Por Rangel Alves
da Costa*
Jesus dos
Santos, eis o seu singelo nome de batismo. Era para ser maior, mas no cartório
o pai do menino ouviu que tanto fazia filho de pobre ter nome completo ou não,
com a junção do sobrenome do pai e da mãe, vez que a pobreza não precisa de
muita pronúncia nem de muita escrita em documento. Jesus já estava bom demais
para ser conhecido e chamado, e acrescentaria dos Santos apenas para que os
pais tivessem a ilusão completa, foi o que afirmou o de gravatinha borboleta.
Era para ser
Jesus da Cruz Santos, mas ficou apenas Jesus dos Santos por força das
conveniências cartoriais e das explicações dadas pelo de cabelo passado à
brilhantina. Assim o menino foi registrado. E talvez o destino, através
daquelas linhas tortas que tanto se fala, acabaria colocando o Jesus numa
estrada de sofrimento que sempre fazia lembrar os desertos percorridos, as
incompreensões e as tentações na solidão sofridas por outro cristão de mesmo
nome.
Jesus veio
mundo em meio a mais absoluta pobreza. Seus pais, Sebastião e Antônia, devidamente
apelidados de Bastião e Totonha, mesmo ainda jovens, pareciam dois velhos e
alquebrados pelas desditas do tempo. Ela, mulher de tudo e nada fazer, pois não
se negando a nenhum ofício que lhe chegasse como trabalho de ganha-pão. Mas sem
nenhuma trouxa de roupa pra lavar nem um punhado de barro pra fazer panela, ou
mesmo qualquer outra coisa pra debulhar ou limpar, seus dias se resumiam no
desalento e desesperança. E numa tristeza danada pela sina do marido.
Aquela sina
não era somente do marido Bastião, mas de todo homem que vivesse naquela
região. Com mais de ano sem chuva, sem cair um pingo d’água sequer que desce
esperança de molhação a terra, tudo se transformava num sofrimento sem fim. E
sem chuva não havia nada que sustentasse a vida, que permitisse um tiquinho de
qualquer coisa no prato de cada dia. Sem chuva não havia trabalho nem contação
de moeda para o dia da feira. E, para piorar, a falta de água pra beber, o
bicho de caça sumindo, a planta pendendo por cima da terra seca, aquele mundão
de vida definhando sem ninguém poder fazer qualquer coisa. Somente a flor de
mandacaru se exibia imponente, mas ninguém come flor de mandacaru. Dizem que
ela se transforma espinho na boca de quem ousar mastigá-la.
Assim era a
vida Bastião, de Alfredino, de Leocádio, de Biribeira e tantos outros que
possuíam casebres de cipó, barro e ripa pelos arredores. Um monte de gente na
desvalia de tudo, desde o acordar ao anoitecer olhando a cor da barra e
fingindo a esperança para não chorar. Pastagens já com queimor na feição de
deserto, ossada de bicho por todo lugar, tanques e barreiros com lama rachada,
petrificada, uma tristeza danada tomando conta de tudo. Craibeira sem
florescer, catingueira esmorecendo, xiquexique afinando. Sem pássaro para
cantar, o pio agourento reinava nas noites negras.
E foi num
cenário assim que nasceu Jesus. E Totonha, a mãe, ainda se recorda como se deu:
no meio da noite, com o gás do candeeiro acabando, então a dor de parir
assustou. Gemeu, sufocou o primeiro grito. Chega, chega homem de Deus, chega
que já vai nascer. Quando o marido se embrenhou pelas veredas atrás da velha
parteira era tarde demais, pois Jesus já havia nascido na cama de capim. Ai meu
Jesus amado, meu menino nasceu. E assim o nome foi logo escolhido. E o destino
também.
A infância de
Jesus foi totalmente diferente daquela vivenciada por outros meninos da região.
Ao invés de brincar, sempre preferia subir numa pedra grande de onde ficava
mirando a secura do mundo ao redor. Não se sabe o que lhe vinha à mente, mas
certamente muito além dos devaneios da criancice. Desde essa idade que a visão
de seu mundo começou a lhe pinicar por dentro. Tudo lhe doía. Aquele sofrimento
do povo, aquele suor de escravo, aquela vida de miséria sem fim, aquela mesmice
de fome, sede e abandono, tudo lhe corroía por dentro. Mesmo sem escola ou
professora debaixo de pé de pau, aprendeu na escrita do mundo a compreensão
sobre tudo. E já rapaz feito tomou uma decisão.
E a decisão
tomada foi se despedir da família e rumar mundo afora. Não tencionava se
distanciar muito não, mas apenas seguir pelas estradas pregando contra as
injustiças, o abandono a que todos estavam relegados, a contínua submissão aos
poderes e aos governantes, sem que nada fosse feito para afastar aquela
situação de contínua miséria. Não temia ser chamado de louco ou de profeta do
desvario, não se importava acaso não fosse ouvido. Mas tinha dentro de si esse
compromisso tido como sagrado.
Foi nessas
andanças que subiu no alto da pedra mais alta para pronunciar um sermão que
mais tarde ficaria conhecido como O Sermão do Mandacaru, e que a cada passagem
sempre começava assim: “Bem-aventurados os que do mandacaru possuem a flor como
esperança e os espinhos como força de luta...”. E prosseguia com sentenças
assim: “Por que quem padece debaixo do sol, se sacrifica para sobreviver,
possui um motivo maior para viver que não somente esperar que a esmola lhe
chegue como submissão...”.
Até que o seu
sermão chegou aos ouvidos do Coronel Benizário Aroeira. E foi o fim de Jesus.
Ou o começo de uma crença maior. Passou-se a reverenciar sua memória como
verdadeira santidade.
Poeta e
cronista
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