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terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Deus e o diabo na terra do sol

portaldocangaco.blogspot.com

A noite em que Padre Cícero conversou com Lampião

Ali estavam, frente a frente, pela primeira e única vez, Lampião e Padre Cícero, os dois maiores mitos de toda a história nordestina. Uma terceira figura mitológica era indiretamente responsável por aquele encontro inusitado: 

Luis Carlos Prestes - molinacuritiba.blogspot.com

Luís Carlos Prestes, o comandante da Coluna Prestes, movimento militar guerrilheiro que desde o ano anterior serpenteava pelo interior do país, enfrentando as tropas do presidente Artur Bernardes. 

Quando a marcha da coluna revolucionária rumou para o Nordeste, o governo federal não teve dúvidas: convocou os chefes políticos locais para formarem exércitos próprios e combater os rebeldes. No livro O General Góes Depõe, da década de 1950, o próprio general Góes Monteiro, chefe do Estado-Maior das operações contra a Coluna, assume que partiu dele a ideia de convocar jagunços e cangaceiros para fazer frente ao avanço de Prestes. 

Floro Bartolomeu e Padre Cícero - onordeste.com

No Ceará, coube ao deputado Floro Bartolomeu, médico e aliado político do Padre Cícero, fazer o convite oficial ao bando de Lampião para se engajar no “Batalhão Patriótico”.


Em fevereiro de 1926, Padre Cícero ainda tentou uma solução pacífica. Enviou aos revolucionários uma carta em que os incitava a depor armas. Em troca, prometia-lhes abrigo em Juazeiro do Norte (CE), onde teriam garantias legais de que seriam submetidos a um tratamento justo. De acordo com o relato de Lourenço Moreira Lima, secretário da Coluna revolucionária, a mensagem foi recebida. “Tivemos a oportunidade de ler essa carta, escrita com uma grande ingenuidade, mas da qual ressaltava o desejo íntimo e sincero do padre no sentido de conseguir fazer a paz”, escreveu Moreira Lima em seu diário de campanha, publicado em 1934. O pedido, como se sabe, foi ignorado. 

Quando Lampião chegou no dia 4 de março à cidade de Juazeiro do Norte, atendendo ao chamado de Floro, este não se encontrava mais por lá. Doente, o deputado federal viajara para o Rio de Janeiro, onde acabaria morrendo. 

Padre Cícero se viu então com um problema nas mãos: recepcionar o famoso bandido e seus cabras na cidade e, mais ainda, cumprir o que havia sido combinado entre Lampião e o deputado, com a devida aprovação do governo federal: o cangaceiro deveria receber dinheiro, armas e a patente de capitão do “Batalhão Patriótico”. Lampião e outros 49 cangaceiros ocuparam uma casa próxima à fazenda de Floro, nas imediações da cidade, e, em seguida, alojaram-se em Juazeiro do Norte, no sobrado onde residia João Mendes de Oliveira, conhecido poeta popular da região. 

Foi lá que, da janela, Virgulino atirou moedas ao povo e onde, durante a madrugada, Padre Cícero encontrou o bando. Os bandidos, ajoelhados em deferência ao sacerdote, teriam ouvido o padre tentar convencer seu líder a largar o cangaço logo após voltasse da campanha contra Prestes. Mandou-se então chamar o único funcionário federal disponível na cidade, o agrônomo 

Pedro Uchôa - tokdehistoria.wordpress.com

Pedro de Albuquerque Uchoa, para redigir um documento que, supostamente, garantiria salvo-conduto ao bando pelos sertões e, principalmente, concedia a prometida patente. O papel, como Lampião viria a descobrir tão logo saiu da cidade, não tinha qualquer valor legal, o que não o impediu de assinar, daí por diante, “Capitão Virgulino”. Ciente da desfeita, o cangaceiro não se preocupou mais em dar combate à Coluna Prestes. Já obtivera dinheiro e armas em número suficiente para seguir seu caminho de bandoleiro, agora ostentando orgulhoso a falsa patente militar. Mais tarde, o agrônomo Uchoa justificou seu papel no episódio: diante de Lampião, assinaria qualquer coisa. “Até a destituição do presidente da República”, disse.

http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/lampiao-dragao-maldade-436085.shtml

O GADO COMENDO O OSSO DO BARRO E O HOMEM COMENDO O OSSO DO GADO (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

O GADO COMENDO O OSSO DO BARRO E O HOMEM COMENDO O OSSO DO GADO 

Mentira não. Tudo verdade. Os mais velhos afirmam com convicção e lágrima querendo vingar no canto do olho sem brilho: é a maior seca que assola o sertão nos últimos cinquenta anos.

Não é lorota não. Tudo verdade. E de doer nos olhos e nos sentimentos. Desde três anos ou mais que a estiagem desceu num raio de sol e resolveu fincar moradia. E de tanto reconhecer o lugar que é tão seu, parece não querer mais arribar de volta.

Tanque, açude, barragem, riacho, cacimba, olho d’água, tudo vazio, sem uma gota sequer pra matar a sede do homem e do animal. O que estava lamacento virou barro de vez; o barro petrificou. Daí os barreiros parecendo crateras cheias de lanhos profundos.


A mataria - que já era rala devido ao desmatamento desenfreado - foi secando, curvando, morrendo. A catingueira desnuda tenta resistir às dores, aroeira e umburana esmorecem, planta rasteira vira graveto.

O mandacaru, de braços eternamente abertos implorando clemência divina, nem parece mais com a planta sempre verdejante de outros tempos. Está magro, ossudo, cinzento, feio, quase não resistindo. Apenas aqueles espinhos feitos punhais dos vencidos.

Sertão adentro, já desde muito tempo que não se fala mais em bicho de caça. Agora então, que não se encontra mais qualquer pegada por cima da terra seca. O preá, que deveria existir sempre que o sertão continuasse existindo, até ele se tornou difícil encontrar. Caçar o que, comer o que?

Neste terrível cenário de dor e sofrimento, em meio aos gravetos, pedras e espinhos espalhados no chão, o calango reina praticamente sozinho. Mas agora mais assustado, mais amedrontado, parecendo não acreditar naquela devastação. E sai saltitando, correndo apressado em busca de qualquer loca para fugir do braseiro na terra.

Gado pastando é coisa rara de se ver. Tudo esquelético, tropeçando no peso da própria ossada, caindo. Cachorro magro, dois palmos de língua pra fora. Uma sede danada, um calor de torrar pedra. Urubus voejando contentes por todo lugar. Tristeza danada, seu moço!


Não há pasto e o gadinho que resta se deita pelos cantos sem forças nem para ruminar. A lágrima escorre do olho fundo, o mosqueiro zanzando ao redor. Na pele ossuda apenas o resto do resto. Mais adiante se espalham as carcaças, as cabeças ocas e ainda com pontas daqueles que deitaram para a morte.

Panela vazia e pote também; o menino vira a moringa e diz ao pai que tá com sede. O homem só falta endoidar sem ter muito o que fazer. Corre a catar no fundo da lata um resto de água suja. Depois de coada há de enganar a danada. Talvez o carro-pipa só passe amanhã, mas nunca para deixar mais que duas latas d’água.

Dali a pouco o mais novo e também mais buchudinho – acostumado a viver com a boca cheia do barro da parede – vai começar a chorar pedindo comida. Todo dia é esse sofrimento para dar de comer a meninada. Quando tem farinha, vai de farinha seca; quando tem pão, vai o pão seco mesmo; quando tem feijão com ovo então é uma festa. E quando não tem nada, como sempre acontece de nada ter?

Pedir a político não vai mais não. Já sabe bem como tudo acontece. Na hora de pedir voto leva cesta de comida e até água mineral, paga uma continha pequena e promete o mundo e o fundo, mas depois que ganha esquece de todo mundo. Na última vez que foi implorar uma carrada d’água simplesmente ouviu que rezasse pra trovoada cair.

O sol anda batendo tão forte pelas bandas do sertão que até miragem tem causado. Teve um cabra que jurou ter avistado um poço cristalino bem no meio do tempo. O coitado correu e deu um batim com roupa e tudo. Arranhou-se todinho na areia espinhenta e cheia de pedras. Outro se danou a tomar banho de chuva debaixo da fornalha do sol. Endoideceu.


E sentados na pedra grande, com feições queimadas dos dias quentes, dois velhos sertanejos proseavam sobre aquela situação. Foi quando um perguntou ao outro se lembrava do causo do gado comendo o osso do barro e o homem comendo o osso do gado. E outro, parecendo ainda mais entristecido, respondeu que sim. E ajuntou:

“Num é causo não cumpade, é o que nóis tamo passano. Tá tudo aí na frente dos óio, e agorinha mermo pá num deixá mentir. O gado comeno o qui incronta, seje barro de aguada ou fiapo de pau. E o homi comeno o gado que cai morto. Cuma o gado só tem osso, entonce o homi acaba roeno o osso do gado”.
  
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE. 

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

A Literatura de Cordel enquanto veículo de contestação: O caso do cordel “Confusão no Cemitério”


Por José Romero Araújo Cardoso

Marca indelével da cultura nordestina, a literatura de cordel traduz reações diversas, ao nível ficcional, de críticas a situações injustas e desejos internalizados em efetivar mudanças sociais praticamente impossíveis de se concretizarem no plano real.

O preconceito com relação à literatura de cordel impediu que um brilhante cordelista paraibano, radicado no Rio de Janeiro, conhecido por Raimundo Santa Helena, pudesse concorrer a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Essa manifestação, com certeza, está ligada às condições materiais e sócio-econômicas da produção desse gênero literário, do qual possui vínculos, primordialmente, com as camadas menos favorecidas, sobretudo no Nordeste brasileiro, riquíssimo celeiro de cordelistas e repentistas, a exemplo de Leandro Gomes de Barros, considerado de fato o verdadeiro “príncipe dos poetas brasileiros”, na expressão simpática de Carlos Drummond de Andrade.

Carlos Drumond de Andrade

A arrogância do refinamento “erudito” impede que a literatura de cordel seja valorizada na forma exata como merece ser, principalmente devido a “má qualidade da impressão, o pouco caso com a “correção” linguística  a presença marcante da oralidade, o fato de ser tradicionalmente vendida em feiras e o tipo de consumidor, em geral pessoas de baixo nível escolar.
No ensejo da resistência cultural empreendida pelos grandes menestréis das feiras e esquinas da maioria das cidades regionais, encontramos o homem e a luta pela afirmação da literatura de cordel personificados em José Ribamar Alves, um dos nobres guerreiros da cultura popular aquartelado em Mossoró, Estado do Rio Grande do Norte.

arievaldocordel | POETA JOSÉ RIBAMAR, DE MOSSORÓ
José Ribamar Alves

José Ribamar Alves nasceu em 16 de março de 1962, no sítio Solidão, município de Caraúbas, Estado do Rio Grande do Norte, embora registrado em Severiano Melo, Estado do Rio Grande do Norte, onde foi criado. É filho de José Alves Sobrinho e Rosa Maria de Carvalho. Casado com Rita de Oliveira Carvalho, reside em Mossoró, Estado do Rio Grande do Norte. Tornou-se repentista profissional a partir de 1983, sendo autor de diversos títulos de cordel, a exemplo de “Armadilhas do Destino”, “Pela Vida do Planeta”, “A Quebra de Silêncio”, “A Crueldade de Osama e A Vingança de Bush” e “Confusão no Cemitério”.

No cordel “Confusão no Cemitério” (Coleção Queima-bucha de Cordel – nº 10 – Março de 2002 – Mossoró - RN), cuja inovação na arte de capa, em xilogravura, se deve ao não menos renomado poeta popular Antônio Francisco, efetivada pelo artista plástico e poeta Laércio Eugênio, José Ribamar Alves expressa os pormenores do seu IMAGINÁRIO fantástico ao contestar a ordem estabelecida através de confusões na vida após a morte.

Um cemitério do Rio de Janeiro, cidade onde os contrastes são mais acentuados, imperando a violência urbana e a corrupção, as quais andam de mãos dadas em consonância com o recrudescimento das diferenças interclasses, serve de cenário para a narrativa.

As confusões de um coveiro atrapalhado, conhecido por “biriteiro”, são narradas na terceira pessoa do singular, as quais tiveram como veículo as confissões de um personagem que o autor deu o nome de Fernando de Risadinha.

Invocando contatos com o além, José Ribamar Alves traça o perfil da sociedade através da continuidade das relações de poder observadas no mundo dos vivos. O coveiro recebe visita de pessoa morta que vem lhe reclamar do serviço errado que o deixou com as costas viradas no túmulo, de cujo gesto de vingança consistiu em trocar as cruzes do cemitério, invertendo as identificações dos mortos das quais pertenciam.

A cruz de um marginal vai parar no túmulo de um Juiz Federal, enquanto um vigário e um pastor, após as inversões, acabam brigando, suscitando que faleceram desconhecendo o significado da palavra “amor”. Cartola desesperado com a confusão da troca de cruzes demonstra que tem poder, mesmo após a morte, convocando a repressão do aparelho do Estado, da mesma forma quando vivo, fazendo o maior escarcéu na necrópole, invocando ainda os poderes de um pai de santo, também falecido.

Como no mundo dos vivos, apenas pobres e excluídos sofrem com a algazarra das almas penadas, enquanto chefão de drogas, banqueiro de jogo, advogado e político não são molestados.

O desejo de revanche fica explícito quando a alma de um “cabra desassombrado” “Meteu um braço de cruz/ Na nuca dum delegado/ Que ele caiu por cima/ Da caveira dum soldado” (Confusão no Cemitério, estrofe XXII). Isso serviu para “despertar” os marginalizados da letargia em que se encontravam, atentando contra a ordem estabelecida e afirmando, dessa forma, a contestação ao status quo. Rebelam-se mundana, travesti e jogador, além de cego, maneta, perneta, mudo, gari, escritor, jornalista, motorista, prefeito e vereador. Na verdade, desencadeia-se uma revolta em todas as classes, condicionada pela hegemonia que desfrutam àqueles que detém o poder, levando o autor a indagar sobre a repetição, entre os mortos, das mesmas situações de desigualdades terrenas, quando o cordelista destaca que “Também sei que entre as classes/ Há muita desigualdade/ De tudo elas são capazes/ Mas pra falar a verdade/ Eu não sabia que os mortos/ São da mesma qualidade” (Confusão no Cemitério, estrofe XXIX).

A exclusão social, infelizmente, ainda é uma mácula na sociedade brasileira e o cordel, enquanto instrumento de afirmação das classes populares, cumpre o papel de bradar contra as injustiças e em favor das aspirações do povo brasileiro.

Em “Confusão no Cemitério” José Ribamar Alves sintetiza a cosmovisão popular e o seu imaginário quanto ao desejo de buscar a superação das distorções sociais que separam ricos e pobres num fosso indevassável da realidade criada pelas elites que se arvoraram em donas do poder desde nossa formação sócio-econômica.

José Romero Araújo Cardoso. Geógrafo. Professor-adjunto da UERN.

http://blogdomendesemendes.blogspot.com