Virgulino
Ferreira (1898-1938) foi uma figura de muitas facetas: amansador de cavalos,
almocreve, artesão de couro, sanfoneiro, vaqueiro, estrategista, enfermeiro,
costureiro, sacerdote do bando, cantor. A estes múltiplos predicados
(focalizados pelos estudiosos), faz-se preciso acrescentar uma outra face do
cangaceiro: a de poeta ou versejador.
Essa
habilidade do bandoleiro é notificada por algumas fontes. Uma delas, o
folclorista Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), assegura que Lampião “fazia
versos”.
O vezo poético
do cangaceiro também é registrado por Optato Gueiros (1894-1957), oficial das
forças volantes, implacável perseguidor de Lampião. Ele informa que, desde
cedo, aos 13 anos, Virgulino Ferreira já “tirava versos”. Adulto, no cangaço,
continuou tocador de sanfona e versejador, poeta. Diz Optato Gueiros: “Nas
horas de lazer Lampião escrevia versos que também cantava acompanhado com a sua
sanfona.”
Do estro
poético de Lampião ainda dá notícia a professora Aglaé Lima de Oliveira,
estudiosa do cangaceiro por mais de vinte anos. Diz ela que, já na
adolescência, Virgulino namorava as musas, “tocava sanfona... organizava
repentes, era poeta, dedilhava a viola, compunha versos”.
O legado
poético de Lampião ainda não foi reunido. O material conhecido é formado de
quatro textos. Dois deles foram colhidos e editados pelo major Optato Gueiros.
Os dois outros, pelo coronel Filipe de Castro (? – 1981) Os quatro poemas não
possuem títulos. Podemos chamá-los pelos seus versos iniciais: “Leitores sendo
possível...”, “Para minha infelicidade...” (editados por Optato Gueiros) e “Não
sei cuma te compare...” e “Dos combati o mais forte...” (editados por Filipe de
Castro).
Consideremos o
conteúdo de uma dessas poesias. Vejamos, mais de perto, o estro do cangaceiro.
“Para minha
infelicidade...” é uma autobiografia de Lampião em nove estrofes de seis
versos. Nela, o bandoleiro fala da infância e adolescência, das primeiras
ocupações, do primeiro amor, da sua condição atual, da sua coragem e
habilidades, da expectativa da morte.
O poema, nas
cinco estrofes iniciais, narra a vida de Lampião antes do ingresso no cangaço.
As quatro estrofes finais contrapõem o “ontem” luminoso à condição atual vivida
pelo cangaceiro.
Na primeira
estrofe do poema, Lampião lastima a sua condição de cangaceiro, de fora da lei.
Diz: “Para minha infelicidade/entrei nesta triste vida.” O cangaço é, como se
vê, “infelicidade” e “tristeza”, no dizer do cangaceiro. Ressoa aqui a ideia de
sina: o ingresso no banditismo como uma fatalidade imposta pelo destino, pela
imperiosa necessidade de vingança.
Prosseguindo o
relato (2ª estrofe), Virgulino diz que, ao lembrar da infância, seu coração
“bate e chora” amargamente.
Os
ensinamentos recebidos do pai e da mãe são relembrados por Lampião (3ª e 4ª
estrofes do poema). Da mãe ele diz ter recebido carinho e ensino religioso: “me
ensinou a rezar”. Também com ela Virgulino aprendeu “a todos muito respeitar”.
Já o pai lhe ensinou a trabalhar no campo. De fato, conforme os biógrafos,
Lampião exerceu trabalhos agrícolas, pecuários e comerciais na infância e
adolescência.
Na 4ª estrofe,
Lampião relembra os seus propósitos na infância: “quis ser um homem de bem/
viver dos meus trabalhos/ sem ser pesado a ninguém.” Note-se, nesses versos, a
ética do auto sustento através do trabalho pessoal. Ecoa nesse passo um traço
da mentalidade sertaneja na qual Virgulino foi formado.
Ainda neste
passo, Lampião recorda um ofício por ele exercido antes do ingresso no cangaço:
“fui almocreve na estrada”. Isto é, foi transportador de mercadorias no lombo
de animais de carga. A menção não é invenção do bandoleiro. Foi ele almocreve
antes de se tornar cangaceiro. O fato é atestado por seus biógrafos e alguns
testemunhos de época, gente que o conheceu antes dele ter abraçado a vida de
cangaceiro. Vale ainda lembrar, que almocreve foi ofício muito comum antes do
predomínio do transporte rodoviário, na segunda metade do século XX. Antes dos
caminhões, as mercadorias, no sertão, eram transportadas no lombo das
alimárias. Foi a era dos tropeiros ou almocreves.
O coronel
Filipe de Castro noticia que Virgulino, antes de ser Lampião, foi almocreve.
Informa o militar baiano: “Aos 17 anos mais ou menos [Virgulino] saiu para
ganhar a vida e foi trabalhar como almocreve, transportando couros de Uauá-Ba
para Pedra (Delmiro Gouveia-Al)”. Não foi longa a carreira de Virgulino como
almocreve. Com 22 anos, larga esse ofício e ingressa no bando de Sinhô Pereira.
No poema aqui
considerado também há lugar para Lampião revelar um episódio amoroso da
adolescência: “Tive também meus amores”. Valendo-se de uma batida metáfora,
escreve: “Amei uma flor mimosa/filha lá do meu sertão.” O poeta ainda ressalta
o seu propósito, à época, casar com a flor mimosa: “Sonhei de gozar a vida/bem
junto a prenda querida/ a quem dei meu coração”. Sobre este amor juvenil de
Virgulino temos notícia circunstanciada fornecida pela sua biógrafa-mor, a já
citada professora Aglaé Lima de Oliveira. Num capítulo intitulado “Lampião
Apaixonado” a autora menciona o namoro de Virgulino com Rosa, uma morena da
Ribeira. Ele a conheceu na igreja de Ribeira durante uma festa de encerramento
do mês de Maria. A paixão foi imediata. À época, Virgulino tinha 19 anos e Rosa
16. O namoro não evoluiu, mas Virgulino conservou a lembrança do seu primeiro
amor.
Depois de
evocar esta fase feliz da sua vida, Lampião caracteriza a sua condição atual:
“Hoje sei que sou bandido/como todo mundo diz.” E contrapõe o presente ao
passado venturoso: “Porém já fui venturoso/passei meu tempo feliz.” E, mais uma
vez, recorda o carinho que recebeu “no colo materno”.
A poesia
continua (7ª estrofe) com Lampião fazendo um autoelogio como atirador e
cantador: “Meu rifle atira cantando/em compasso assustador”. E continua:
“Enquanto o rifle trabalha/minha voz longe se espalha/zombando do próprio
horror”. Esses versos aludem, creio eu, a uma prática de combate dos
cangaceiros: o parraxaxá, isto é, canto de insulto entoado pelos
cangaceiros contra seus inimigos. Do parraxaxá dá vivo testemunho o já citado
major Optato Gueiros. Revela o militar, evocando um dos seus combates contra o
bando de Lampião: “Rompeu-se o tiroteio, acompanhado dos clássicos nomes feios,
cantigas e chistes de toda a espécie”.
Outro
testemunho desse costume cangaceiro vem do coronel Filipe de Castro, já
mencionado. Perfilando o fora da lei, o perseguidor do cangaceiro relata que,
durante os combates, Lampião “não ficava calado. Gritava soltando palavras
insultuosas aos soldados com adjetivos os mais devassos e nojentos no que era
seguido pelos seus cabras”.
O teor
ofensivo dos parraxaxás é evidente nesta evocação dos militares. A finalidade
era humilhar o inimigo com ofensas morais.
Nas estrofes
finais do poema (8ª e 9ª), Lampião manifesta consciência da morte iminente.
Também se vangloria da sua coragem (“enfrentar de peito”) e do trabalho que tem
dado aos gestores públicos (“vou dar trabalho ao governo”). Por fim, ele revela
um desejo: “Morrendo num tiroteio/sei que morro satisfeito.”
Um verso da 8ª
estrofe parece indiciar que Lampião conhecia algo da mitologia grega. Falando
da sua morte, declara: “enfrentarei o balseiro”. Isto é, o condutor da barca.
Teríamos aqui uma alusão ao Caronte? Na religião grega antiga, Caronte é o
condutor da barca que leva os mortos pelo rio Estige até os infernos, o reino
de Plutão. No dizer de um perito, incumbia a Caronte “a tarefa de passar as
almas do Aqueronte para a outra margem do rio”.
Que não se
estranhe a hipótese de Lampião ter alguma noção da cultura clássica. Sobre
isso, vale lembrar que a mitologia greco-romana, ao lado da mitologia
judaico-cristã, é uma das bases da cultura ocidental. Também é oportuno lembrar
o hábito de leitura de jornais e revistas, cultivado por Lampião e atestado por
diversas fontes côevas. Além da leitura de periódicos o cangaceiro também era
leitor de cordéis. Alguns deles deplorando, outros louvando os seus feitos.
Quanto aos
cordéis, devemos lembrar que os autores destes textos são verdadeiros
intermediários culturais, fazendo um liame entre a alta cultura e a cultura
popular. Fiapos da cultura clássica, assim, chegam aos ouvintes por meio dessas
“pontes”.
Outro possível
canal por meio do qual Lampião travou contato com a ideia do Caronte são os
almanaques populares. Esses impressos tiveram ampla difusão no Brasil do século
XIX e das décadas iniciais do século XX.
O exame aqui
esboçado parece evidenciar alguns pontos. O principal deles é, a meu ver,
patentear mais uma dimensão do cangaceiro: a de poeta. Outro ponto é mostrar
que Lampião, ao lado da brutalidade, também possuía sentimentos muito humanos:
o amor aos pais e a nostalgia do amor juvenil e a elevada autoestima. Por fim,
o texto mostra o quanto Lampião estava imerso no seu universo cultural: foi, em
grande medida, um sertanejo do seu tempo e do seu contexto.
Fontes
utilizadas:
CASCUDO Luís
da Câmara. Lampião. Dicionário do Folclore Brasileiro. 9 ed. São Paulo:
Global, 2000. p. 324-325; 485.
GUEIROS,
Optato. Lampião. 4 ed. Salvador: Livraria Progresso, 1956. p. 21, 69, 232,
258, 260.
OLIVEIRA,
Aglaé Lima de. Lampião, Cangaço e Nordeste. 2 ed. Rio de Janeiro: O
Cruzeiro, 1970. p. 23; 25-27.
CASTRO,
Felipe. Derrocada do Cangaço. 2 ed. Salvador: Assembleia Legislativa do
Estado da Bahia, 2008.p. 133, 141.
GRIMAL,
Pierre. Caronte. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. 4 ed. Rio de
Janeiro: Bertrand, 2000. p. 76.
Aracaju –
Abril – Julho de 2018.
*Francisco
José Alves (Departamento de História – UFS). E-mail: fjalves@infonet.com.br
https://www.ufs.br/conteudo/62095-lampiao-poeta
http://blogdomendesemendes.blogspot.com