Por: Por:Manoel Neto
Longa seria a
lista e certamente assunto para muitas laudas a história da repressão ao
banditismo nos sertões do Nordeste, notoriamente no período em que o cangaço
experimentou modificações expressivas no seumodus operandi, atingindo um nível
de sofisticação profissional adredemente estruturada pela astúcia militar e
estratégica de Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião. Para combatê-lo e aos
seus subgrupos, sob diferentes comandos, fizeram-se necessárias articulações políticas
entre os estados atingidos[1]. Considerável
dispêndio de recursos públicos, reciclagem das forças policiais regulares e das
suas formas de combate, como também, a incorporação de contratados
eventuais, geralmente moradores das caatingas, afeitos ao terreno e
conhecedores dos socavões por onde transitavam os bandoleiros, em verdade,
guias sem os quais soldados e oficiais encontrariam enormes dificuldades de
locomoção e orientação. Muitos deles tornaram-se rastejadores, isto é,
indivíduos que divisavam em meio ao ambiente hostil e ilegível aos olhos
leigos, as marcas deixadas pelos bandos marginais.
Ao comentar os preparatórios do capitão Chevalier, Humberto de Campos evidencia
está mais familiarizado com as táticas e estratégias de luta dos adornados
combatentes das caatingas. De chofre, sem maiores rodeios, chama a atenção do
público leitor para o inédito conjunto de homens, armas e apetrechos a ser
empregado na Campanha, afirmando que para justificar tão onerosa e complexa
operação, os seus planejadores, à frente o oficial irredento de 1930,
ancoravam-se na perspectiva de bater-se com uma quadrilha composta por 150
homens. Então Campos pondera explicitando conhecimento de causa:
E há nisso,
evidente exagero. O cangaço profissional, para ser exercido com
eficiência, prescinde de grandes grupos, que lhe comprometeriam a finalidade. A
sua tática reside na mobilização rápida, na facilidade da dispersão no momento
do perigo, e esta não é possível se os cangaceiros dispusessem de contingentes
consideráveis. Antônio Silvino[2] jamais admitiu
mais de uma dúzia de cabras, e Lampião nunca reuniu mais de 40, e
isso mesmo para entrar em Juazeiro, temendo uma surpresa de Padre Cícero[3]. É sabido,
mesmo, que o seu processo consiste em reduzir os seus contingentes à medida que
é perseguido, de modo a desorientar os perseguidores, eclipsando-se na caatinga(CAMPOS,
pp. 31, 32).
A citação
conscientemente longa se impôs em decorrência da relevância de algumas
observações nela contidas, que ratificam nossa percepção de que o articulista
àquela altura já conhecia maiores detalhes sobre o modo de guerrear de Lampião
e seus seguidores, observações estas que grifamos no trecho citado.
Interessante é
que Campos já se refere ao “cangaço profissional”, num tempo em que a vida
bandoleira no Nordeste ainda era analisada sob outros prismas.
Vale ressaltar igualmente que em Mossoró, para citar das mais infelizes
sortidas de Lampião contra uma localidade, os sitiantes somavam mais de 150
homens, muito embora fosse um somatório de bandos que atuavam dispersos e
independentes, inclusive nos seus comandos. Portanto, época houve, antes de
ingressar na Bahia em 1928, que os agrupamentos eram mais numerosos, ao revés
do mencionado no texto.
Independente das ponderações expressas fica, entretanto, o reconhecimento de
que “o jovem oficial revolucionário vai prestar, todavia, um relevantíssimo
serviço a sua terra, com essa expedição” (CAMPOS, p. 32). Mas, cauteloso e
reflexivo adverte o capitão Chevalier: “Para combater cangaceiros, faz-se
mister mais a habilidade individual do que a bravura, e mais perfídia vulpina
do que, propriamente, arte militar”.(ibid. p. 32). Ou seja, o expedicionário
teria que usar de “perfídia vulpina”, ou melhor, usar a sagacidade, a
esperteza, a mobilidade da raposa, animal que integra a fauna catingueira,
prevendo adiante
“[...]
que vamos assistir a um duelo entre a artimanha de um bandoleiro e a intrepidez
de um verdadeiro soldado, ou, mais caracteristicamente, um encontro entre um
cavaleiro que maneja um florete e um bárbaro que avança contra ele sustentando
com a s duas mãos a sua formidável tangapema (grifo nosso) de
maçaranduba” (CAMPOS, passim).
O contraponto
entre civilização e barbárie que neste extrato fica delineada no confronto
entre “o cavaleiro que maneja o florete” e o bárbaro munido de tangapema –
mesmo que tacape, borduna, armas de guerra indígenas – representado pelos
homens do cangaço, foi usado reiteradamente por Euclides da Cunha designando os
camponeses sublevados em Canudos, tratamento reincidente em outros autores
quando historiaram as insurreições do Contestado[4] e
Pau-de-Colher[5], levantes
rurais, nos quais milhares de seres humanos foram sacrificados com requintes de
crueldade pelas armas “civilizatórias” do Exército e das forças policiais dos
estados beligerantes.
Não nos esqueçamos das volantes e suas arbitrariedades e violências, quando
soldados representando os Governos, estadual e federal, comportavam-se de forma
truculenta. Lamentável por tudo a referência aos índios brasileiros, vítimas de
agressões e dizimados durante séculos pelos colonizadores, latifundiários e
autoridades dos mais diversos calibres e procedências. Afrancesada e recolhida
ao conforto das cidades, especialmente as litorâneas, a intelectualidade
brasileira ou a maior parte dela costumava “chamar de feio tudo que não era
espelho”, parafraseando Caetano Veloso, e Humberto de Campos não era exceção,
carregando sobre o seus ombros o pesado fardo do “espírito da época”. Volta-se
posteriormente para aquilo que considera ultrajante para o país e sem rebuços,
direto e incisivo opina:
“”A impunidade
de Lampião constitui, sem dúvida, uma vergonha para a nação
brasileira, e reclamava, de há muito, a intervenção do Exército, isto é, de
forças da União, para acabar com o escândalo da sua sobrevivência. Mas não
reclamava, talvez, a honra de uma expedição tão vultosa, como essa que lhe está
destinada”. (grifo nosso). (CAMPOS, ob. cit. p. 33).
Retoma a tese
de uma intervenção federal como resolução adequada pata enfrentar a resistência
obstinada e ardilosa dos cangaceiros, sem perder de vista, contudo, o juízo
sobre o exagero das forças e equipamentos mobilizados para a tarefa,
considerando que talvez “o Diabo não seja tão feio com se pinta”.
Logo mais vai
descer ao terreno das especulações ao tomar como exemplo episódio ocorrido com
o rei de Túnis, que tendo sua cidade arrasada pelas tropas de Luiz XIV, Rei de
França, teria afirmado aquele monarca que pela metade dos gastos dispendidos
pelo Rei Sol para por abaixo “o velho porto africano”, ele próprio
executaria a tarefa pela metade do valor gasto, o que pouparia vidas e
recursos. Logo volta a realidade dos fatos e escreve:
“Amando a
agitação e o perigo, o Capitão Chevalier não aceitaria, sem dúvida, uma
proposta de Lampião, no sentido de lhe darem a metade das despesas da
Expedição mediante o seu desaparecimento do cenário nordestino. [...] O que o
seduz é aventura e não o resultado feliz”. (Idem).
Desavisado
pressupõe ser o Capitão sediado no litoral a recusar proposta do seu “colega”
de patente, o comandante das tropas catingueiras, que tinha para si planos mais
ambiciosos, sonhava ser o “Governador do Sertão”, conforme já propusera em um
dos seus famosos bilhetes, este encaminhado ao Sr. Júlio de Melo, mandatário de
Pernambuco, no mês dezembro de 1926, no qual redigiu a debochada proposta de
uma divisão territorial e de poder. Seria ele Lampião, responsável pela região
sertaneja do território pernambucano, cabendo a Júlio Melo, governar o litoral.
Provocativo garatujou textualmente:
“Faço-lhe esta
devido a uma proposta que desejo fazer ao senhor pra evitar guerra no sertão e
acabar de vez com as brigas... Se o senhor estiver de acordo, devemos dividir
os nossos territórios. Eu que sou Capitão Virgulino Ferreira Lampião,
Governador do sertão, fico governando esta zona de cá, por inteiro, até as
pontas dos trilhos em Rio Branco. E o senhor, do seu lado, governa do Rio
Branco até a pancada do mar no Recife. Isso mesmo. Fica cada um no que é seu. Pois
então é o que convém. Assim ficamos os dois em paz, nem o senhor manda os seus
macacos me emboscar, nem eu com os meninos atravessamos a extrema, cada um
governando o que é seu sem haver questão. Faço esta por amor à Paz que eu tenho
e para que não se diga que sou bandido, que não mereço.
Aguardo
resposta e confio sempre[6]”
Como se vê
avaliava mal o acadêmico. Àquela altura, em meados dos anos vinte não houvera
Lampião cruzado o Rio São Francisco rumo a Bahia. Não intentara contra a cidade
de Mossoró, no Rio Grande do Norte, fato ocorrido somente no dia 13 de junho de
1927, mas já se convertera em figura carimbada nos sertões, caminhando
rapidamente para se tornar história e mito, memória e imaginário.
A seriedade do
assunto tratado não toldava, contudo, o fino humor de Humberto de Campos.
Finaliza sua crônica de forma imaginativa e jocosa: “Eu tenho receio,
entretanto, que o excesso de pares comprometa o sucesso da contradança, e
que ouçamos, daqui do litoral, marcação do celerado sertanejo:-
“Dames à droite!.... Chevalier à gauche!...” E que, como consequência, a quadrilha continue...”
(CAMPOS, ibid. pp. 34,35).
Evocando as
quadrilhas tão animadas e comuns nas festas sertanejas de junho, Campos fez-se
profeta e acertou no alvo: muita água ainda rolaria debaixo da ponte. Mas isso
fica para o próximo capítulo!
Manoel Neto
PESQUISADOR/HISTORIADOR
MEMBRO DO
INSTITUTO GEOGRÁFICO E HISTÓRICO DA BAHIA – IGHB
COORDENADOR DO
CENTRO DE ESTUDOS EUCLYDES DA CUNHA – CEEC/UNEB
[1] Foram celebrados
vários convênios de cooperação entre os Estados molestados pelo cangaço, dentre
os quais destacamos aquele acordado em 1927, entre os dias 28 e 30 de dezembro,
cujo principal intuito era coibir com mais veemência a ação dos coiteiros.
[2] Antônio
Silvino. Nascido Manoel Baptista de Morais, em Ingazeira, Estado de
Pernambuco, faleceu na Paraíba em 1944., Precedeu Lampião e foi o mais afamado
e temido bandido do seu tempo, ganhando o apelido de “Rifle de Ouro”.
[3] Lampião visitou
Juazeiro do Norte em março de 1926. Lá recebeu a patente de Capitão, armas,
munição e fardamento pra organizar um Batalhão Patriótico, com o fito de
combater a Coluna Prestes. Sobre quem o convidou há controvérsias, que ainda
suscitam debates e dissenções entre os pesquisadores e estudiosos.
[4] A revolta
do Contestado eclodiu em 1912, na região sul do Brasil, em área confluente dos
Estados de Santa Catarina e Paraná. Apesar da forte conotação religiosa do
movimento, outros interesses sócio-econômicos foram decisivos para a
sublevação.
[6] Consulta
realizada ao site http://lampiaoaceso.blogspot.com.br/. Acesso em
20/02/2013.
http://cariricangaco.blogspot.com.br/2013/03/a-expedicao-contra-lampiao-de-humberto_13.html