O bando deixou
Arrastapé no dia 18 de abril, passou pelas fazendas Riacho e Malhada da
Caiçara, varou pelas caatingas de Santa Brígida e entrou em Sergipe, indo
pernoitar na fazenda Pedra d’Água, perto de Canindé. No dia seguinte, os
cangaceiros acordaram cedo, arrearam os cavalos e tocaram em direção a Poço
Redondo. Embora Lampião já tivesse entrado em Sergipe pelo menos duas vezes,
esse fato era desconhecido em Poço Redondo, um povoadozinho com umas trinta
casas separadas umas das outras, na beira do Riacho Jacaré, afluente do São
Francisco.
Naqueles
ermos, não havia rádio nem telégrafo, as notícias corriam devagar. Ouvia-se
falar nas estripulias de um cangaceiro chamado Lampião, mas isso era lá para os
lados de Pernambuco ou Paraíba, lugares que ninguém nem sabia para que lado
ficavam, terras tão longínquas que para os matutos era como se ficassem no
estrangeiro. De modo que no Poço ninguém podia imaginar que o temível
cangaceiro se encontrasse em Sergipe, e mais precisamente a caminho daquele
povoado pobre, perdido nos cafundós.
No dia 19 de
abril de 1929, o arraial estava em festa, pois, conforme acontecia pelo menos
uma vez por ano, seria ali celebrada uma missa pelo padre Artur Passos, de
Porto da Folha. O vigário, um homem já velho, ranzinza, malcriado e mandão, já
se encontrava no Poço desde a tarde do dia anterior. Estava hospedado na casa
de Teotônio Alves, conhecido como China, descendente de uma das famílias
fundadoras do lugarejo, os Garra. China, casado com dona Marieta Alves de Sá,
era considerado um homem rico: era dono da fazenda Recurso e tinha uma bodega
no povoado, onde vendia de tudo – jabá, café, açúcar, sal, pimenta-do-reino,
rapadura, cocada, querosene, fumo de rolo, alpercatas, perfume, remédio e,
claro, cachaça.
Naquele dia,
muita gente acordou cedo, ansiosa pela festa. João Cirilo e Miquéias foram os
primeiros a entrar na bodega de China e, para aproveitar o dia, ainda em jejum,
já tinham tomado os primeiros goles de pinga, a fim de limpar o estômago. Entre
uma conversa e outra, escutaram um tropel de cavalos. Quando olharam, viram uns
cavaleiros estranhos vindo pela estrada de Curralinho. Os cavaleiros pararam em
frente à bodega. As roupas sujas de terra indicavam que aqueles homens não
vinham por causa da festa. Apesar de usarem chapéus de couro, não pareciam ser
vaqueiros, pois vaqueiros não carregavam armas, e aqueles tinham fuzis
atravessados nos cabeçotes das selas e deixavam entrever os cabos de grandes
punhais metidos nas bainhas, sobre as vestes suadas. Um deles adiantou o cavalo,
deu bom-dia e perguntou se era ali a casa de China. O próprio China respondeu
ao cumprimento e identificou-se. Então o estranho apresentou-se, amistosamente,
mas sem perder o tom severo do rosto:
Colorida pelo professor e pesquisador do cangaço Rubens Antonio
– Munto prazê,
seu China! Me dero boas informação sobre o sinhô. Eu sou o Capitão Virgulino
Ferreira, vurgo Lampião.
China e os
companheiros quase caíram para trás com o susto. Dona Marieta, que ia chegando
naquele instante, preocupada com os preparativos da festa, ao ouvir a terrível
revelação pensou logo no padre, que ainda estava dormindo, alarmada com o que
aqueles malfeitores poderiam fazer com ele.
Percebendo o
vexame, Lampião disse que não precisavam ter medo, pois estava ali de passagem,
não iria fazer mal a ninguém, só queria descansar um pouco e comer alguma
coisa. Dito isto, desmontou do cavalo, no que foi seguido pelos outros
cangaceiros.
Enquanto os
homens amarravam os animais nas árvores, China, ainda atordoado com aquela
situação, foi providenciar cadeiras para os recém-chegados. João Cirilo e Miquéias
se prontificaram a ceder seus tamboretes, na esperança de poder cair fora, mas
Lampião mandou que se sentassem:
– Tem cadera
pra todo mundo, rapazes, nun tão veno qui seu China é home privinido? Fiquem
aí!China trouxe
um banco e algumas cadeiras.
Percebendo que
dona Marieta ainda estava meio atarantada, Lampião voltou a explicar, falando
para o marido:
– Seu China,
diga a sua muié qui ninguém vai fartá cum respeito na sua casa. Diga a ela qui
pegue suas fia, tranque no quarto e bote a chave no bolso.
China, sabendo
por que sua mulher estava tão ansiosa, resolveu expor logo o problema:
– Sabe o qui
é, Capitão, mĩa muié tá munto preocupada purque o vigaro de Porto da Foia, o
pade Artu Passo, tá hospedado aqui na mĩa casa... Ele veio celebrá missa, vai
ter ũa festa hoje im Poço Redondo.
Diante de tão
boa notícia, o rosto austero do Capitão Virgulino se alargou:
– Mais qui dia
de sorte é esse, seu China! Fais tempo qui eu nun vejo um pade! E cadê ele?
– Tá
durmino...
– Durmino
ainda a estas hora? Apois vamo acordá ele, seu China!
China e sua
mulher trocaram um olhar apreensivo. O padre Artur era notório pelo seu gênio
forte, de homem destemido, acostumado a dar ordens e ser obedecido pelos
matutos daquelas brenhas. Era capaz de querer dar um esbregue também no
Capitão.
– Marieta –
disse China, tentando desviar o assunto –, vá prepará um armoço reforçado pros
nossos amigo.
Lampião deixou
que a mulher fosse se desincumbir daquela providência, pois a lembrança do
almoço era uma boa ideia, mas não esqueceu o assunto:
– Seu China,
vamo acordá o pade. Daqui a pouco nóis vai simbora, e eu priciso sabê qui hora
vai sê as reza.
Não tendo
outra saída, China foi até o aposento onde o vigário estava dormindo. Lampião
seguiu atrás. E foi o próprio cangaceiro quem chamou, com voz firme, mas
respeitosa:
– Seu pade? Ô
seu pade? Acorde, home, se alevante, tá na hora do café!...
Supondo que
era China quem chamava, o vigário, que já estava acordado, respondeu,
pachorrento:
– Já vou,
China, já vou. Me desculpe. Eu estava muito cansado da viagem. Já estou velho.
Não aguento mais andar a cavalo. Mas dormi bem, graças a Deus.
– Quem tá
falano aqui nun é China não, seu vigaro – explicou o cangaceiro. – Aqui quem
fala é o Capitão Virgulino Ferreira da Silva, vurgo Lampião!
O padre Artur,
lá de dentro, acabando de vestir-se, admoestou:
– Que
brincadeira é essa, China? Como é que você fala no nome daquele malfeitor, se
comparando com um criminoso tão miserável?
Lampião não
ligou para o insulto e continuou o diálogo:
– Nun se
apuquente não, seu vigaro, mais quem tá falano é Lampião mermo, im carne e
osso...
O padre Artur
Passos nem respondeu, abriu a porta, já aborrecido com aquela brincadeira
estranha do seu anfitrião, que nunca tinha sido de muitas intimidades, e,
quando levantou os olhos, deu de cara com um homem de altura mediana, queimado
de sol, usando um chapéu de couro cheio de espelhos, calçado de alpercatas de
sola, com uma calça meio curta, mostrando as canelas longas e finas. Ao lado
dele estava China, embasbacado, encolhido, e atrás dele dona Marieta, que
segurava o braço do marido, como se nele pudesse encontrar alguma proteção. Foi
ela quem quebrou o silêncio, explicando, como se fizesse as apresentações:
– Pade Artu,
este home chegou aqui agora mermo, dizeno qui é Lampião, mais garante qui é de
pais e nun vai matratá ninguém...
– De paz o
quê, dona Marieta?! – respondeu o padre Artur, cônscio do que estava
acontecendo, pois já tinha ouvido falar que Lampião havia fugido de Pernambuco
–. A senhora já viu criminoso de paz? Seja ou não seja Lampião, um miserável
deste está querendo é desgraçar com todo mundo!
Virgulino
explicou, sem perder a calma:
– Seu vigaro,
a muié de seu China falou certo. Eu tou pur aqui de passage, sou de pais, nun
vou fazê má a ninguém, nun tenho inimigo aqui, e nun vou matratá quem nun é meu
inimigo. O sinhô vai rezá missa?
– Por que você
quer saber se eu vou ou não rezar missa? – perguntou o padre. – Isso é de sua
conta?
– É qui se fô
tê missa eu quiria assisti.
– Você
endoideceu, foi? – exasperou-se o sacerdote. – Pois fique sabendo que um
bandido como você, que vive matando e roubando cristãos, não assiste à minha
missa de jeito nenhum!
– Pade, eu já
diche...
– Mas eu
também já disse, seu bandido atrevido e insolente, que não permito! Na missa
quem manda sou eu! Na casa de Deus, cangaceiro não entra não!
Virgulino
cedeu:
– Tá bom, seu
pade, tá bom. Eu nun vou assisti a missa, já qui o sinhô nun qué.
Vieram nesse
instante avisar que o café estava pronto. China convidou todos para comer, sem
saber como se sairia agora.
O precavido
Lampião cuidou das providências de praxe:
– Seu China,
aqui tem delegacia?
– Tem não, seu
Capitão – respondeu China.
O cangaceiro
pensou um pouco. Falou de seus receios:
– Ói, vai tê
festa hoje. Se o povo subé qui eu tou aqui, adeus festa, corre todo mundo, nun
sei pur quê... Vou tê qui prendê esses dois cabra – referia-se a João Cirilo e
Miquéias –, se não eles vão saí pur aí falano bestera...
China resolveu
o problema: João Cirilo e Miquéias estavam convidados para comer também.
– Nun quero
cumê não, seu China – disse João Cirilo –, eu tou sem apitite...
– Deixe de sê
besta, home – interveio o Capitão –, você vai cumê, sim! Nun tá veno seu China
cunvidá não?
Providencialmente,
tudo deu certo: o velho padre, sem nenhuma objeção, sentou-se à mesa junto com
os cangaceiros – o Padre Artur, Ministro de Deus, numa cabeceira, e o Capitão
Virgulino, o Rei do Cangaço, na outra cabeceira.
O clima
inicial de confronto havia-se dissipado. Os cangaceiros comeram calados. O
padre, também.
Terminada a
refeição – cuscuz com leite, macaxeira e carne de bode assada –, o padre Artur
falou, como se estivesse dando continuidade a um diálogo silencioso:
– Virgulino,
ouça bem o que eu vou lhe dizer. Como sacerdote, eu sou responsável pelo povo
desta freguesia. Não vou permitir que você maltrate esta pobre gente. Escute
isto: se algum dia você tiver coragem de judiar alguém por aqui, eu mesmo reúno
gente e vou arrancar a sua cabeça, onde você estiver.
– Nun se avexe
não, seu vigaro – respondeu o Capitão. – Tudo o qui eu quero é sussego. O povo
daqui nun tem pur que tê medo deu. O meu poblema é cum os macaco. Sordados.
Eles mataro meu pai im Alagoas. Mĩa mãe morreu de disgosto, tudo pur causa dos
macaco e das oturidade, qui só considera cumo gente quem é rico. Quano mataro
meu pai, eu cheguei a dizê qui se pudesse tocava fogo im Alagoas. Despois
mataro meu irmão do meio, Livino, qui nóis chamava Vassoura. E despois mataro
meu irmão mais véio, Antonho, qui eu chamava Isperança. Agora dos home só resta
treis: eu, João e Zequié, aquele cabra ali – e apontou o dedo para Ezequiel. –
João nun é cangacero, veve im Propiá, as veis passa uns tempo im Juazero do Meu
Padim ou no Piauí, purque a nossa famia é munto grande, tem gente ispaiada no
mundo todo. Eu e Zequié tamo cumprino a nossa sina. Aquele ali tamém é da famia
– apontou para Virgínio.– O apilido dele é Muderno. Era casado cum mĩa irmã,
chamada Angerca, qui morreu de ũa febre braba. O sinhô me chamou de bandido
insulente. Mais eu digo uma coisa, seu pade. Eu nun sou ladrão. Quano eu quero
ũa coisa, eu peço. Se ũa pessoa me ajuda, vira meu amigo. Se peço dimais e o
sujeito me mostra qui num pude dá o qui eu quero, então eu abaxo o valô. Agora,
tem ũa coisa qui eu nun perdoo: é traição! Se o cabra qué sê meu inimigo, seja!
Se nun qué, nun seja! Eu respeito o home qui tem corage! Mais nun me atraiçoe!
Eu nun tulero safadeza, o cabra se fazê de meu amigo na mĩa presença, mais nas
mĩas costa se cunluiá cum os macaco, purque aí eu viro ũa fera, e se eu pudé
pegar o fio da peste!...
– Olhe as
palavras, Virgulino. Basta. Já andei lendo sobre você, conheço as suas
justificativas, sei da morte do seu pai, enfim, toda essa situação. O problema
é como você quer resolver as coisas. Pra tudo neste mundo tem um jeito, homem
de Deus. Você não pode querer impor sua vingança diante do mundo todo, pois
desse jeito a coisa não vai acabar nunca...
– Só mexo cum
quem mexe cum eu.
Não estou
certo disso, Virgulino. Você precisa parar com essa loucura, precisa tomar novo
rumo na vida.
– Tá bem, seu
pade. Agora, já qui o sinhô me dá esse conseio, eu lhe peço: deixe eu assisti a
missa... É um pidido qui lhe faço...
O coração do
padre Artur amoleceu.
– Vá. Pode ir.
Só não pode é entrar armado na igreja.
Na sala ao
lado, dona Marieta escutava a conversa, apegando-se a todos os santos que
conhecia para que tudo terminasse bem. Ao perceber que não havia mais perigo,
dados os termos do acordo que acabava de ouvir, correu até a casa da vizinha
para contar a novidade. Assegurou à comadre que Lampião era um homem muito
educado.
Num instante,
todo mundo sabia da notícia: Lampião estava no Poço e ia assistir à missa. Quem
pensou em se esconder mudou de ideia ao ver o padre Artur sair da casa de China
são e salvo, e atrás dele os ilustres visitantes, descontraídos, afáveis,
palitando os dentes.
Começava a
chegar gente das redondezas para a missa – gente a pé, a cavalo, em carros de
bois. Ao ouvirem a novidade, a reação de todos era a mesma: assombro, medo,
curiosidade.
Aos poucos, o
povo foi se aproximando, olhando de longe o movimento na casa de China. João
Cirilo e Miquéias estavam bebendo cachaça com os cangaceiros, cheios de
intimidades. Mandaram chamar os amigos, garantindo que Lampião era amigo do
Padre Autur, ninguém precisava ter medo. Uns meninos passaram na frente da
bodega e Lampião jogou moedas para eles. Quando os moleques chegaram em casa
com aquele dinheiro todo, cessaram de vez os receios. “Eta home danado de bom é
Lampião” – diziam.
Na hora da
missa, a igrejinha estava lotada. Mesmo assim, quando Lampião chegou com seus
homens, as pessoas deram um jeito, se espremeram, coube todo mundo. Lá fora
ficou apenas um cabra, de vigia. Mas Lampião não cumpriu a promessa feita ao
padre Artur: estavam todos armados e equipados.
Durante a
celebração, ninguém prestou atenção ao padre. Mesmo os que estavam na frente
davam sempre um jeito de se virar de vez em quando, a pretexto de qualquer
coisa, para dar uma espiada nos cangaceiros. Lampião sabia rezar, ajoelhava-se
nas horas certas, sentava-se ou ficava de pé nos momentos adequados, respondia
até aos “Dominus vobiscum” – coisas que no Poço só dona Marieta sabia.
Depois da
missa, os cabras dirigiram-se à casa de China, e o povo, já familiarizado com
eles, foi atrás, formando-se um ajuntamento em frente à bodega. China não
conseguia dar conta do movimento. Gente que nunca comprou nada em sua venda, de
repente virou freguês.
O padre Artur
estava preocupado. Desde o amanhecer, os cabras estavam bebendo. Cangaceiro é
cangaceiro, ninguém se iluda. Tinha de mandar Lampião embora, antes que
acontecesse uma desgraça. Resolveu deixar os batizados e casamentos para mais
tarde. Depois de tirar os paramentos, foi bater na casa de China. Ao avistá-lo,
Lampião foi ao seu encontro:
– Mais seu
vigaro, veja o sinhô qui dia feliz! Só tá fartano ũa sofona! Cadê esse tá de
Agenô Pitomba?
– Pois é,
Virgulino, é justamente sobre isso que vim lhe falar. Você me disse que estava
de passagem...
Lampião coçou
o queixo, embaraçado. Estava gostando daquele lugar. Depois dos batizados e
casamentos ia ter festa. João Cirilo tinha dito que à noite ia ter um baile de
arromba, o sanfoneiro era Agenor Pitomba. E outra coisa: nunca tinha visto
tanta mulher bonita. Tudo doidinha por folia, que mulher é bicho danado pra
gostar de cangaceiro. Mas, que fazer? Não se desrespeita um padre, pois ai do
vivente que for excomungado por um padre, vai direto pras profundas dos
infernos.
– Pade Artur,
o qui eu prometi ao sinhô eu cumpro. – E, dizendo isso, alteou a voz: –
Mininos, venham se dispidi e pidi a bença ao pade! Zequié, venha cá. Você
tamém, Virgino. Cadê o resto?
O Capitão
levou o padre até os outros cangaceiros, que estavam se divertindo entre o
povo, olhando de longe para as mocinhas, como quem não quer nada. No alpendre
de uma casa estavam as filhas de Antônio Marques e de Lé Soares. Uma das filhas
de Lé não tirava os olhos do cangaceiro Mariano. E o cangaceiro também estava
de olho nela. Naquele instante Mariano estava conversando com um vaqueiro,
perguntando quais eram os homens ricos do povoado, além de Julião, um velho que
era proprietário de muitas terras, porém sovina como o diabo. Lampião
apresentou o companheiro:
– Este aqui,
seu pade, é Mariano, cabra bom, anda cumigo fais munto tempo, é fio dum lugá
chamado Afogados da Ingazeira, im Pernambuco, lá pras banda do Pajeú, o mermo
lugá onde nasceu Antonho Silvino, de quem na certa o sinhô já viu falá. Se
dispeça do pade, Mariano.
O próximo a
despedir-se foi um cangaceiro avermelhado, de cabelo claro, feições firmes:
– Esse aí é
Luís Pedo, seu vigaro. Ele num gosta de apilido. É cuma se fosse um irmão meu.
É tamém de Pernambuco. E aquele ali é da Quixaba, se chamava-se Anjo Roque e
agora é Labareda, derna de onte qui tá cum nóis. Aquele outo é Zé Furtaleza. Os
outos dois são primo, é Curisco e Arvoredo. E agora venha vê um segipano. Dexei
ele pro fim de proposto. É o premero cabra de Segipe a me acumpanhá. Nóis chama
ele de Vorta Seca.
O padre Artur
ficou chocado com o que via. O cangaceiro sergipano não passava de um menino,
um mulatinho de olhos vivos e jeito brincalhão que nem fios de barba tinha
ainda. O vigário perguntou a idade dele.
– Onze ano –
respondeu o garoto.
– Deus
misericordioso!... – balbuciou o velho padre, condoído com tão terrível
desgraça. – Uma criança...
– Criança!? –
contrapôs Virgulino. – Nun se ingane não, pade Artu. Esse muleque, com essa
carinha de besta, tem corage de fazê coisa qui até o diabo duvida! Nasceu pra
sê cangacero!
O Capitão
levantou o rosto, consultando a posição do Sol, e decidiu que era hora de tomar
a estrada. Pegou o apito que levava amarrado com uma tira de couro à cinta do
cantil e soprou forte duas vezes, chamando os cabras.
– Vou simbora,
pade Artu. Até mais vê. Adiscurpe os mau jeito.
– Deus o leve,
Virgulino. Pense no que eu lhe falei. Arranje um jeito de largar essa vida.
Procure o coronel João Maria, da Serra Negra. Ou o coronel Antônio Caixeiro, da
Borda da Mata. Diga que falou comigo. Eles podem lhe ajudar.
– Munto
obrigado, seu pade.
Enquanto
Lampião ia falar com China, o padre Artur Passos procurou Volta Seca, que já
estava montado, junto com os companheiros. Estava sinceramente preocupado com o
destino daquele pobre menino. Segurando as rédeas do cavalo do garoto
cangaceiro, o padre perguntou:
– Meu filho,
por que você deixou sua família, para seguir essa vida?
– Eu nun tenho
famia. Meu pai agora é Lampião.
– Você tem
certeza de que é essa a vida que quer ter?
Embora a
pergunta fosse feita a Volta Seca, quem respondeu foi Mariano, que estava
perto, escutando a conversa:
– Ninguém é
cangacero purqui gosta, seu vigaro. Nóis nun tem outo jeito não. A nossa vida é
esta.
– E vocês não
têm medo das forças do governo?
– Medo de
macaco? Nóis? Os macaco é qui se pela de medo da gente, home!
A conversa de
Lampião com China foi reservada. O Capitão estava interessado em coisas
práticas. Queria saber se Aracaju ficava longe e se em Itabaiana havia muitos
macacos.
– Capitão, se
o sinhô tá pensano im ir pro Aracaju, pode mudá de ideia, purque fica nos
confim do mundo. Tabaiana é a merma coisa. Lá quem manda é o coroné Dorinha, e
a cidade tem mais sordado do qui gente!
– Seu China,
quem foi qui diche qui eu quero ir pra Aracaju? Daqui eu vou é pra Serra Nega!
Agora, mudano de assunto, eu quero qui o sinhô me conte aí a histora de uma
butija qui o sinhô achou.
China tomou um
susto. Até isso tinham contado a Lampião?!
– Butija, seu
Capitão? – perguntou China, se fazendo de desentendido.
– Me conte a
histora da butija, seu China – insistiu o cangaceiro. – O sinhô achou ou nun
achou ũa butija?
– Ah, sim, a
butija... Já lhe falaro disso pro sinhô, é? Foi coisa sem importança, Capitão.
Eu tive um sonho, ũa arma do outo mundo dizeno onde tinha um dinhero interrado
nũa casa véia.
– E tinha
dinhero mermo, seu China? Quanto?
– Ũa bobage,
Capitão. Era ũas mueda do tempo antigo, qui nun circulava mais, nun valia de
nada...
– Foi isso mermo
qui me dichero, seu China. Eu tava só quereno uvi a histora de sua boca. E
agora vou simbora. Diga a dona Marieta qui adiscurpe o trabaio qui nóis deu a
ela. Munto obrigado pur tudo.
– Eu é qui
agardeço, Capitão.
Saindo do
interior da casa, Lampião soprou o apito novamente e dirigiu-se ao cavalo.
Aumentou o alvoroço. As pessoas esticavam-se na ponta dos pés para ver mais uma
vez o Capitão Virgulino, que estava indo embora. As moças apinhavam-se nas
portas e janelas. Dizia-se que Volta Seca tinha dado um de seus muitos anéis a
Mocinha de Dedé, e ela agora mostrava o presente às amigas, que morriam de
inveja.
China veio
falar de novo com Lampião, que já considerava seu amigo:
– Capitão,
gostei munto do sinhô. Se argum dia vosmicê vinhé de novo pur aqui, a casa tá
as suas orde. Se eu nun tivé aqui, tou no terreno. Tenho ũas terrinha num lugá
chamado Recurso, logo aí na saída da rua.
– Eu já sabia,
seu China. Mais é assim qui se fala. Tou veno qui o sinhô é um cabra macho. Cum
certeza vou vortá outas veis aqui. Até mais vê!
O Rei do
Cangaço, imponente em sua montaria, acenou para o povo de Poço Redondo. Os
cangaceiros esporearam os cavalos, fazendo cabriolas, mostrando destreza, e
dispararam a galope pela estrada que ia para a Serra Negra. O povo ficou olhando
o bando se afastar levantando uma nuvem de poeira.
Todos estavam
maravilhados com os modos gentis do Capitão cangaceiro. A partir dali, os mais
velhos teriam muito que contar, muito assunto para os encontros com os amigos.
E os mais novos teriam razões para sonhar de olhos abertos, imaginando novas
perspectivas em suas vidas. Devia ser maravilhoso viver como cangaceiro, ficar
famoso, ter dinheiro, ter mulheres, ser temido e adulado aonde chegasse,
podendo fazer o que quisesse na vida, como Volta Seca, que aos onze anos de
idade já era homem!...
Em vez de ir
para a Serra Negra, como dera a entender ao sair de Poço Redondo, logo adiante
o astuto cangaceiro mudou de rumo, pegando a estrada de Monte Alegre.”
* * *
O texto acima,
entre aspas, é reprodução literal do capítulo 95 de Lampião – a Raposa das
Caatingas. No capítulo 174, faço considerações acerca das circunstâncias que
levaram Poço Redondo a ser identificada como “A Capital do Cangaço”.
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