*Rangel Alves
da Costa
Olhares que
sempre abrem janelas para avistar belas paisagens, jardins floridos, sensações
confortantes ao espírito e alma. Pessoas que caminham por canteiros perfumados,
alamedas verdejantes, flamboyants vistosos. Seres que passeiam fugindo de
outras realidades, distanciando-se como podem das periferias empobrecidas e das
pessoas rotas. E dos cachorros sem coleira e dono.
Pés existem
que fogem da terra, da estrada nua, da pedra e do espinho, da poeira e do pó.
Óculos escuros e andejar cabisbaixo acaso corra-se o risco de se deparar diante
daquilo que jamais deseja encontrar: a pobreza, a magrém, a desvalia, o
molambo, o pé descalço, o olho remelento, a boca seca de sede, a barriga
roncando de fome, o olhar entristecido de desesperança. O mesmo semblante de um
cão sem dono que passa a viver a miséria renegada de tudo. Ninguém sequer ousa
se aproximar.
Cão sem dono,
vidas de cachorros inermes, de imprestáveis vira-latas, de pelancudos e
desdentados. No mesmo caminho da vida também a estrada por onde segue o cão sem
dono, o faminto, o abandonado e esquecido. Talvez um latido fizesse com que
alguém prestasse atenção à sua presença, se tivesse força para morder talvez
sentisse sua ameaçadora importância. Mas apenas um cão sem dono, um vira-lata,
um cachorro qualquer. E pelas ruas uma verdadeira matilha ao querer do sol, ao
querer da lua.
Cachorro de
rua! E logo a simbologia do imprestável, do asqueroso, do fedorento, do
pulguento, da doença e da mazela. Ora, já não possui serventia alguma. O mundo
só valoriza aquilo que lhe retribui com lucro ou outro proveito material.
Afagando os egoísmos e as vaidades estão os cachorros de raça e não os
vira-latas. Coloca-se veneno no osso jogado e pronto, o serviço está feito,
menos um cachorro para importunar aquele que precisa passar com o seu basenji,
o seu pastor alemão, o seu basset, o seu beagle, o seu chiahuahua. Os dálmatas
podem viver, os dobermanns e os lhasas também. Mas cachorro de rua não.
O cachorro de
rua é a praga, é a erva daninha, como disse a madama enquanto passava ao longe
com o seu lulu embonecado. De serventia de lixão e monturo, jamais deveria se
misturar aos que estão pela cidade, como asseverou o de anel enquanto beijava o
focinho de seu terrier. Há perfume de cachorro de luxo, há shampoo para
cachorro de rico, há roupinhas, fraldas, bercinhos e até pousadas e creches.
Comida importada também. E apenas a rua ao cachorro de rua.
Contudo, não
se engane que a mesma analogia é feita com relação ao menino de rua, ao adulto
de rua, ao idoso de rua, a tudo que perambule ao leu e ao abandono pelos
caminhos da desumana cidade. São os cães sem dono, os cães evitáveis, os cães
insuportáveis. Ao lulu burguês não falta a dieta balanceada, mas como matar a
fome destes que nem sempre possuem um pão? Ora, como se costuma desumanamente
dizer, quem vive na rua deve catar o seu próprio lixo e se fartar dos restos
dos restos. Significa dizer que não precisariam viver.
Sim, evita-se,
chuta-se, espana-se pra lá aquele cachorro magricela, sarnento, repelente. Mas
ele não está fazendo nada para ser enxotado assim, pois somente catando comida
nas beiradas da calçada, nas bordas do lixo, pelos monturos e lixões. E qual o
mal que faz o cachorro de rua? O mesmo mal que a muitos faz o menino de rua, o
adulto de rua, o velho de rua, tudo que erra sem lar pelas ruas.
Não um mal que
cause comoção, piedade, sofrimento interior, mas o mal da ojeriza, o mal da
repugnância, o mal da maldade no coração. Crianças, adultos, velhos, pobres,
famintos, abandonados, que são avistados e evitados como se cachorros de ruas
fossem, e carregassem na feição a mesma imprestabilidade do cão sem dono. Sem
tecer ficção, a verdade é que para muitos olhares não há nenhuma diferença
entre o cachorro de rua no esgoto e o menino de rua em impossível sonho debaixo
da marquise.
Quanta maldade
no olhar humano, quanta maldade no coração humano, quanta desumanidade no
homem. Nada lhe compraz se não for de sua conveniência, nada merece atenção se
não puder redundar em algum proveito pessoal. E por isso mesmo, além de ter
como inexistente o cão sem dono e o ser humano ao relento, não será difícil que
tudo possa fazer para exterminar de seu meio aquela coisa abjeta que enfeia a
vida. E os cães sem raça ou dono amanhecem sem vida. E os meninos nem sempre
amanhecem.
Bastaria que
abrissem o livro do coração para saber que o cão é amigo, que o ser humano ao
abandono é também um irmão. E a estes não basta o pão jogado na calçada nem a
mão forçosamente estendida, e sim o contínuo afeto, o carinho, o amor. Sim,
evitem o cachorro feioso, evite a criança suja e maltrapilha, podem evitar o
que quiserem. Porém saibam que as curvas da vida também podem trazer a fome, a
sede e o abandono àqueles que se imaginam nos pedestais da riqueza e da glória.
Escritor
Membro da
Academia de Letras de Aracaju
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