*Rangel Alves
da Costa
O coiteiro
Totonho Catingueira ouviu de longe o labafero do terrível confronto entre os
cangaceiros e os macacos. Seu casebre de cipó e barro ficava nos arredores do
coito onde a cangaceirama estava arranchada até receber ordens de Lampião para
imediata partida. Ante o mau presságio vindo no pio agourento do pássaro, a
apressada retirada só não se misturou ao breu da noite naquele mesmo instante
pelo açoite do tiro chispado pela volante.
A partir de
então o calejado coiteiro ouviu tudo: zunido e açoite, rajada e disparo, berro
e gritaria, o pandemônio do mundo em acabação. Ele sabia que tudo vinha do
coito, que tudo estava acontecendo pelos lados do arranchamento cangaceiro. E
pelo barulho dos tiros, também lhe veio a certeza de que uma guerra sangrenta
estava sendo travada. E o inimigo era a volante.
Teve vontade
de abrir a porta e correr até lá, como, aliás, já havia feito no dia anterior,
quando levou três cortes de panos, agulhas e linhas, além de dois quartos de
carne de bode e duas medidas de farinha. Pouca coisa pra tanta gente, mas já
com encomenda certa para a manhã daquele dia que parece não ter clareado
naquele coito. Não abriu a porta, mas também não conseguiu mais ficar sobre as
varas da cama. Sua esposa Joaninha tremia igual vara verde. E ele, para
acalmá-la, apenas dizia: Lampião sabe o que faz!
Quando a
primeira luz do dia abriu sua boca, e já desde muito que não se ouvia nada
vindo do campo de guerra, então o coiteiro decidiu ir até lá para saber o que
realmente tinha acontecido. Mas não era besta de se aproximar demais nem chegar
até lá pela vereda já repisada. Seguiu quase rastejando pelo meio da mataria
até avistar a pedreira e o bonome que sinalizavam o local do arranchamento. Mas
tudo parecendo estranho demais. Ora, para a barulheira ouvida há poucas horas,
aquele silêncio todo parecia estranho demais.
Resolveu ir um
pouco mais adiante. Estava espantado com o silêncio e a calmaria. A não ser
pelo mato destronchado, pelos galhos quebrados, pelas marcas das balas, da
correria e da refrega sangrenta, tudo o mais parecia uma paisagem de preguiçosa
sonolência. Mas não pode ser, disse a si mesmo. E completou: Pra tanto tiro e
tanta gritaria, tanto berreiro e tanto açoite, por aqui tinha que ter mais que
marcas de sangue aqui e acolá. Tinha que ter muito corpo estirado e já sendo
visitado pelos urubus.
Mesmo na
desolação do lugar, o velho coiteiro não estava sem medo. Sabia que a mata
tinha olhos e muito escondia nas suas entranhas. Pisava em pedra como num
tapete. Assustava-se com o próprio barulho do roló sobre o chão. Um chão de
guerra não era pra se brincar. Lançava o olhar sobre cada tufo de mato como se
de repente pudesse se deparar com o inesperado. Era isso o que mais temia. Mas
nada foi encontrando que tivesse arma em punho ou sangue nos olhos. O coito
também estava totalmente vazio. Ou quase.
Ao pé de uma
pedra, então avistou um papel como se fosse uma carta dobrada. Papel
envelhecido, amarelado, já muito desgastado de tempo e de caminhada. Lançou a
mão, trouxe o escrito aos olhos de pouca leitura, mas ainda assim conseguiu ir
soletrando. Era uma reza escrita à mão, e dizia:
“À vossa
proteção eu recorro Santa Mãe de Deus. Não despreze as minhas súplicas nas
necessidades e livrai-me sempre dos perigos, ó Virgem gloriosa e bendita. Que
esse seu filho despejado nos perigos do mundo e nas mãos traiçoeiras dos
inimigos, nunca seja por eles perseguido, alcançado e a seus pés ajoelhado.
Livrai Mãe de Deus, minha Nossa Senhora, de todo mal, de todo ataque, de toda
bala, de toda faca e punhal, de todo veneno e de toda traição. E que o meu
corpo, meu espírito e minha alma, sejam sempre protegidos pelo escudo maior de
vossa força, Mãe Santíssima. Amém.”
Mas espantoso
mesmo foi a surpresa do velho coiteiro ao avistar a assinatura abaixo da
oração: “Capitão Virgulino Lampião”. A oração que Lampião não se desapartava, e
agora? Disse quase gritando. E, demonstrando extremada preocupação, ainda
disse: Lampião de corpo aberto não é Lampião, e agora? Pode ser tido como
bicho, como carnicento, o que for, mas não há ninguém mais temente às coisas do
céu que o Capitão, não há cristão sobre a terra que seja mais devotado a Nossa
Senhora e a Padre Cícero do que ele. Eu mesmo já vi, na boca da noite, Lampião
se afastando pra fazer suas orações. E sempre tinha essa reza como proteção
maior. E agora?
A preocupação
do coiteiro era plenamente justificada. Não se sabe como, mas a pressa da
retirada fez com que o cangaceiro maior deixasse cair aquela sua preciosidade.
Também não se sabe ao certo, mas depois disso o seu fim começou a se aproximar.
O seu bando já estava longe dali, mas não mais na segurança e na proteção de
antes. E Lampião logo ficou sabendo disso. Quando procurou sua oração e nada
encontrou, além da lágrima lhe veio a certeza de tempos muito difíceis de serem
vencidos.
Escritor
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