantes?, que emerge em suas ideias mais
delirantes?, que habita suas mentes mais degradantes?, que se retorce em seus
corações repugnantes?
“O que será
que será?”:
Do Povo, da
Dignidade, da Educação?…
P.S. – O nosso
movimento grevista (dos servidores da UERN, juntamente com os da Saúde do RN)
continua sem expectativa concreta de atendimento do pleito de recebimento de
salários. No último dia 18/12, depois de muitas tentativas e apelos, as
lideranças tiveram uma reunião com o Governador do RN, Robinson Faria; ele e
sua equipe, mais uma vez, não apresentaram medidas concretas que apontem para
uma melhoria da gestão ou medidas de contingenciamento que possam garantir uma
capacidade financeira para pagar os servidores. Distante disso, condicionou o
pagamento dos salários (novembro, dezembro e 13º) a um possível empréstimo
junto ao Governo Federal – o que, na prática, não garantiria a solução do problema
de forma razoável e equilibrada, muito menos uma agenda de programação dos
futuros pagamentos em dia, pois se trataria de empréstimo e não de receita
própria, que poderia efetivamente representar um equilíbrio financeiro.
Ademais, a PM do RN também parou por atraso no salário no último dia 19/12; e a
situação do nosso Estado do Rio Grande do Norte torna-se mais crítica ainda.
Diante de tudo isso, nós da UERN continuamos em greve por dignidade; e, assim
como tem ocorrido desde o dia 10/11, como o início dessa greve, temos feito
atos contínuos e constantes – A LUTA CONTINUA!!!
[1] Professor do
Departamento de Direito da UERN Natal/RN. Doutor em Filosofia e Autor dos
livros: “Ética racional” e “Uma breve história dos direitos fundamentais”.
*Rogério
Alcoforado é professor do curso de Direito (Campus de Natal), da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
Enviado
pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzagueano José Romero de
Araújo Cardoso
http://blogdomendesemendes.blogspot.com