1 Era mais de
meia noite, finalzinho de verão (1) já começando as chuvas torrenciais
recheadas a relâmpagos que mais pareciam um arrastar de mobília no céu de São
Pedro (2). Um silêncio dominava a vastidão da entrada do vale do Rio Cotinguiba
(3). Uma mulher de vinte e sete anos estava prestes a dar à luz. No dia
anterior pela tarde alguns tropeiros indo em direção a Maruim (4) passaram pelo
Saco Torto pedindo água na casa de Manuel.
- Bom dia, esta é a estrada do Riachuelo? Falou o mulato de chapéu de aba
quebrada (5).
- É sim senhor, tu chega lá antes de anoitecer si num pararem na rua6.
- Queremos encher nossa cabaça (7), se não for incomodar.
- Não incomodam, aqui a casa é pobre, mas água não nos falta no pote,
desamuntem e venham encher.
Eram três homens que vinham da região de Geremoabo, não se sabia ainda qual a
razão deles irem até aquelas bandas. Maruim já não era como antes, a pobreza
tomara conta daquele pedaço de lugar. Deus já estava esquecendo todos ali. Mas,
a prosa continuava.
- Quanta criança, umas meninas bonitas. São suas?
- Sim senhor, são cinco (8): Maria, Filismina, Laura, Otília e Fausta, o sexto
está para vir ao mundo esses dias.
- Como vai se chamar?
- Se for mulher chamarei de “Arminda”, como a mãe, se for homem darei meu
segundo nome, “Antônio” (9).
Enquanto enchiam suas guarnições, olhavam para uma pequena plantação (10) no
quintal e pediram uma melancia que estava madura, eles pagariam por ela. Ao ver
a cara que as meninas fizeram ao saber que a melancia iria ser levada pelos
homens, Manuel solta.
- Sabe cumo é, a muié prenha já tá desejando esta melancia faiz tempo, vai que
o menino venha ao mundo com cara redonda, não vamos arriscar (11).
Todos começaram a sorrir, inclusive Arminda, que acabara de entrar
sorrateiramente acompanhada da esposa de Manuel Tenório (12), vizinha deles. Os
homens retiraram os chapéus e a cumprimentaram. Viram que estava buchuda e um
deles afirmou.
- Esta barriga tem cara de que é menino.
- Ôxi, ômi e cumo tu sabe?
- É pela pusição dela (13).
- Bom mermo qui seje hômi, já tem muié demais nessa casa. Já são cinco muié, si
vié a sexta não vou querê que o sétimo seja homem, pois diz os mais véio que se
tivé assim vem com parte cum demo, vira labisôni que corre as sete freguesia
(14).
- Engraçado isso, mais é verdade. Bem, já estamos de saída, parece que chamamos
atenção demais, vejam quanta gente veio nos ver. Tomem cuidado, grupos de
cangaceiros de Propriá (15) estão por estas bandas e eles fazem muito mal ao
povo.
- E vocês são negociantes? Falou Antônio.
- Nós somos caixeiros viajantes, nos cavalos temos alguns produtos para serem
vendidos em Maruim.
- Mais, num síria mió vende em Tabaiana? É quase aqui do lado, atravesse a
serra e tá quase dento.
- Não, lá no litoral temos gente certa pra nossas coisas. Já negociamos em
Itabaiana, inclusive viemos por dentro dela hoje, domingo, pois a cidadela tá
pacata demais (ontem foi feira), mas tem muita concorrência no nosso ramo já.
Há dois anos em 1916 (16) arrumamos uma briga lá com um tar Sebrão (17) e
decidimos vortá mais não para aquele lugar.
Os três homens montaram em seus cavalos, se despediram e um deles foi se
aproximando do pequeno grupo de curiosos que haviam se aglomerado perto da
cerca baixa do cemitério (18), Manuel já estava andando na direção dele também
e este ouve.
- Como eu disse que seu filho será um homem, aceite este presente, é um pequeno
boneco de madeira feito por eu mesmo com minha faca, era para meu filho, mas um
dia dê ao seu, pois eu faço ôto pro meu bruguelo.
Nesta hora uma das meninas, Maria das Dores, a mais velha, chega com a dita
melancia nas mãos e diz.
- Pode levar moço, nossa mãe disse que anda enjoada e não está mais desejando,
vocês vão precisar mais que nóis.
- Ôxi, parece até que trocamos os produtos, só vou aceitar porque eu sei que a
menina não sabia do presente. Fiquem com Deus e vou dar um galope para
acompanhar meus dois irmãos. Até mais.
O boneco era o de um sertanejo de chapéu com a aba pra cima, parecia muito com
eles.
As dores
começaram por volta das onze horas da noite, a bolsa estourou pouco mais de
meia noite e já se aproximava a primeira hora da madrugada. A parteira do
povoado foi chamada às pressas. A bacia d’água, os panos, as idosas orando, o
candeeiro aceso (19). Mais de uma hora se passa e as dores só aumentavam.
Arminda era dura na queda, não gritava. Já havia passado outras cinco vezes em
pouco mais de cinco anos, era comum no nordeste essa frota de filhos. Era quase
um a cada ano. Uma mulher de nome desconhecido passava uma toalha azul na testa
da gestante e segurava sua mão firme. A parteira pedia mais oração e força. Uma
hora e meia se passa e nada do rebento chegar. Duas horas e meia depois e nada
ainda. De todos, este foi o que mais deu trabalho para vir ao mundo externo
(20), parecia gostar da barriga. Nesta altura, Manuel estava no oitavo pacaio
(21) e na quinta dose de cachaça. A filha mais velha cuidando dos mais novos
como era de costume (22) e do nada um silêncio toma conta do local. Nenhuma
respiração se ouvia. Antônio tentou entrar na casa, mas duas irmãs dele não
deixou. Uma delas entra e apenas sombras se faziam presente nas paredes. Passou
apenas um minuto de silêncio, mas parecia mais de uma hora. Nisso um choro
rompe naquela noite sem lua, apenas iluminada pelos pirilampos (23) na Terra e
estrelas no Céu. O pai aflito tenta pela segunda vez entrar na casa e vê sua
irmã chegar com a notícia.
- É hômi, Manuel, é machim!
- Bem que o môço onti dissi qui ia sê macho, inté deu um presente. Posso vê?
- Deixa lavá ele e colocá um pedaço cordão vermeio moiado na testa (24).
Alguns minutos se passaram e Raposa (25) (assim gostava também de ser chamado)
entrou na casa, bem lentamente e vai se aproximando da esposa já com o mais
novo membro da família nos braços.
- Nenêm, como vamos chama nosso novo filho?
- Ômi, tu já tinha iscoído, ele vai se chama Antônio, como seu segundo nome.
- Antônio Grigório (26) dos Santos, assim ele si chamará de hoje in diante.
- Vamos ter muito orgulho deste menino.
- Vamos sim.
- Espero que ele sobreviva (27).
- Vamos rezá direitinho desta veiz (28).
Um monte de cabecinhas passavam pela porta, todos curiosos para ver o que
estava dentro da barriga durante oito meses e meio passados (29). As pessoas se
retiraram, Manuel Antônio dos Santos terminou de secar o litro de pinga sentado
no alpendre, dois foguetes foram soltos na porta da casa, era sinal que mais um
habitante do Saco Torto havia chegado ao mundo e no dia seguinte, seria um dia de
festa (30).
1 17 de março
de 1918
2 Na crendice popular a chuva é São Pedro lavando a casa e os trovões são os
móveis sendo arrastados. Numa outra versão, a chuva é São Pedro urinando.
3 A região do Saco Torto pertencia na época a Riachuelo-SE, hoje pertence a
Malhador-SE.
4 Havia um porto nesta região e alguns remanescentes europeus. Era comum a
passagem de Tropeiros por aquela região.
5 Não necessariamente o chapéu de aba quebrada era de cangaceiros, na verdade
na década de 10 chegava a ser moda também entre civis.
6 "Rua" era a denominação que davam para a cidade que pertencia o
povoado. Volta seca sempre se referiu seu nascimento a Itabaiana, já que na
época para todos aquela região era de Itabaiana Grande. A "Rua" que
Antônio se refere é a de Riachuelo que eles poderiam ocasionalmente dar outra
pausa.
7 Moringa
8 Volta Seca afirma que é o sexto, primeiro homem, de uma família de 13 até a
morte de sua mãe.
9 Era comum dar o nome do pai ao filho, como também da mãe. Ainda hoje é comum.
10 Volta Seca em entrevista diz "Ele negociava com o que o sítio
produzia". O Globo, 4 de novembro de 1958. Entrevista de Volta Seca a
Bruno Gomes.
11 Esta superstição ainda hoje existe entre os mais velhos.
12 Manuel Tenório, segundo Volta Seca, teve 22 filhos.
13 Esta superstição ainda hoje existe entre os mais velhos.
14 Os mais antigos acreditavam que se o casal tivesse seis filhas e o sétimo
fosse um homem este seria ofertado ao demônio e que voltaria em forma de
Lobisomem.
15 "Cabras" do coronel Francisco Porfírio. Fonte: Olímpio Rabelo,
Retalhos de História, Livraria Regina Editora, 1966, Aracaju, p. 41.
16 O Caxangá na Política de Itabaiana.
17 José Sebrão de Carvalho. Chefe político do grupo dos Pebas.
18 Em entrevista, dona Ilza dos Santos, filha de Felismina dos Santos, afirma
que a casa dos avós ficava ao lado do antigo cemitério local.
19 Era uma forma muito rudimentar de se fazer um parto, muitas vezes era esta a
razão de tantas mortes prematuras.
20 Palavras do próprio Volta Seca em entrevista ao O Globo de 1958.
21 Cigarro de Palha.
22 Palavras do próprio Volta Seca em entrevista ao O Globo de 1958 fala desta
irmã mais velha que cuidou dele na infância.
23 Vaga-Lumes
24 Era um costume interiorano colocar um pedaço de barbante vermelho na testa
da criança para espantar mau olhado. Em algumas regiões este hábito era muito
comum.
25 Assim era conhecida a família de Volta Seca na região, os
"Raposas".
26 Volta-Seca não tinha documentação quando fez novamente, seu nome que o
acompanhou no cangaço era apenas "Antônio dos Santos", o
"Gregório" foi abandonado, apenas lembrado pelas familiares.
27 Era comum mortes prematura e a existência de "Cemitérios de anjos"
em várias cidades.
28 Geralmente as mortes dos "anjos" eram algumas vezes atribuídas a
pouca fé e pouca oração.
29 Nasceu prematuro de quinze dias.
30 Era comum soltar fogos e fazer um forró para comemorar a chegada de mais um
filho.
Trecho do
livro "Volta Seca". Robério Santos.
Inédito.
Fonte: facebook
http://blogdomendesemendes.blogspot.com