Por Rangel Alves
da Costa*
Sendo a vida
um percurso e a existência um caminho de um ponto a outro, logicamente que as
transformações serão inevitáveis. A feição de ontem já ganhará outra forma
amanhã, o que é de um jeito mais adiante não será mais, eis que tudo se
modificando para se desenvolver.
Desse modo,
não seria de se esperar que hoje se pudesse dispor do mesmo sertão de
antigamente. Aquele sertão de viventes nas distâncias áridas, de vaqueiros
enveredando nas imensidões das matarias em busca de boi brabo, quase não existe
mais. Difícil encontrar os autênticos sertanejos em suas casas singelas, sob a
luz do candeeiro e a paz reinando no seu dia a dia.
Foi-se o tempo
da panela de barro, do fogão de lenha, do aió, do embornal, da apracata de
couro cru. Foi-se o tempo do leilão e da quermesse, das vizinhas nas calçadas,
da carne de bode fresquinha sendo comprada no pé de pau. Sumiram as velhas
rezadeiras, as negras parteiras, as lavadeiras passando com suas trouxas na
cabeça. De tudo isso ainda existe, mas não com a pujança de antigamente.
Mas ninguém
jamais pretendeu que o sertão estancasse no tempo e eternamente vivesse com
aquela feição de porteira e curral, de chapéu de couro e embornal, de lama no
pote e pingo d’água na moringa. Um dia o sertanejo haveria de abdicar do carro
de bois, dar descanso ao seu burro ou jumento de carga, apagar a luz do
candeeiro. E assim aconteceu pelos chamados do desenvolvimento, ainda que sem o
progresso.
Contudo, as
mudanças não deveriam ser tão rápidas, tão medonhas, verdadeiramente
assustadoras. Pode-se afirmar com segurança que num confronto entre o passado e
o presente, o sertão está irreconhecível. E assim porque isto que se tem por
sertão, somente lhe resta o conceito geográfico e alguns resquícios da
vegetação nativa. O resto não faz nem sombra ao que de bom e verdadeiro
existia.
Será preciso
saber que fim levou o autêntico forró, o legítimo chinelado pé-de-serra com
sanfona, triângulo e zabumba. Será preciso saber por onde andam as cavalhadas
matutas, os pega-de-boi na mataria fechada, as mãos calejadas moldando no barro
o pote, o tacho, a moringa, os velhos ferreiros e sapateiros nos seus ofícios
tão importantes. E também alguém poderia dizer por onde anda a paz sertaneja, o
velho e amigueiro sertanejo, o nobre e humilde povo que nunca esmorecia debaixo
das inclemências.
Antigamente,
de canto a outro todo mundo conhecia todo mundo. Sabia por quem os sinos
dobravam, choravam nas sentinelas noites adentro. Um tempo de vizinhos que se
serviam e se ajudavam, de amigos proseando debaixo dos pés de pau, de amigas se
refrescando nas cadeiras espalhadas pelas calçadas. Menino correndo nu rua
acima e rua abaixo em época de chuvarada era a coisa mais normal do mundo.
O remédio
estava no quintal, na planta medicinal tão conhecida por todos; quintais com
árvores frutíferas, galinhas ciscando pelos monturos e ovos garantidos para a
mistura com o toucinho e o cuscuz de milho ralado. Ainda hoje recordo da festa
no apetite e do aroma que tomava as ruas sertanejas quando Dona Lídia levantava
a tampa da chaleira com café batido em pilão e depois transformado num negrume
oleoso dos deuses. E logo as filas se formavam para experimentar um tiquinho.
Disso tudo,
quase não há mais no sertão. Mas como afirmado, teria que ser assim mesmo em
obediência aos novos tempos que surgem. Contudo, são outros aspectos que
acabaram transformando totalmente a região e tornando o sertão apenas num lugar
qualquer, e com as consequências nefastas das novidades, dos modismos e dos
comportamentos absurdamente corrompidos.
Perante a
abundância de ontem, hoje praticamente não existe mais mata fechada nem os
troncos desnudos das grandes árvores tipicamente sertanejas. A fauna nativa,
desde o preá à codorna, desde muito que rumou apressada para outras distâncias.
As estradas e veredas não mais recebem os bichos de montaria e seus viajantes,
mas apenas os roncos e as velocidades mortais das motocicletas.
Sim, o sertão
sempre foi violento, mas de uma violência de valentia e não de covardia. Houve
um tempo de confrontos sangrentos, verdadeiramente insidiosos, mas não nessa
brutalidade gratuita e motivada apenas pelo prazer da ilicitude e da
transgressão à lei. E também houve um tempo que o sertão era do sertanejo e não
desses forasteiros que chegam invadindo tudo e transformando a terra sagrada
num lugar de ninguém.
Por isso é
preciso muito cuidado ao dizer que vai ao sertão, que está ou vive no sertão.
De tudo só resta a ideia e o conceito. O sertanejo existe sim, mas o sertão só
é encontrado através da recordação daquilo que um dia existiu.
Poeta e
cronista
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