Material do acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho
COMO SE FORJA
UM CANGACEIRO
FERRUGEM MATA
GAVIÃO
O BANDO deixou
o arraial de Queimada em duas turmas, e carregamos dois moradores para servirem
de guias. Andamos muito, e tal foi a desorganização da retirada, que o bando
ficou dividido em vários grupos. No último grupo vínhamos o guia, eu, Ferrugem
e Gavião, mas é bom não confundir este Gavião com o que mencionei na história
de Sabiá. Aquele ainda não tinha aparecido, e era um rapaz. O Gavião a que me
refiro era um caboclo já maduro, veterano do bando, mau como cobra cascavel, e
uma das criaturas mais sórdidas que já conheci.
O guia que vinha com o nosso grupo a todo instante reclamava, pois o seu cavalo
estava estrompado e mancando, além de tudo, implorou para que o deixássemos ir
embora, mas Gavião, por perversidade, não permitiu. Eu então observei-lhe que
já não precisávamos mais de guia, mas ele não ligou. Ferrugem aborreceu-se e
disse também que o guia já podia ser dispensado. Gavião enfureceu-se, disse que
o guia continuaria e, se o importunassem muito, ele mataria o infeliz. E
acrescentou que, quando o cavalo cansasse de vez e caísse morto, o guia
continuaria a pé!
O FIM DE
GAVIÃO
OLHEI para
Ferrugem e ele compreendeu meu olhar. Nenhum de nós gostava do Gavião, e aquela
era a hora ideal para ajustarmos contas. Então eu disse: - “Gavião, o guia vai
voltar daqui e você não vai fazer nada!” Gavião olhou-me ironicamente e, quando
fez menção de levantar o fuzil, Ferrugem acertou-o no peito, não me dando tempo
de participar.
Gavião ficou estirado no chão, morto, e eu perguntei a Ferrugem o que diríamos
a Lampião. A coisa não estava boa, pois Virgulino não admitia brigas no bando,
dizendo que nós éramos todos irmãos. Depois, ele gostava de Gavião.
De tanto pensar eu tive uma ideia. Chamei o guia e disse-lhe que apanhasse as
armas de Gavião, cortasse suas orelhas e montasse no seu cavalo. Quando
chegasse ao povoado, dissesse que matara o Gavião e, provavelmente, ele
ganharia um prêmio. O guia sorriu com a ideia, agradecendo de joelhos a mim e a
Ferrugem por lhe termos salvo a vida. E fez o que lhe disse. Tirou o
equipamento de Gavião e, com a faca de Ferrugem, cortou-lhe as orelhas e as pôs
no seu bornal. Em seguida, montou no cavalo dele e, depois de muito agradecer
nossa interferência, lá se foi. Eu e Ferrugem continuamos a avançar até que
encontramos, ao fim de um dia, o resto do bando. Lampião, mal nos viu,
perguntou logo:
- “E o Gavião?”
Respondi: - “Ele se atrasou e vem por aí com o
guia”...
Os dias se passaram, e Gavião não apareceu. Um mês ou mais depois, um jornal de
Salvador caiu nas mãos de Lampião, trazendo na primeira página, em manchete, a
história de um rapaz improvisado em guia e que liquidara o “perigoso cangaceiro
Gavião”... Trazia até a fotografia do rapaz com o equipamento e as orelhas de
Gavião, uma em cada mão. Lampião leu e enfurecido bradou: - “Ah! Se eu pego
esse cão...”
Eu e Ferrugem nos entreolhamos e nunca mais, nem eu, nem ele, tocamos no
assunto. O rapaz “matador de cangaceiro”, que não era bobo, nunca mais voltou
ao mato.
A ESTRATÉGIA
DE LAMPIÃO
A vaidade de
Lampião fazia-o crer que era um grande estrategista militar. Não que ele
entendesse de tática guerreira, mas possuía um raciocínio rápido e de que sabia
fazer bom uso nas horas de tiroteio. Calculava como ninguém as evoluções da
força volante e era capaz de dizer que dentro de tantas horas estaríamos numa
refrega. O bando, tal era a precisão de seus atos na hora da luta, devotava uma
confiança ilimitada nas suas ordens. Ele nunca se enganava, e os soldados que
nos combatiam sabiam muito bem como era difícil surpreender Lampião. Mesmo
depois de cercado, Lampião era difícil de ser dominado.
Sua esperteza para fugir dos inimigos era tão impressionante, que relatarei uma
delas, que presenciei e não consegui esquecer jamais. Certa feita, quando
andávamos perseguidos, Lampião, depois de fugirmos muito, resolveu pregar uma
peça aos soldados e mandou que catássemos cascas de Ouricuri. Essas cascas
assemelham-se bastante a uma canoa de pescador, só que são mais curvas e muito
menores, é claro, do tamanho de um chapéu, mais ou menos.
De posse das cascas, Lampião ordenou que se colocassem as mesmas sobre várias
casas de cupim, mandou armarem algumas trempes e fez fogo. Era noite e,
terminado o trabalho, batemos em retirada sem querer saber do resultado na
hora. O aspecto que apresentavam os cupins com as cascas por cima era o de um
cangaceiro de chapéu de couro com aba virada na frente. O recurso psicológico
da noite, bem como do fogo, ajudaram bastante ao plano de Lampião.
Muito longe do local, em nossa retirada, ouvíamos os estampidos de uma violenta
fuzilaria. No dia seguinte, soubemos que os soldados, julgando que se tratava
do bando em torno do fogo, puseram-se a atirar e acabaram entrando em confusão,
havendo até morte entre eles, sem contar os feridos... E os comentários entre
eles era de que enfrentaram Lampião, causando-lhe baixas.
POR QUE O CEARÁ
ESCAPOU
LAMPIÃO
gostava muito de atacar pela retaguarda. Se perseguido, fazia tudo para
adiantar-se e surpreender o adversário pelas costas, andando em círculos.
Surpreendido, porém, ordenava aos “cabras” “queimar só numa direção”, o que
equivalia a dizer que atirar para todos os lados seria perder tempo. Atirando
só para uma direção, aquele ponto era dizimado e oferecia uma brecha para a
fuga.
A pouca idade e o tempo decorrido não me permitiam uma melhor compreensão para
explicar as táticas usadas para tomar uma cidade de assalto. É bem verdade que
poucas vezes tivemos que agir assim, pois quase sempre Lampião pedia ao
prefeito ou ao delegado para entrar com o bando. Se houvesse recusa, ele entrava
pela violência, mas antes fazia com que vários homens se infiltrassem no
povoado. Ele sabia comandar, e na hora do tiroteio era um gigante, sempre à
frente. Sua coragem não faltava nunca, e ele sabia que ela era a sua fiadora
junto ao bando. Era sempre quem atirava primeiro e, se ainda há tempo para
acrescentar um detalhe, convém dizer que Lampião possuía uma pontaria
espantosa.
Mas geralmente não atacávamos povoados, entrávamos pacatamente e tomávamos
conta de tudo. O bando entrou em muitas cidades, inclusive em Juazeiro, a
cidade do Padre Cícero, que tudo fez para converter Virgulino. Lampião tinha
grande admiração pelo Padre Cícero, a ponto de o santo homem lhe pedir para não
fazer estripulias no Ceará. Lampião atendeu quanto pôde a esse pedido, pois, de
fato, o Ceará foi, dos estados nordestinos, o que menos sofreu os efeitos do
cangaço do “capitão” Virgulino.
Próximo
capítulo: o bando sabia admirar os corajosos
CONTINUA...
Fonte: facebook
Página: Antônio
Corrêa Sobrinho
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