Por José Romero
Araújo Cardoso[1] e Marcela
Ferreira Lopes[2]
Para Wilson
Bezerra de Moura, Ivanildo Formiga (In memoriam), Geraldo Benevides de Paiva e
a todos os heróis da grande saga ferroviária mossoroense.
A dinâmica econômico-comercial de Mossoró começou a se efetivar de forma
proeminente quando do assoreamento do importante porto de Aracati, inserido
geograficamente no estado do Ceará, fato verificado a partir da década de
setenta do século XIX.
Antes disso, toda movimentação comercial do litoral setentrional era feita
através da cidade localizada na desembocadura do rio Jaguaribe, ponto terminal
das tropas de burros que demandavam a essa localidade cearense, intuindo
encontrar compradores para o que restava das mercadorias que transportavam em
dificílimas viagens através das veredas do sertão.
Inúmeros comerciantes começaram a se deslocar para Mossoró, até então
inexpressiva localidade potiguar, havendo destaque para o suíço Johannes Ulrik
Graf, importante comerciante dedicado ao ramo de exportação e importação,
sediado na conceituada casa Graf, a qual, localizada em Macaíba, representou a
influência europeia no cotidiano econômico-social da então província do Rio
Grande, pois era extraordinária a variedade de produtos de fora que
disponibilizou quando de sua intensa atividade comercial.
Devido não dispor de meios de transportes eficazes, a produção sertaneja do
próprio estado, bem como dos vizinhos, Paraíba e Ceará, direcionada à
comercialização em Mossoró, era deslocada em tropas de burros, as quais tinham
por característica proeminente a notável depreciação, tendo em vista os desafios
enfrentados pelos antigos almocreves e suas históricas jornadas em busca de
melhores preços na praça mossoroense.
Observando que havia necessidade de implementar meio de transporte mais eficaz,
Graf propôs que a solução estaria na construção de uma ferrovia interligando o
oeste potiguar às barrancas do São Francisco, tendo em vista que o sal poderia
ser escoado e peles, couros, algodão, etc. poderiam também ser transportado com
mais facilidade, sem os percalços que notabilizavam as aventuras dos tropeiros
pelas veredas da terra do sol.
Graf obteve a concessão para a construção de tão sonhada ferrovia, mas por
falta de recursos não teve como levar avante o sonhado plano de dotar o estado
do Rio Grande do Norte do mais moderno meio de transporte daquela época.
Falido, dizem que Graf ganhou as matas da Amazônia, talvez em busca da riqueza
representada pela borracha.
Deixou para traz a utopia da
estrada de ferro de Mossoró e o notável plano também arquitetado por ele de
criar uma instituição de ensino que formulasse e disseminasse conhecimentos a
fim de buscar referendar a convivência do homem com as secas. Esse sonho de
Graf se efetivou nos três últimos anos do final da década de sessenta do século
passado, quando da federalização da antiga Escola Superior de Agronomia de
Mossoró (ESAM), hoje Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA).
Em 1915 o sonho de Graf se concretizou, não obstante há décadas ter falecido o
empreendedor suíço que deixou marcas indeléveis na história econômica, política
e social de Mossoró.
A inauguração da estação ferroviária, ligando Mossoró a Porto Franco, era o
primeiro passo para a conquista da racionalidade no deslocamento de produtos e
pessoas, pois, a partir daí, começou verdadeira odisseia em prol da conexão
com o estado da Paraíba.
Porto Franco, localizado no município de Grossos, era a via de escoamento da
produção, para onde se destinava o fruto do trabalho sertanejo, não obstante
sabermos que as diferenças sociais se notabilizavam pela proeminência, a
exemplo das condições que fomentaram a criação do sindicato do garrancho.
A firma responsável pela construção dos primeiros trechos da ferrovia era
particular, patrimônio de um ousado cearense, natural de Sobral, de nome
Vicente Saboya Filho, o famoso Saboinha que se tornaria um dos comandantes da
resistência mossoroense ao bando de Lampião no fatídico dia 13 de junho de
1927.
O transporte da produção sertaneja até Porto Franco, antes feito em penosas
jornadas através de carros-de-boi, passou a ser realizado com o trem,
sofisticado e bastante seguro, enfatizando, dessa forma, garantias de maior
comodidade e evitando a depreciação da penalizada produção sertaneja, antes
submetida ao jugo das condições inaceitáveis representadas pelo duro ofício do
tropeirismo.
A importância econômica de Mossoró se exponencializou
de tal forma que foi necessário estruturar um outro porto, o qual ficou
conhecido por Porto de Santo Antônio, distante do lócus central de embarque e
desembarque, onde as barcaças adentravam o rio Apodi-Mossoró, visando serem
carregadas com algodão, peles, couros, gesso, sal marinho, etc. Em seguida,
seguiam a correnteza do rio e chegavam ao oceano. Navios de grande calado,
impossibilitados de atracar em Porto Franco, devido suas estruturas, esperavam
esses produtos para levar para a comercialização no exterior.
Durante o boom econômico dos países periféricos, observado depois da primeira
grande guerra, quando a Europa necessitou de matérias-primas em larga escala,
visando reconstruir-se dos impactos causados pelo grande conflito mundial,
verificou-se intensamente a dinâmica do processo que assinalou a necessidade de
ser implementado o transporte férreo em razão que os antigos já não mais
correspondiam aos interesses econômico-comerciais-financeiros que estiveram
diretamente vinculados a importantes decisões, algumas a nível nacional, a
exemplo da instalação da agência de número 36 do Banco do Brasil em Mossoró no
ano de 1919, o que se constituiu em um dos motivos propalados por Lampião para
invadir a cidade quando do malogrado ataque cangaceiro oito anos depois que a
referida agência fora inaugurada.
A etapa seguinte foi chegar ao então distrito mossoroense de São Sebastião
(hoje município de Governador Dix-sept Rosado), onde encontravam-se as maiores
reservas de gipsita da América Latina. Nas Vossorocas da Espadilha exploravam
essa rocha sedimentar, cujo transporte em direção a Porto Franco era feito da
forma mais difícil possível.
Depois de São Sebastião vieram Caraúbas, Jordão, Patu, Almino Afonso, Antônio
Martins, Alexandria, Santa Cruz e o distrito de São Pedro, sendo esses últimos
em solo paraibano. Os últimos quilômetros da estrada de ferro Mossoró-Sousa em
direção ao estado da Paraíba foram marcados pela apreensão e pela exultação,
pois estava se concretizando o sonho de Graf, de Filipe Guerra, de Jerônimo
Rosado, entre tantos outros defensores intransigentes da necessidade de meio de
transporte eficaz interligando Rio Grande do Norte, Paraíba e restante do País.
Em meados da segunda metade da década de cinquenta do século XX, finalmente os
trilhos da tão sonhada estrada de ferro que interligasse Mossoró ao restante do
País chegaram a Sousa (Estado da Paraíba), marcando de forma épica um capítulo
importante na história dos dois estados.
O trem passou a representar um elo de ligação fenomenal, tendo em vista a
relação bastante enfática entre a Paraíba e o Rio Grande do Norte, quando laços
econômico-comerciais, familiares e afetivos passaram a se concretizar da forma
mais extraordinária possível.
Era intensa a movimentação de pessoas em direção às cidades cortadas pelos
trilhos, mas sobretudo em direção a Mossoró, polo econômico visivelmente mais
desenvolvido do oeste potiguar.
As indústrias Fernandes eram alimentadas com matérias-primas transportadas
pelos vagões da Mossoró-Sousa. Algodão e oiticica eram produtos requisitados
incessantemente pelas importantes firmas localizadas em Mossoró, surgidas com a
inversão de capitais do comércio para a industrialização original que firmou-se
em Mossoró, responsável pelo importante momento da história econômica do estado
do Rio Grande do Norte.
A estrada de ferro Mossoró-Sousa, de forma direta ou indireta, transformou-se
em ganha-pão de milhares de pessoas, através de empregados efetivos da Rede
Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA), substituta do empreendimento de
Saboinha, e, de forma indireta, com incontáveis seres humanos que aproveitavam
as oportunidades, quando das passagens do trem para aumentar a renda familiar,
vendendo tapiocas, pastéis, cocadas, enfim, comercializando uma variedade de
produtos caseiros que hábeis mãos humanas produziam e que encontravam,
imediatamente, consumidores em cada parada, fosse em direção a Sousa ou a
Mossoró.
Viúvas, órfãos e outros marcados pelas aspereza da vida aguardavam ansiosamente
a chegada do trem para oferecer delícias que a culinária sertaneja disponibilizava
para fregueses certos. Para essas pessoas marcadas pelo destino a estrada de
ferro Mossoró-Sousa era a garantia que no dia seguinte haveriam melhores
condições de vida, pelo menos temporariamente, pois não tinham a quem recorrer
para tentar mudar a sina inglória, tendo em vista que ninguém se importava com
a vida dura que levavam, só o trem era a certeza de uma felicidade com data
certa para terminar, como de fato terminou, quando da atrocidade cometida ao
desativarem a estrada de ferro Mossoró-Sousa.
Embora a importância da Mossoró-Sousa fosse incontestável, logo surgiram vozes
contrárias à ferrovia, taxando-a de arcaica, de anacrônica, etc. Disseram até
que a mesma era anti-funcional, anti-higiênica, pois quem gostaria de fazer uma
viagem cômoda em um carro ao invés de realiza-la em uma composição férrea que
sujava de terra todos os passageiros?
A técnica do empedramento seria uma solução para o problema das viagens
desconfortáveis, mas a palavra de ordem era priorizar o individualismo através
da produção da indústria automobilística do que o coletivismo representado pela
conquista árdua simbolizada na estrada de ferro Mossoró-Sousa.
Todas essas acusações eram tão somente reflexos da política econômica adotada
na era JK, a qual preconizava cinquenta anos em cinco, tendo como carro-chefe a
indústria automobilística. A mídia, por sua vez, responsabilizava-se pela
formação de um novo imaginário no qual estava inserida a ideia que ter um carro
era mais importante enquanto sinônimo de status e de afirmação social.
A inauguração do Porto Ilha e o assoreamento do Porto Franco foram o início da
desativação da estrada de ferro Mossoró-Sousa. Um porto em alto-mar, longe das
correntes marítimas que carreiam sedimentos para a costa, capaz de realizar
extraordinários embarques e desembarques através de transportes pela imensidão
do oceano, era tudo que a sofrida estrada de ferro não suportaria.
As estatísticas começaram a demonstrar que a nova realidade se concretizava a
olhos vistos, pois ao invés de priorizar a estrada de ferro, importantes
agentes econômicos, sobretudo dos setores salineiros e de fruticultura tropical
irrigada, passaram a dar ênfase ao Porto Ilha no que tange à decisão de escoar
a produção.
Os anos 80 e 90 do século passado marcaram a forma trôpega como a Mossoró-Sousa
despontava no cenário regional, sendo desativada criminosamente e seus trilhos
e obras de arte vendidos como ferro pesado em grandes centros econômicos
nacionais, não obstante protestos sufocados pela lógica do capital em sua sanha
indescritível.
[1] José Romero Araújo Cardoso. Geógrafo.
Professor-Adjunto IV do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia e
Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Especialista
em Geografia e Gestão Territorial (UFPB) e em Organização de Arquivos (UFPB).
Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA/UERN).
[2] Marcela Ferreira Lopes.
Geógrafa-UFCG/CFP. Especialista em Educação de Jovens e Adultos com ênfase em
Economia Solidária-UFCG/CCJS. Graduanda em Pedagogia-UFCG/CFP. Membro do grupo
de pesquisa (FORPECS) na mesma instituição.
Enviado pelos autores José Romero Araújo Cardoso e Marcela Ferreira Lopes
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