Por Rangel Alves
da Costa*
Hoje vivo
catando cada pedacinho de fato para ter uma história. Como os principais
personagens da saga sertaneja já não vivem mais, eis que tenho de me contentar
em ouvi dizer, em perguntar a um e outro, remendando situações para costurar
possibilidades. Mas não era para ser assim, não diante de muitas situações,
pois convivi com as mesmas pessoas que agora surgem como de importância
primordial para as minhas pesquisas.
Assim
aconteceu com Abdias, vaqueiro maior do sertão de Poço Redondo, meu berço de
nascimento, e amigo fiel e cabra de confiança do famoso Zé de Julião.
Enedina esposa do Zé de Julião - foto do acervo do escritor Alcino Alves Costa
Famoso no
próprio contexto histórico, eis que além de ter sido o cangaceiro Cajazeira do
bando de Lampião - esposo da também cangaceira Enedina, morta na chacina de
Angico - foi também um dos personagens mais marcantes da história política
sertaneja, e esta com feição de verdadeira tragédia. Sua saga também serviu de
mote distanciado ao filme “Aos ventos que virão”, de Hermano Penna.
Zé de Julião o cangaceiro Cajazeiras
Não tive o
prazer e a honra de conhecer Zé de Julião, assassinado em 1961, mas conheci e
convivi com Abdias durante muito tempo, porém sem saber de sua trajetória ao
lado do ex-cangaceiro e político. Sabia apenas de sua história de grande
vaqueiro, de destemido homem em cima de cavalo alazão, de sua ligação com a
terra e com a vaqueirama. Sem nada conhecer de sua proximidade com Zé de Julião
nem do que havia representado no famoso episódio do roubo das urnas, sequer
pude lançar qualquer indagação sobre aqueles fatos ainda hoje tão instigantes.
Culpo-me,
porém nem tanto assim, pois naqueles tempos ainda não possuía essa sede pela
história sertaneja que hoje possuo, ainda não estava atraído pela heroica saga
de minha gente matuta. Era apenas um rapazote amigueiro de velhos sertanejos,
principalmente daqueles moradores da Rua dos Vaqueiros e arredores, ilustres
cidadãos como Chico de Celina, João Paulo, Galego, Neguinho, Humberto, Messias
de Zé Vicente, Mané Vítor, Liberato, e tantos outros. E logicamente de Abdias.
Recordo-me bem
que nossos encontros certeiros geralmente ocorriam ali mesmo na Rua dos
Vaqueiros (ou Rua de Baixo, depois 31 de Avenida Março e agora Avenida Alcino
Alves Costa) e principalmente ao pé do balcão ou ao redor do sinuca do Bar
Gineta, de propriedade de Né Cirilo, o Pai Né. Toda essa vaqueirama ali se
reunia para talagar casca de pau, conversar sobre chuvas e estiagens, colocar
em diante os assuntos próprios do sertão. E eu no meio deles, pois sempre
gostei de dar atenção aos velhos conterrâneos e aprender nas suas lições
matutas.
Morando por
ali, bastava chegar ao local e logo avistava Abdias pelas calçadas conversando
com companheiros ou já ao pé do balcão pedindo um angico ou umburana. Homem
alto, esguio, sempre de chapéu de couro, a humildade em pessoa, amigueiro e bom
de proseado. Naquele tempo eu sabia apenas de sua outra fama, ou seja, que era
irmão dos ex-cangaceiros Sila, Mergulhão, Novo Tempo e Marinheiro, e também
primo dos irmãos ex-cangaceiros Adília e Delicado.
Verdade é que
se Abdias não teve o mesmo destino de seus irmãos, preferindo a vida de
vaqueiro nas brenhas fechadas e espinhentas de seu sertão, ainda assim teve
participação ativa no “bando” do ex-cangaceiro Cajazeira, o Zé de Julião. Era
tido por este como o mais experiente de todos, como o mais fiel e destemido, e
por isso mesmo foi escalado para tomar frente ao lado dele no famoso episódio
do roubo das urnas nas eleições de 1958, a segunda de Poço Redondo.
A eleição de
1958 era a segunda disputada pelo ex-cangaceiro. Na primeira, após enfrentar
perseguições políticas pela sua condição de ex-cangaceiro, experimentar contra
si a máquina do poder estadual e todos os tipos de reveses, saiu da eleição
derrotado por Artur Moreira de Sá. Havia sido empate: 134 a 134, mas Artur
acabou vencendo pelo critério da idade. E a segunda eleição seria ainda mais
terrível para Zé de Julião.
Dessa vez,
além de as perseguições se redobrarem e as arrumações para a vitória do
candidato Eliezer Santana serem vergonhosas, os títulos dos eleitores do
ex-cangaceiro não foram entregues. Revoltado ao extremo, profundamente
indignado com tanta injustiça contra si praticada, e sabendo que já estava derrotado,
o candidato da terra resolveu tomar uma atitude extremada, invadir as seções
eleitorais e roubar as urnas. E assim fez.
No dia do
pleito, mais de cem cavaleiros amigos se juntaram nos arredores e entraram em
audacioso tropel pelas ruazinhas da cidade. À frente seguia Zé de Julião e seu
fiel escudeiro Abdias. Na primeira seção que encontrou, o ultrajado candidato
desceu do cavalo e entrou calmamente no local de votação. Não demonstrou
qualquer brutalidade nem arrogância com as pessoas do local. Mas ao olhar de
lado e avistar a urna de votação numa cadeira, abrasou o semblante e, num
acesso de cólera, puxou-a com violência. O passo seguinte foi arremessá-la pela
janela. E do outro lado estava Abdias para recebê-la.
Em seguida Zé
de Julião montou no cavalo e o tropel seguiu em disparada para fazer a catação
em outros locais. E essa história continua com cenas realmente
cinematográficas, mas absolutamente verdadeiras naqueles idos sertanejos. E
exatamente sobre outros fatos dentro desses acontecimentos que eu perdi a
oportunidade de conversar com Abdias. Eu perto dele, junto de personagem tão
importante na epopeia sertaneja, brindando o sertão com casca de pau, sem
jamais ter feito uma pergunta sequer acerca de seu grande amigo Zé de Julião.
Que pena!
Poeta e
cronista
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