Por Antonio Corrêa Sobrinho
São textos
como este do senhor Adolfo Goes, que abaixo apresento aos amigos, publicado há
80 anos no extinto jornal sergipano, “O Estado de Sergipe”, na edição de
02/03/1934, escrito no tempo que eu mais aprecio o do cangaço ainda vivo,
persistente, presente no corpo e na alma dos nordestinos, em que personagens
que hoje, compreensivamente, muitos de nós tratamos como seres míticos,
sobre-humanos, sobrenaturais, a saber, por um lado, bandoleiros afamados, como
Lampião, Zé Sereno, Corisco, Zé Baiano, e por outro, não menos temíveis e
implacáveis, militares como Zé Rufino, Deluz, João Bezerra, Mané Neto, como
disse, andavam por aqui fazendo das suas, correndo e percorrendo nossos cantos
e recantos, espreitando-se, escondendo-se, divertindo-se, fugindo, matando,
roubando, extorquindo, destruindo propriedades privadas, encarcerando,
prendendo, numa palavra, promovendo e espalhando o terror no nosso querido e
ínfimo território, no nordeste seco e sofrido, numa verdadeira guerra
fratricida, sem tréguas, alimentada, como sabemos, pela violência promovida, em
última análise, pelo coronelismo ainda reinante naqueles dias, embora já
findante. Como eu disse, artigo como este do senhor Adolfo Goes, nascido sob a
sombra tenebrosa do banditismo, bem provido de palavras que dizem do seu tempo,
expresso de forma serena, imparcial, contextual, é motivo suficiente para não
se deixar, este e outros textos, morrerem nas velhas gazetas, à espera, quando
em vez, do olhar nem sempre sensível e acautelado de algum pesquisador, relatos,
análises, exposições, muitos deles tão ricos, que os vejo como constitutivos e
formatadores da história do cangaço, este fascinante fenômeno que tanto
buscamos compreender. Pois, ao contrário, texto como este deve chegar a todos,
para conhecimento, interpretação e deleite.
observação: o então distrito de São Paulo, no Estado de Sergipe, passou a
denominar-se Frei Paulo por força do decreto nº 533, de 07.12.1944,
“O ESTADO DE
SERGIPE” – 02/03/1934
VARIAÇÕES
SOBRE O BANDITISMO NO SERTÃO
Adolfo Goes
(acadêmico de Medicina)
(Exclusividade
para “O Estado de Sergipe”)
SÃO PAULO,
março – Muito criança era eu, mas bem me lembro ainda dos longos serões na
porta da rua, nos quais tomavam parte sempre as mesmas pessoas, a repetir
sempre as mesmas histórias.
Ora em São Paulo, em casa de uma tia materna, onde estava eu residindo, para
cursar as primeiras letras numa escola pública.
Longas e enfadonhas eram aquelas palestras, que o medo que eu tinha de almas do
outro mundo me obrigava a ouvir cabeceando de sono e enfado, ao mesmo tempo.
Sozinho, porém, é que não iria me deitar. Não conseguiria adormecer, porque as
visões macabras, filhas de meu medo, não me permitiriam transpor as fronteiras
do reino de Morfeu. Falavam invariavelmente da falta de caráter dos adversários
na política local; depois conversavam sobre preço de bois, cavalos, algodão,
chuva, seca, etc.
Como os ouvisse sempre sonolento, pouco assimilava daquela salada indigesta.
Nítida, nitidíssima mesmo, ficou-me somente a lembrança das narrações das
proezas dos cangaceiros célebres. Então as do Antonio Silvino...
Quando algum dos presentes começava a narrar os feitos façanhudos, incríveis,
medonhos, de arrepiar cabelos, praticados por aquele herói portento, lá dos
sertões longínquos de Pernambuco e de Paraíba, eis-me de olhos abertos, bem
abertos, orelhas alertas, para não perder uma só palavra, narinas acesas, como
cão que fareja, possuído de grande pasmo e enorme interesse, a escutar o mais
atentamente possível as mais circunstanciadas minucias requintadas do narrador.
É verdade que cria naquilo, estão, como creio hoje nas aventuras do barão
Munchausen e nas viagens de Gulliver.
Ouvia pronunciar a palavra “norte”, nome com que no interior de Sergipe
designam-se todas as terras além do São Francisco, quer sejam as próximas
alagoanas, quer os remotos acreanos.
Para minha ignorância infantil aquela expressão queria dizer algo de
misterioso, distante, inacessível como o mundo da lua; direi melhor, quase não
significava nada, porque, na minha nenhuma compreensão, “norte” tinha a
equivalência do mundo das fadas.
Quantos folhetos comprei por aquela época, desses pequenos folhetos que se
editam quase sempre no Recife, escritos invariavelmente por um Ataíde de tal e
que se vendem nas feiras do nosso sertão de mistura com molhos de alhos, cebola
da terra, raiz de gengibre, noz moscada, pimenta da costa e várias outras
especiarias e raízes medicamentosas vendidas por mercadores ambulantes, que se
não sabe donde vêm, nem para onde vão.
Constituíram semelhantes folhetos minha primeira leitura extraescolar.
Eram as histórias romanceadas, escritas em mal português, em forma de poemetos
heroicos, de versos quebrados, miseravelmente rimados, as histórias tétricas
dos bandoleiros famosos.
O Cabeleira, o Antonio Silvino, o Lampião e tantos outros, cujos nomes se
apagaram da minha memória.
Tudo aquilo me parecia conto da carochinha.
Demais, dizia-me a gente crescida que tudo aquilo era invencionice dos
fabricantes daquelas brochuras. Era seu meio de vida.
Não conhecíamos o banditismo dos sertões nordestinos. Também o Nordeste era tão
longe...
Não havia quase estradas que nos aproximassem.
Vivia-se feliz, burguesamente feliz, despreocupado, dormindo o sossegado sono
reparador das fadigas do árduo labor camponês.
Ainda não se pensava em dormir no mato, no recesso da caatinga, ao lado das
cascavéis e das onças.
O campo no sertão sergipano, era ainda a liberdade, a segurança, a garantia de
vida.
Passaram-se anos. Chegou-me o entendimento das coisas.
Aprendi a relatividade das distâncias. Penetrei no problema do banditismo no
Nordeste e, por fim, senti o concreto em meu estado, em meu município natal, em
minha própria casa.
Na minha infância, já um tanto remota, nunca senti tão de perto e tão duramente
aquilo que ouvira referir minudentemente pelos frequentadores costumeiros dos
serões da minha tia, e que lera nos folhetins do Ataíde.
Veio o
movimento militar de 1924, em São Paulo, com suas ramificações.
Organizaram-se aqui em Sergipe, e, certamente em outros estados, os célebres
batalhões patrióticos.
Era a escória da sociedade arregimentada, bem armada e bem municiada, sob a
proteção oficial.
Aqui reunimos todos os criminosos foragidos e os protegidos pelos potentados e
políticos do interior.
Importamos de Alagoas, Bahia e outros estados boa quantidade de indivíduos
habituados à prática do crime, práticos, no manejo do rifle e do bacamarte.
Diz-se que estados do extremo norte os governos estaduais, de parceria com
autoridades federais, assalariaram os bandidos mais conhecidos para perseguir a
coluna Prestes.
Afirma-se mesmo que Virgulino Ferreira da Silva conseguira desta feita a
patente de capitão honorário do Exército, patente que se impôs a seus homens e
a todas as populações sertanejas.
Era a quase legalidade do banditismo, que por si só já se impunha como uma
instituição, na sociedade nordestina.
Capitão
honorário do Exército, por serviços prestados à legalidade, ou simplesmente
capitão de seus asseclas, seja como for, o certo é que Lampião, aureolado da
grande fama de bandido covarde e cruel, que justamente granjeara na trajetória
de suas correrias nefastas, através dos sertões alagoanos, pernambucano,
paraibano, potiguar e cearense, veio um dia surgir na fronteira sergipana, no
povoado Carira, inesperadamente, causando-nos a maior surpresa, a nós que nunca
poderíamos supor que nosso pequenino estado fosse um dia alvejado por tão
terrível praga.
Sempre mantivéramos a vã esperança de que a pequenez de Sergipe amedrontasse a
insolência de Virgulino Ferreira. Julgávamos, com a mais firme convicção, que
Sergipe seria a perdição do bandido audaz.
Incorríamos em erro, porque Lampião, por qualquer motivo que talvez ninguém
saiba, possivelmente desejoso de presas mais gordas e mais fáceis de depenar,
senão era curiosidade de novos conhecimentos ou mesmo a perseguição por parte
de seus antigos aliados.
Em abril de 1929, tinha Sergipe, na pessoa do município de São Paulo, a visita
indesejável de Lampião com seus companheiros.
Pasmo geral. Ninguém poderia crer.
Numa grande arrancada, conseguiu em menos de um dia percorrer a maior parte, e
a mais importante, do município de São Paulo, assaltando fazendas.
Foi uma gorda arrecadação.
Uma marcha triunfal, sem uma única oposição.
Depois indignação geral, distribuição de força policial por todas as povoações
do interior.
Garantia-se que Sergipe seria a Rússia de Lampião. Nele se daria o ocaso da
estrela do bandido temerário.
Um estado pequeno, cujos pontos extremos podem ser alcançados em poucas horas;
um estado quase todo cortado de estradas; um estado de população relativamente
densa; enfim um estado de polícia disciplinada; repetiam todos em coro.
Contou-se muita léria.
Repetiram-se, porém, as incursões de Lampião, de Corisco, de “relâmpago”, de
“trovoada”, etc.
Todas elas à vista da polícia disciplinada mas medrosa, mais medrosa ainda que
o sertanejo, porque este ainda teima em viver no sertão sob a ameaça constante,
de todos os instantes, sem a menor garantia.
Assim foi assaltado Capela, saqueado Aquidabã, invadido Nossa Senhora das
Dores.
Chegaram a fixar residência no estado pequeno, cruzado de estradas, defendido
por tropa regular.
Decorridos são quase cinco anos e continuam os bandidos a ser a maior calamidade
do sertão.
Para quem,
nascido e criado no município de São Paulo, conhecendo-lhe a vida pacata e
próspera das fazendas de gado, é verdadeiramente acabrunhador o aspecto que
apresenta de quatro anos para cá.
Fazendas abandonadas, em ruína, eis a que se resume, na verdade, o desgraçado
município.
Toda sua vida está atualmente na sede, onde vivem aglomeradas as famílias dos
fazendeiros, acossadas pelas façanhas dos bandidos.
O campo está despovoado.
Acusa-se muito a seca.
Sim, a seca tem contribuído grandemente para o despovoamento e o empobrecimento
do município de São Paulo.
Mas o verdadeiro, o grande fator é o banditismo.
Há quatro anos que o camponês não tem a menor garantia.
Ora, o município vive exclusivamente da lavoura e do criatório.
Como bem lavrar a terra ou cuidar do gado sob a ameaça constante, de todos os
momentos, dos bandidos?
O fazendeiro não mais dirige de perto os trabalhos de sua fazenda. Viu-se
obrigado a viver miseravelmente nos centros urbanos, nas vilas, nos povoados.
Fugiu à sanha dos bandidos, quando não da própria polícia.
Quantas vezes o acusam de coiteiro!
Perseguem-no, prendem-no, recolhem-no à penitenciária com criminosos vulgares.
Nas fazendas abandonadas pelos proprietários moram somente aqueles que nada têm
a dar, senão o lombo ao relho do bandido insolente e ao “rabo de galo” do
policial.
O sertanejo, cioso da honra da família, prefere a ruina financeira à desonra.
Para quem conhece de perto a situação aflitiva do fazendeiro sertanejo, não há
injustiça mais clamorosa que acoimá-lo de coiteiro de tal ou qual grupo de
bandidos.
Pilhado de surpresa, a visitar ou a dirigir os trabalhos de sua fazenda
abandonada, que dista quilômetros da povoação mais próxima, e às vezes léguas,
faz o desgraçado da necessidade virtude ou vício, de acordo com o conceito de
cada qual, e recebe com bom semblante o grupo de Lampião ou de Corisco.
É simples defesa da prole.
Nada mais...
Parece a todos
que não conhecem o sertão brasileiro, há aqueles que nunca trocaram as avenidas
asfaltadas e arborizadas das cidades litorâneas pelos caminhos ásperos do
interior brasileiro, parece ridículo, tão fácil se lhe afigura a solução, o
problema do banditismo.
Pobre ilusão, louca ignorância.
O banditismo nordestino é filho legítimo do aspecto social do Nordeste.
Não depende sua solução simplesmente de repressão policial.
Está muito na contingência do lento penetrar da civilização por aquelas
paragens.
É curiosa a
origem do amofinamento que se nota no sertanejo em relação aos bandidos. Nasceu
de uma mera sugestão.
Surgiu Lampião, temível, façanhudo, ousando atacar cidades do porte de Mossoró.
Lampião, não é mais uma personalidade. Tornou-se nome de guerra, de que lançam
mãos todos aqueles que se requerem fazer temidos como bandidos.
Só o nome é um prestígio. O indivíduo pouco importa que seja raquítico e
covarde.
Basta o nome. Paralisa, hipnotiza. Ninguém tem mais coragem de lhe opor a menor
resistência.
Entrega-lhe tudo – dinheiro, mulher e filhos. Um pavor.
E, hoje, qualquer vagabundo, dono de um pouco de atrevimento, arma-se, reúne
dois ou três companheiros e eis mais outro grupo de Lampião.
Não invento, não fantasio.
É fato que acontece constantemente, nos últimos tempos, em vários pontos do
município de São Paulo, a menos de vinte léguas de nossa bela capital.
Fonte: facebook
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