Por Antônio Corrêa Sobrinho
Apresento aos
amigos a, provavelmente, última entrevista à imprensa do primeiro Rei do
Cangaço, o Rifle de Ouro, ANTONIO SILVINO, concedida ao diário carioca O JORNAL,
poucas horas antes de sua morte, publicada na edição de 05.08.1944. SILVINO que
completa 76 anos de morto no final deste mês, e, tal qual o seu êmulo Virgulino
Lampião, merece ser lembrado por todos nós que cultivamos o cangaço.
O FAMOSO
CANGACEIRO ENTREVISTADO NOS ÚLTIMOS INSTANTES DE VIDA – “DE PÉ NUNCA TIVE MEDO,
MAS DEITADO NÃO QUERO MORRER” – “NÃO TENHO MEDO DO INFERNO, MAS NÃO QUERO IR
PARA O CÉU” – NUNCA ROUBEI NEM DESONREI NINGUÉM
JOÃO PESSOA,
julho (De Luiz Gomes e Abelardo Jurema para a Meridional) – Há alguns meses,
correu em Campina a notícia de que Antonio Silvino, o famoso bandoleiro que
assombrou as populações de nossas caatingas, cariris e sertões, se achava
gravemente doente em uma água-furtada na rua Arrojado Lisboa, atraindo assim a
atenção de todos e sobretudo daqueles que ainda se recordavam da história
palpitante do cangaceirismo nordestino, da qual aquele homem de 72 anos era um
personagem de primeira plana.
NUMA
ÁGUA-FURTADA
A rua Arrojado
Lisboa passou a ser palmilhada por homens de todas as classes e profissões. Até
professores procuravam conhecer Antonio Silvino. O que restava do homem do
cangaço era um ancião pendurado numa rede, alquebrado fisicamente, mas com o
espírito esclarecido, vivo, respondendo a todas as perguntas e divagando sobre
os homens e as coisas com aquela vaidade que possuía de brilhar nas palestras,
como um pseudo homem de letras, querendo se fazer de entendido em tudo.
Mas, diga-se
de passagem, se Antonio Silvino não era culto, pelo menos mostrava uma
inteligência de primeira ordem. Não parecia o bandido que entrou na Detenção de
Recife, sem conhecer uma letra de alfabeto.
Quando,
setenta e duas horas antes do seu falecimento, estivemos em sua casa, numa
tarde álgida e chuvosa dos últimos dias do mês de julho, fomos encontra-lo num
estado de profunda dispneia, naquela alforja que dava a impressão de uma furna
guardando uma fera que de fora apenas tinha os olhos saltitantes e acesos.
SILVINO, NÃO,
CAPITÃO DE CAMPO
Como vai
passando, Silvino? Foi a nossa primeira pergunta, que o velho não deixou sem
esta advertência, interessante e filauciosa:
“Silvino, não,
capitão.”
Mas,
interrogamos. Capitão de que milícia, do Exército, da Polícia, da Marinha ou da
Guarda Nacional?
Não, respondeu
o velho bandoleiro. Capitão de campo, como sempre.
A seu lado,
estava uma dama da sociedade de Campina, lendo os Evangelhos, nesses exercícios
que ajudam a morrer sem lamentos.
Estranhamos ao
capitão de campo que ele, que tinha saído da cadeia de Recife com fama de
espírita e posteriormente de protestante, estivesse ali a ouvir com tanto
respeito a religiosidade orações dos irmãos de São Pedro, parecendo assim uma
conversão ao catolicismo.
NUNCA TIVE
MEDO DE MORRER, MAS AGORA...
Ainda desta
vez Antonio Silvino não deixou passar sem uma explicação, dizendo:
- “Nunca tive
medo de morrer em pé, quando campeava pelo Nordeste, e agora, deitado, não
quero morrer, se bem que não tenha medo do inferno, pois, se pra lá for,
disputarei um lugar de chefe, um posto de comando qualquer. Pro céu é que não
quero ir, pois, ao que me consta, lá não há campo pra luta nem para capitão do
mato como sempre fui. Quero é viver mais um pouco, mesmo com esta agonia que
estou sentindo, com esta falta de ar, com esta falta de conforto. Essas palavras
que a menina está lendo são do Evangelho, o que quer dizer que são palavras de
Deus. Em todas as religiões do mundo a palavra de Deus é uma só.”
Até parecia
que Antonio Silvino já tinha lido o “Paraiso Perdido” de Milton, naquela
estrofe que tão bem se ajustava ao seu pensamento naquele minuto: “É melhor ser
rei no inferno do que soldado no céu”.
HOMENS DA JUNGLE
Homens como
Silvino não aceitam a igualdade. São individualistas por instinto. Querem estar
sempre mandando, ainda mesmo que imperando entre naturezas selvagens, sem
conforto e sem lei, mas sempre expedindo ordens e forçando o seu cumprimento.
Homem da jungle.
Ali estava um
homem quase sem vida, porém senhor de si mesmo, cheio de altivez e com o
espírito presente à realidade do momento. Via a morte próxima e ainda era o
mesmo homem sem o acabrunhamento tão comum entre os mortais nestas horas
supremas.
Depois de
darmos tempo a ele se perfazer, procuramos detalhes de sua vida pregressa. Era
inútil. O homem se aferrava na tese de que o passado o vento tinha levado.
VINTE E CINCO
ANOS DE RECLUSÃO
- “Minha vida,
disse Silvino, todo mundo conhece. Entre as minhas aventuras e o presente, há
vinte e cinco anos de reclusão que alteraram o meu destino. Mas, digam lá fora
que nunca roubei nem desonrei ninguém, e se matei alguém, isso foi em defesa
própria, evitando cair nas mãos de inimigos e dos macacos.”
Ele batizava
de macacos os soldados da Polícia.
Antonio
Silvino esquecia-se dos quadros que atestam a sua ferocidade... a paisagem
macabra que deixou atrás de si durante vinte e um anos de cavalgada sinistra na
trilha do crime. O testemunho dos seus contemporâneos está aí, estigmatizando a
sua vida criminosa, de nada valendo as dirimentes que alega nem as lendas que
se propagaram, lendas criadas na imaginação popular tão fértil e tão plástica
às primeiras impressões e tão facilmente impressionável pelas façanhas
novelescas.
No júri
popular soberano, dizia-se com muito ajuste à realidade psicológica de nossa
gente que se todo criminoso fosse submetido a julgamento imediatamente após o
delito, a condenação seria no grau máximo, mas que, se se deixasse o tempo
correr, a sua ação cicatrizante se faria sentir e a absolvição viria como veio
em casos talvez mais tremendos do que os do próprio Antonio Silvino.
Continuamos o
nosso interrogatório. Insistimos ainda em colher de Antonio Silvino algo de
novo sobre a sua vida. E a resposta foi inteligente.
CHEIO DE
ESPERANÇAS NA JUSTIÇA DE DEUS
- “A justiça
dos homens me condenou. A justiça da Revolução de 30 me absolveu, dando-me
liberdade. A doença agora me prende e eu só tenho a aguardar o pronunciamento
da Justiça de Deus. E ela é maior do que todas as justiças da terra. Levo um
consolo, que julgo influir no julgamento divino. Tudo quanto fiz distribuí com
os pobres, terra, gado e dinheiro; nada mais tenho hoje, a não ser filhos
educados com o meu próprio esforço e que hoje me esquecem inteiramente.
“Faço questão
em dizer que vivo abandonado, pois só uma filha que mora em Fagundes, neste
município de Campina, veio me ver no estado em que me encontro. Afora este
conforto moral, devo o amparo que tenho agora nesta casinha modesta á minha
prima Tidula e a este moleque que aqui está, o Francisco Alves, que não me
abandona um só momento, como um cão fiel.”
DESTINO DE
BANDOLEIRO
Que destino de
bandoleiro! Depois de ter o mundo a seus pés, estava vivendo às custas da
bondade humana. Eram motoristas, viajantes, pessoas do povo, gente enfim cheia
de sentimento de solidariedade humana que estava auxiliando Antonio Silvino,
esquecendo-se dos seus crimes, mas assistindo a um enfermo até mesmo com
orações.
Ante aquele
quadro, têm razão os que pensam que “o crime não compensa”. Ainda há pouco,
visitando a Cadeia Pública de João Pessoa, vimos entre os presos comuns, em
suas roupas zebradas, o célebre Zé de Totó, que depois de quarenta anos de vida
criminosa, perdeu até mesmo a fama, um dos elementos que mais alimentam o
instinto criminosos dos homens fora da lei.
“DEUS LHES
ABENÇOE”
Estava já
escurecendo e o Rei do Cangaço se mostrava cansado e incapaz de continuar a nos
prestar atenção. Chegava o moleque Francisco com um cobertor. Fazia frio.
Campina estava vivendo a 16 graus acima de zero. Era uma temperatura que não
fazia bem a um homem dispneico. Sentimos que poucas horas restavam de vida a
Antonio Silvino. Olhamos bem para a sua fisionomia. Cabeça chata de nordestino,
cabelos brancos, tão brancos como a sua barba crescida, olhos claros e ainda
vivos, parecendo até que daquele corpo eram os últimos órgãos a condensar
avaramente as últimas centelhas de vida de Antonio Silvino.
Despedimo-nos
dele. Dissemos algumas palavras de conforto. Do fundo da rede, num esforço que
bem podemos avaliar pela sua expressão momentânea de aparente robustez, surgiu
o busto de Antonio Silvino, lançando-nos um adeus patético: “Deus lhes abençoe
e muito obrigado pela visita”.
Setenta e duas
horas depois, mal tínhamos chegado de Campina e já a notícia da morte de
Antonio Silvino se espalhara.
Obra de pura
coincidência. Ele que tanto gostava de publicidade, recebendo na Casa de
Detenção de Recife e de Olinda com a melhor boa vontade os repórteres e
visitando, quando solto, as redações dos jornais das cidades que percorria,
numa tentativa sempre interessada de estar em evidência, até mesmo nos últimos
momentos, no fundo de uma cangocha, sentindo-lhe, aos poucos, faltar o contato
com o mundo, foi visto por dois repórteres que ali foram sem pensar que iriam
divulgar as últimas palavras do abencerragem do cangaceirismo no Nordeste.
Antonio
Silvino já não existe. Manoel Batista de Morais dorme para sempre no Cemitério
do Carmo de Campina Grande.
O JORNAL (RJ)
- 05.08.1944
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