Por Luiz Alberto
Adília e Sila
Ilda Ribeiro
de Souza, a ex-cangaceira "Sila", ex-esposa do cangaceiro Zé Sereno
na sua obra "Angicos, Eu Sobrevivi", quando se propõe a relatar a sua
história e a das mulheres do cangaço, nos transmite através de um relato franco
e forte fatos provados e interessantes, repletos, acima de tudo, de drama
humano na vivência de sua cultura singular. As breves transcrições estão
marcadas de sangue e suor daquela que viveu na própria pele a realidade de uma
época.
O PRIMEIRO
ENCONTRO COM CANGACEIROS
(SILA):Algum
tempo depois eu estava no mato com meu irmão João, quando de repente vimo-nos
em meio a quatro ou cinco homens vestidos com roupas estranhas e armados com
fuzis: era o grupo do cangaceiro Zé Baiano. Levamos um susto tremendo. Zé
Baiano fez algumas ligeiras perguntas e, logo em seguida, seguiram viagem
deixando-nos em paz.
Fiquei na Casa
dos Sete Umbuzeiros em companhia dos meus irmãos. João não queria que eu
ficasse lá, pois havia um boato que os cangaceiros levavam moças para o
cangaço. João tinha receio de que eles aparecessem e me carregassem. Algum
tempo depois ele me disse:
- Sila, você
não vai ficar aqui; vou levá-la para casa de Tia Marieta. É mais seguro.
Eu respondi:
- Os
cangaceiros não vão me carregar, porque ninguém fala mais neles. Eles devem ter
ido longe – respondi-lhe. – Será que eu não posso mais morar com vocês?
No outro dia,
cedinho, passaram em nossa casa sete cangaceiros: Zé Baiano (primo de Zé
Sereno), Zé Sereno, Manoel Moreno e outros. Tive oportunidade de vê-los. Meu
irmão tremia de medo. Então um deles, Zé Baiano, aproximou-se de João e
disse-lhe:
Faça comida e
vá levar para trás da casa, perto do riacho, onde estão os outros cangaceiros.
Leve a moça para lá.
Eu disse a
João que não iria. João insistiu:
- Você vai,
porque se não for será pior; bem que eu lhe disse para que não ficasse aqui.
Resolvi então
acompanhá-lo.
Amedrontados,
com as pernas tremendo, seguimos até o local indicado pelo cangaceiro. Eu,
bastante assustada, perguntava a mim mesma o que poderia nos acontecer, pois o
medo era tanto que não podíamos nos controlar.
Chegamos e nos
deparamos com aqueles homens de aspecto selvagem, sujos e maltratados. Foi
quando Zé Baiano me disse:
- Não tenha
medo, menina; não vamos fazer nada com você.
Não esperava
por uma coisa dessas. As pernas tremiam-me e eu mal me mantive de pé. Eles
ficaram me observando. Por fim, retomei o fôlego e perguntei ao meu irmão:
- Viche Maria,
Mãe de Deus, o que esse homem quer comigo?
- Sei não –
tornou a falar João -, mas voismicê já adivinha. Tá lhe querendo na certa!
Sai correndo
sem parar e entrei em casa desesperada, como uma louca. Madrinha Marieta foi
atrás de mim e segurou-me pelo braço, querendo saber o que se passava. Aos
soluços, cortada pela dor, contei-lhe tudo o que meu irmão me transmitira.
Madrinha fechou a cara e afastou-se para o fundo do quintal. Ia pensar,
naturalmente, refletir sobre a nova situação. Aquilo de forma alguma poderia
agradá-la. Entrei no quarto, passei a tranca na porta e joguei-me na cama,
profundamente aborrecida. Não houve pensamento ruim que não me passasse pela
cabeça naquele momento.
Nesse dia, um
dos que acompanharam Zé Baiano era seu primo – Zé Sereno -, que ficou de olho
em mim, embora não tenha manifestado o menor interesse aparente.
O tempo
passou, e após alguns meses desse encontro ocasional Zé Baiano foi morto por um
pequeno grupo de caatingueiros, residentes próximo ao lugar conhecido como
Alagadiço.
Zé Sereno já
tinha seu grupo e resolveu arranjar uma companheira. Mandou avisar-me que
dentro de quinze dias haveria um baile em determinado lugar, e que eu deveria
estar presente, porque dali sairia para viver em sua companhia.
Entregue ao
meu desespero, vi as horas passarem em branco. Por fim fui colocando os
pensamentos em ordem, e já podia refletir. Mas, à medida que o tempo escoava,
eu não via como mostrar ao cangaceiro que não pretendia ser um deles. E dizia a
mim mesma que melhor seria morrer que viver no cangaço.
Uma vez em
casa eu disse a João que queria passar uns dias em casa de Maria, nossa irmã,
em Serra Negra. Chegando lá, soube que havia uma festa em casa de família,
nossos antigos amigos.
Pedi então a
Maria que me deixasse ir àquela festa, mas ela não me permitiu. Eu então lhe
disse:
Maria, essa é
a última festa que eu vou.
Por quê? – ela
estranhou.
Nada respondi.
Ela ficou preocupada, e eu não quis mais falar sobre a festa. Meu pai me dizia
para obedecê-la, que era minha irmã mais velha.
Passei três
dias com Maria, muito triste e calada; parecia mesmo uma despedida.
Aproximava-se o dia em que eu me separaria de todos, e isto não saia de minha
cabeça. Era horrível viver esta grande incerteza. Eu não podia nem pensar em me
separar da minha família, ainda mais na situação de sair sem rumo, sem saber o
que me ocorreria. E mais: sem poder dizer nada a ninguém. E os dias se
passavam.
Resolvi ir à
igreja e pedir a São João Batista proteção e orientação diante da situação que
se apresentava em minha vida. Depois disto notei que fiquei mais destemida,
mais forte para enfrentar tudo. Em silêncio, entreguei tudo a Deus.
À tardinha,
embora mais calma, eu continuava pensando em tudo que estava por vir, em
companhia de meus irmãos, que já haviam chegado do trabalho. De repente ouvimos
pisadas fortes.
Eram os
cangaceiros, meu Deus! O que fazer?
Então Zé
Sereno chamou João, dizendo-lhe que o acompanhasse até uma quixabeira, perto da
casa, numa fazenda que pertencera a meu avô; eles estavam lá arranchados.
No caminho Zé
Sereno pediu-lhe também que arranjasse um concertista, com pandeiro e viola, e
juntasse as moças para a festa que ele pretendia dar.
João seguiu
para a cidade e providenciou tudo.
À noitinha,
eu, meus irmãos e minhas primas dirigimo-nos à festa, e lá conhecemos os
cangaceiros Balão, Manuel Moreno, Ponto Fino, Criança, Sabonete, Luís Pedro e
sua esposa Neném. Eles levavam sempre para as festas uma cangaceira, para dar
mais força a moçada. Todos estavam muito alegres; bebiam e dançavam.
Enquanto isso,
eu e minhas primas estávamos sobressaltadas, e nem sequer conversávamos uma com
as outras.
Durante o
baile dancei bastante com Luís Pedro, mas pouco com Zé Sereno, evitando assim
aproximar-se muito dele, na inútil tentativa de tirar da sua cabeça a idéia de
levar-me consigo.
Os cangaceiros
beberam a noite toda; Balão sempre presente tocando sua gaita de boca, muito
alegre e sorridente.
Já às seis
horas da manhã, Neném aproximou-me de mim e disse-me:
- Agora você
vai embora, Sila. Zé Sereno mandou lhe dizer que é para você ir agora, assim,
do jeito que você está.
Saí com todos,
só com a roupa que vestia. Sentia-me como que suspensa no ar, numa horrível
sensação de medo, pavor, incerteza e ainda a saudade imensa da minha casa, dos
meus irmãos, enfim, de todos. Imaginava o que devia acontecer, se me deixassem
no mato, ou em algum lugar que eu não conhecia. Caminhávamos pelo mato afora,
todos calados.
Em verdade, há
quinze dias Zé Sereno já estava decidido a levar-me. Do jeito que estava decidi
arrumar uma oportunidade para dirigir-me a ele e falar-lhe. Fiz questão de não
me arrumar. Entendia que, quanto pior me apresentasse, melhor seria. Nenhum
cuidado especial. Mal passei o pente no cabelo; nos pés um par de alpercatas
velhas e um vestido surrado no corpo. E lá fomos nós.
No caminho
atravessamos um riacho que, devido às fortes chuvas da época, estava muito
cheio. No meu nervosismo, caí na corrente pelo menos duas vezes. Caía e
levantava-me cada vez mais desconsolada. Mas, ao mesmo tempo, satisfeita por
achar que agora sim iria causar má impressão ao cangaceiro. Parecia até um
pinto molhado ao final da caminhada.
- Ó xente
muié, voismicê tá toda ensopada! Num tá chovendo! Tu caiu no ribeirão?
O medo me fez
perder a voz; não conseguia pronunciar uma só palavra. O coração parecia querer
saltar do meu peito.
Alguns dos
homens fizeram cara de riso. Zé Sereno olhava-me hipnotizado. O vestido molhado
colara-se ao meu corpo e desenhava minha silhueta. Eu não sabia onde ocultar
minha face, tal a vergonha que sentia.
- Óia mocinha
– disse ele -, eu num sou onda pra mode tá cumendo gente! Voismicê pode ficar a
vontade. Ninguém vai lhe fazer mal argum. Nóis só tamo cunversando. No meio da
gente só tem muié decente. Tudo pessoa de valor: Dona Maria Bonita, Dona Dadá
de Curisco, Neném de Luís Pedro, Enedina e outras.
Via-se
claramente que ele procurava manter a calma. Mas estava aborrecido. Levantou-se
e foi até a sua barraca. De alguns bornais retirou alguns anéis de ouro e dois
vidros de água de cheiro.
Ali, deu
início a uma cerimônia que, sem dúvida alguma, era uma simpatia. Mandinga,
feitiço, quem sabe? Passando-me uma sandália sua, deu-me ordem para que a
calçasse no meu pé esquerdo. Atendi-o em silêncio, e, mesmo não entendendo a
razão daquilo, fiquei desconfiada. Em seguida, obedecendo sua determinação,
acompanhei-o até uns umbuzeiros que ficam a meia distância da casa. Ali Zé
pronunciou algumas palavras ininteligíveis, enquanto aplicava passes em minha cabeça
e ao longo do meu corpo.
O que
significava toda aquela cerimônia? Jamais o soube, pois nunca falamos sobre
isso.
* * *
Luís Pedro
levantou-se meio escabreado, sacudiu Neném e mandou-a levantar-se. Neném
acenou-me em cumprimento e, percebendo o meu vestido, perguntou-me se eu
pensava em viajar daquele jeito. Respondi-lhe que só possuía vestidos na
bagagem. Ela foi até as suas coisas, tirou de lá um culote e entregou-o a mim,
dizendo:
- Voismicê é
do meu tamanho. Um pouco mais magra, é verdade, mas do mesmo tamanho. Tome
aqui. Vista até que seu homem lhe compre um pano bonito, pra mode voismicê
costurar o seu.
Saímos todos
pelas veredas quase fechadas da caatinga, aparentemente sem destino. Todos
caminhavam calados.
Sentia-me como
em outro mundo – triste, isolada de minha família, desiludida e amedrontada.
Por não conhecer toda aquela gente estranha, sentia vontade de chorar. Apenas
prestava atenção a tudo que se passava ao meu redor.
Dessa forma
andamos o dia todo a pé. Ao meio dia eles assaram carne e a comeram com farinha
de mandioca. Eu não me alimentei; não tinha fome, estava desolada.
À tardinha
Neném aproximou-se de mim para conversar. Diante da situação tive uma súbita
reação: uma crise de choro tomou conta de mim. Ela então me disse:
- Não chore
que é pior.
Procurei
inibir meu choro, esperando que Zé sereno dissesse algo – mas ele não se
manifestou.
Com a chegada
da noite, Zé tratou então de arranjar uma coberta; estendeu-a no chão e
deitamos sobre ela. Tive de obedecê-lo e dormir com ele. Assim foi a primeira
noite.
Este lugar
onde dormimos ficava perto de Pinhão, no Estado de Sergipe.
De manhã
caminhamos mais um pouco, até chegarmos a uma fazenda, da qual nunca soube quem
era o proprietário. Lá os cangaceiros prepararam a comida. Neném chamou-me e
disse:
- Menina venha
comer, que assim, andando, sem se alimentar, ficará fraca e vai adoecer...coma
alguma coisa.
Novamente
começamos caminhar mato adentro. À medida em que andávamos, alguém ficava para
trás e ia desmanchando os rastros, recolocando no seu lugar, inclusive, cada
pedra que porventura fosse deslocada. Admirada perguntei:
Por que estão
fazendo isso?
Para não
deixar pistas pros macacos – Neném respondeu-me.
Que macacos? –
perguntei.
Os macacos são
os soldados, que perseguem os cangaceiros para porem fim ao cangaço. Nós os
chamamos de macacos.
Esta foi minha
primeira lição.
* * *
O café ficou
pronto. Arroz tropeiro, rapadura, farinha e um pedaço de bode constituíam a
refeição matinal. Preparavam-se para longa caminhada a pé e só esperavam comer
na segunda metade do dia.
No cangaço
havia o costume de os homens cozinharem, e às mulheres cabia a costura de
roupas, de bornais e outras peças. No mais, davam a impressão de estarem ali
como adorno.
"Eu
confeccionava bornais e camisas; costurava bem e com bom gosto. Da primeira vez
que vi Lampião, ele gostou tanto de um bornal que eu havia feito para Zé
Sereno, que logo me encomendou um. Cumpri o seu desejo e, daquele dia em
diante, passei a costurar todas as suas capangas." (Sila)
Marchávamos
pela caatinga há horas. No céu, o sol quente de verão parecia querer
torrar-nos. De vez em quando, porém, uma leve brisa vinha acariciar-nos o
rosto, suavizando o ardor que nos queimava a pele.
Passos
apressados, éramos doze seres de Deus. Mulheres, apenas duas: Neném e eu. Novo
Tempo, Mergulhão e Marinheiro eram os três novos cangaceiros que integravam o
grupo sob comando de Zé Sereno, todos eles meus irmãos consaguíneos . Acredito
mesmo que entraram no cangaço para não me deixarem sozinha. Assemelhava-se a
guarda-costas meus.
Os apelidos
era uma das marcas registradas do cangaço. Sila conta que o seu apelido vem
desde a sua infância em Poço Redondo, dado por seu pai. Já seus irmãos Manoel
(chamado "Du"), Gumercindo e Antônio Paulo receberam,
respectivamente, os apelidos de Novo Tempo, Mergulhão e Marinheiro de Zé
Sereno, na ocasião que ingressaram no seu bando e consequentemente no cangaço.
Vestindo
culote verde, bornal da mesma cor, chapéu de aba virada e cravejado de medalhas
– presente de Zé -, sendo a do centro de ouro maciço, eu já tomava ares de
cangaceira. Além do chapéu, tinham-me entregue um Mouser e um punhal de tamanho
médio, bordado a ouro e prata. Trajada daquele jeito, fazia figura bonita e
agradava ao grupo. Era evidente a alegria que sentiam em contar comigo no
bando. Eu, porém, não estava bem. Volta e meia, atrasava o passo e punha-me a
chorar baixinho. Zé Sereno, numa dessas vezes, aproximou-se e disse-me, como
consolo;
Óia, menina, o
que tá feito num se pode desfazer. Ninguém vorta mais atrás. Seca os óio e
guarda sua dor pra mais tarde.
Enchi-me de
coragem e retruquei raivosa:
- Os óio são
meus e choro o quanto quiser.
Zé deu de
ombros e continuou a caminhada. Por largo tempo manteve-se calado. "Que
ficasse com as suas birras", deve ter pensado.
Em coluna
dupla o bando atravessava a caatinga. À frente viajava Luís Pedro, por ser o
mais experiente dos homens. No fundo, as mulheres e, cerrando fila, Zé Sereno.
Cabia a ambos evitar surpresas tanto à frente quanto na retaguarda.
Meus irmãos
pareciam nervosos. Cada um deles levava um fuzil, mas nem sabiam como
manejá-los. Eu, de minha parte, nem mesmo tinha idéia de como segurar a Mouser.
Zé garantiu que, tão logo chegássemos ao coito, nos daria a primeira instrução
de manejo de arma.
Volta e meia
Zé Sereno aproximava-se de mim, mas, em princípio, não dizia nada. Ora
trazia-me um cantil com água, ora um pedaço de rapadura ou um punhado de
farinha. Calado sempre. Parecia estar efetuando reconhecimento de terreno –
sondando-me.
A viagem
prosseguia e o sol já ia alto no céu.
Já perto do
fim da tarde chegamos a uns juazeiros; deu-se ordem de parada, indicando que
passaríamos a noite ali. As tralhas de cozinha foram retiradas do lombo do
burro e logo o fogão fumegava.
Enquanto isso
Neném chamou-me para um banho na fonte. Estranhei a existência de uma fonte por
ali, pois não vira sequer um fio de água no decorrer do dia. Distava uns
trezentos metros de nosso acampamento. Luís Pedro mandou que um de seus homens
mais experientes nos acompanhasse para proteger-nos.
Ao final
sentia-me mais leve; havia tirado a poeira e o cansaço do corpo.
De volta
perguntei a Neném:
- Vosmicê num
tem medo de ser espiada no banho por um desses home, não?
Ó xente, e
eles são doidos? – retrucou Neném – Só se quiserem perder a cabeça. Luís atira
no meio dos óio do cabra da peste pra gastá uma bala só. Adispois, no cangaço,
temos muito respeito pelos companheiros. Home ou muié.
Comemos à
vontade, pois a comida era farta e a pinga saborosa. Naquela noite conheci o
sexo. Experiência ruim. Lua de mel tão amarga quanto as amarguras sofridas por
mim nos dois anos seguintes vividos no cangaço.
(Texto
Transcrito da Obra: Angicos Eu Sobrevivi – Oficina Cultural Mônica Buonfiglio –
1997 – Pags. 24 a 32)
http://luizalberto.com.br/l05.html
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