Por Benedito
Vasconcelos Mendes
Nas décadas de
1950 e 1960, a bodega do Seu Raimundo Galdino, localizada ao lado da igreja do
distrito de Caracará, município de Sobral-CE, a quatro quilômetros da
propriedade do meu avô (Fazenda Aracati) era muito surtida e a única
existente naquela vila. Ocupava a sala da frente da residência de seu
proprietário. Não fechava para o almoço e funcionava de maneira ininterrupta,
das cinco horas da manhã até às oito horas da noite. Funcionava inclusive nos
domingos e feriados. Às vezes, abria de madrugada, quando algum freguês batia
em sua porta, solicitando a compra de medicamentos para dor de dente, diarreia,
dor de cabeça, vômito, febre ou azia, ocasião em que o Seu Raimundo Galdino
oferecia as poucas opções do seu estoque de medicamentos populares (Cibalena,
Cibazol, Melhoral, Sonrisal, Elixir Paregórico, Óleo de Rícino, Pílulas de Vida
do Dr. Ross, Pílulas de Matos, Mercúrio Cromo e mais uns poucos outros
remédios).
A frente do prédio era de duas portas e tinha um alpendre com um banco de
carnaubeira deitada, sobre duas forquilhas de aroeira fincadas no chão. Embora
a construção fosse de taipa, o piso era de cimento vermelho e a coberta de
telhas artesanais, com uma calha de estirpe de carnaubeira no beiral do
alpendre, formando uma bica, onde, no período das chuvas, a meninada tomava
banho. Nos fundos da bodega, ao lado das prateleiras de madeira, havia uma
porta, que se comunicava com a residência do proprietário. No oitão da bodega
tinha um poste de bambu, bem alto, com uma antena de rádio na extremidade.
No interior da bodega, sobre uma pequena mesa de pau-branco, estava um rádio
Philips a válvula, ligado a uma bateria de caminhão, que só pegava na
frequência AM (ondas médias e curtas), pois ainda não existia FM. O rádio da
bodega funcionava o dia todo, com muito chiado, retransmitindo a programação da
Rádio Iracema de Sobral. Só era desligado à noite, quando começava a Hora do
Brasil.
O balcão de madeira, revestido com folha de zinco, exibia algumas moedas
antigas furadas (pataca, cruzado e vintém), fixadas por pregos na parte
de cima do balcão. Na extremidade do balcão, uma passagem com dobradiças de
couro, que permitia levantar o tampo do balcão, quando o bodegueiro necessitava
sair para pegar algum produto pendurado nos caibros do espaço externo. A balança
de pratos, a lâmina de cortar fumo de rolo, a guilhotina de partir rapadura, o
rolo de papel de embrulho e a gamela com toicinho de porco salgado (sal preso)
ficavam sobre o balcão. A pobreza regional era tão grande que a rapadura podia
ser vendida em pedaços. Era comercializada por unidade, por banda (meia
rapadura) ou ainda por pedaço de um quarto de rapadura. A lata de
querosene (da marca Jacaré), com a bombinha de zinco, para bombear o querosene,
acoplada a ela, localizava-se sobre um estrado de madeira no canto da parede.
Os gêneros alimentícios podiam ser comercializados no peso ou no volume. No
litro eram vendidos farinha de mandioca, milho, feijão-de-corda e
arroz-vermelho em casca. O litro era feito de madeira e tinha a forma quadrada.
O produto era colocado dentro do litro, com o auxílio de um casco de cágado. O
toicinho, a linguiça caseira, a carne de sol, a tripa de porco salgada, as
carnes verdes (de bode, ovelha ou de porco), a banha de porco, o açúcar, o sal
grosso, o café em grão, a goma de mandioca e outros alimentos eram
vendidos por quilo. Comprava-se o sal grosso na bodega e em casa pilava-se no
pilão, pois naquela época não existia sal moído. Seu Raimundo Galdino tinha
muita prática de embrulhar com papel de embrulho, usando os dedos, os produtos
vendidos, pois os gêneros alimentícios não eram acondicionados em
pacotes, tudo vinha à granel. Para o querosene tinha medidas apropriadas,
feitas de zinco, que depois de cheias eram despejadas na garrafa do freguês,
usando um funil de zinco. Cada residência tinha sua garrafa de comprar
querosene, a qual era transportada pendurada no dedo indicador do freguês, pois
a mesma tinha um barbante amarrado no gogó, que terminava em laço, para
pendurá-la no dedo. A manteiga de garrafa, o óleo de coco, o mel de abelha
(jandaíra ou mandaçaia) e o mel de engenho eram comercializados em garrafas de
600 ml. A bodega vendia de um tudo, pois na vila não existiam lojas nem
farmácias. Além de alimentos, lá se comprava ferragens (enxadas, pás, machados,
facas, lamparinas, ralo de flandres para ralar milho verde, facões, pregos e
arame farpado); remédios populares; aviamentos (elásticos, cianinhas, bicos,
linhas, agulhas, botões etc); aspiral para repelir muriçocas; sabão da terra,
sabonetes, creme dental, chinelas de rabicho de sola e de pneu (tiras de couro
e solado de pneu de automóvel); louças de barro (panelas, potes, quartinhas
etc); cestos de cipó; artigos feitos com palha de carnaubeira (chapéus, bolsas,
esteiras, urus, vassouras, surrões e outros); urupemas; abanos; cuias;
cuités; gamelas; cochos e outros utensílios domésticos.
Parede e meia à bodega, morava Seu João Enfermeiro, um profissional da área da
saúde que tinha muita habilidade e prática para curar as enfermidades dos
habitantes daquela comunidade rural. Era um misto de enfermeiro, farmacêutico,
dentista e de médico. Ele encanava braço, arrancava dente, aplicava injeção no
músculo (não aplicava injeção na veia), costurava, com linha zero e agulha
grande de coser tecidos, facadas e outros ferimentos e vendia meizinhas
(raízes, folhas e outras partes de plantas medicinais, sebo de carneiro capado
e banhas de animais, como banha de tejo, de raposa, de cobra cascavel, de
galinha, de traíra, de cágado e de jia). A mulher do bodegueiro, Dona Ciça, era
parteira e rezadeira, pois curava quebranto, espinhela caída, mau olhado,
moleira caída e outras doenças de crianças. Ela também curava, no rasto,
bicheiras dos animais, com suas rezas.
Uma coisa que me chamava a atenção era a convivência pacífica de três
animais que ficavam soltos, o dia todo, dentro da bodega, sem brigas. Uma
gralha cancão para comer baratas, um gato para pegar ratos e um cachorro de
estimação e guarda. Interessante que o gato e o cachorro eram adestrados para
não comerem as carnes, toicinho e linguiça da bodega. Eles só se alimentavam em
horário certo e dentro da casa do bodegueiro, nunca no interior da bodega.
Também, o gato não perseguia o cancão.
A bodega do Seu Raimundo Galdino vendia doses de cachaça no pé do balcão, com
tira-gosto de queijo de coalho. A cachaça vinha em ancoretas feitas de
imburana, sobre lombos de animais, da Serra da Meruoca.
Seu Raimundo Galdino era um senhor de muito respeito, imprimia em sua bodega um
ambiente familiar, onde mulheres e crianças faziam compras com segurança.
Embora fosse um estabelecimento comercial de muita ordem e seriedade, não
deixava de ser também o local onde as notícias e as fofocas chegassem em
primeira mão. As novidades, como doenças, queda de cavalo, chifrada de touro
brabo, coice de vaca, coice de burro ou de cavalo sofrido por algum membro da
comunidade, primeiramente, eram noticiadas, de boca em boca, a partir do
bodegueiro. Ele tinha prazer em comunicar, em primeiríssima mão, as novidades
locais e as notícias que captava pelo rádio. Quando alguma mocinha da vila
engravidava, também ele era o primeiro a saber, pois seu vizinho, João
Enfermeiro vendia Cabacinha e Babosa para fazer chá para abortar e ele não se
continha em não contar para o seu vizinho e compadre Raimundo Galdino o segredo
precioso de quem comprava estas ervas. O bodegueiro sabia a vida de todos os
habitantes da vila Caracará e vizinhanças.
Quase todas as compras neste ponto comercial eram feitas fiado, na caderneta,
para serem pagas, semanalmente, no sábado à tarde, embora um cartaz pregado na
parede anunciasse: FIADO SÓ AMANHÃ.
Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso
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