Quando Carlos
André resolveu gravar Se meu amor não chegar, teve gente que o alertou:
"Essa música é popular demais para o senhor." Colocaram a canção lá
no lado B de um compacto duplo. Em poucos dias, tornou-se sucesso que fez o
disco sumir das prateleiras. O hino do homem que sofre à mesa de um bar é até
hoje uma das âncoras que mantém o cantor no mercado: além dos shows, de
frequência semanal, ele também media apresentações de colegas como Roberto
Müller e José Ribeiro. "Se eu gravasse 'o quebra mesa' hoje, ficava
rico".
“O Rei dos Motoristas de Táxi”. Carlos André estava chegando a Manaus para mais
um show quando viu o cartaz que anunciava a sua apresentação naquela noite. Era
ali apresentado a mais um título que indicava tanto o seu lugar quanto o de
seus fãs na pirâmide sociocultural do País. Conhecia outros: era “artista de
cabaré”, “cantor de brega”, fazia “música de empregada” (e de caminhoneiros,
pedreiros, manicures, serventes, estivadores, putas). Carlos e os outros
cantores do romântico popular eram os tenores de uma enorme parcela de
trabalhadores que prestavam serviços pouco prestigiados para a classe média
criada com banquinho e violão. Serviam – antes mais, hoje menos – como
contraponto daquilo que era “de bom gosto” ou, no máximo, cabiam na esfera do
folclórico e do risível.
Nesse sentido, era quase um impropério, entre intelectuais e demais
esclarecidos do Brasil de 1975, ouvir e cantar versos como “Não posso mais, eu
confesso/ Confesso que vou chorar/ Eu hoje quebro essa mesa/ Se meu amor não chegar”.
Escondida na última faixa do lado B do compacto duplo O apaixonado, a música Se
meu amor não chegar (Lindolfo Barbosa e Wilson Nascimento) provocou um sismo
nas rádios do País quando foi lançada. Foi em grande parte por causa dela que o
artista nascido em Mossoró, no Rio Grande do Norte, foi parar em Manaus: virou
astro nas regiões Norte e Nordeste do País, aquelas que melhor acolhiam tais
artistas e, por isso mesmo, terminavam fazendo parte do cimento do preconceito
em relação a tal produção. Esse olhar negativo era duplo: enquanto direitistas
julgavam as músicas como cafonas, esquerdistas viam ali o subjugo do intelecto
a favor da alienação. “A esquerda era muito elitizada”, conta Carlos André,
cujo escritório é decorado com várias capas de discos, inclusive aquele que
traz o “Quebra-mesa”, como seu maior sucesso ficou conhecido. O enorme
interesse pela música agradou imensamente à gravadora Beverly: um milhão de
cópias foram vendidas, instigando a empresa a realizar mais cinco discos com o
mesmo título O apaixonado (que distinguiam-se pelo número do volume: 2, 3, 4,
5, 6).
Trio Mossoró - João, Hermelinda e Oséas Lopes
Foi o momento máximo de um artista que havia iniciado a carreira no fim da
adolescência, quando fez parte do Trio Mossoró (ao lado dos irmãos Hermelinda e
João, ele usava o nome de batismo, Oséas Lopes). O trio, formado nos anos 50,
fez sucesso em um Sudeste que consumia com certo apetite o forró e o baião,
sendo Luiz Gonzaga o mais cortejado nome. Quando o interesse por tais ritmos
começou a arrefecer, foi a vez de a música romântica trazer seus ídolos – e foi
aí que Carlos André deixou Oséas para trás, gravou suas dores – e estourou.
Queria ser artista desde criança: usava folha de carnaúba como se fosse
sanfona, gostava de chamar atenção de quem estava ao seu redor. “Na vesperal de
domingo, o programa era ir ao cinema ou ver Oséas Lopes pular da ponte.”
Prestou serviços pouco comuns, como pintar carroceria de caminhão e entregar
bilhetes para o delegado soltar este ou aquele preso. Nessa época, usava uma
bicicleta que tinha um motorzinho. Mas gostava mesmo era de cantar, aprendeu
ouvindo a própria mãe, que cozinhava e arrumava a casa soltando a voz. Esse
gosto foi observado por Canindé Alves, locutor da Rádio Tapuyo, que chamou o
rapaz lá no estúdio. Ele cantou uma música para Nossa Senhora Aparecida e fez
sucesso. “Eu era o cara mais famoso da cidade.” Só que a cidade era pequena
demais para o nível de aparecimento que Oséas queria: decidiu ir para
Fortaleza. Também achou pequena. Veio para Recife e se apresentou no programa
de Fernando Castelão (o popularíssimo Você faz o show, apresentado aos domingos
na TV Jornal). Trabalhou também com Orlando Silva, criador de novelas para a
mesma emissora. Mas não era exatamente o que queria: voltou para Mossoró e para
o antigo emprego, no qual ganhava bem. Mas queria mesmo o Rio de Janeiro. Em
1959, arrumou as malas e pegou um navio. Foram sete dias e sete noites
navegando até chegar ao porto da cidade. Instalou-se em um dos galpões
localizados no bairro de São Cristóvão. Lotado de nordestinos que também
buscavam algo dourado na cidade, o local quase não conseguia abrigar mais uma
rede. “Era um depósito de sal. Não tinha lugar pra mim. Aí um vigia, Calazans,
que também era de Mossoró, encontrou um canto pra minha rede. Mas era bem no
local onde passava o trem. Eu tinha que acordar todo dia às 5h30, pois o trem
passava às seis. Calazans me acordava gritando ‘Olha o trem!’ Eu pagava a ele
comprando uma abacatada e um pastel, toda manhã.”
Apesar de contar com o apoio financeiro do pai, cuja renda permitia uma
confortável vida familiar, Carlos André começou a fazer bicos – e foi mais ou
menos por causa de um deles que mais tarde obteve a incrível soma de um milhão
de discos vendidos. Estava entregando uma carta no edifício da Rádio Nacional
quando encontrou o prestigioso Trio Irakitan, contratado da casa. Também vindos
do Rio Grande do Norte, Edinho, Paulo e Joãozinho ficaram sabendo que o
conterrâneo estava há quase um mês no Rio experimentando um pouco confortável
anonimato após sair de Mossoró, onde era celebridade. Oséas também aproveitou o
laço geográfico que os unia: o trio possuía um programa na rádio, o que o
ajudou a chegar a nomes como Rildo Hora (caruaruense exímio na harmônica) e
Paulo Gracindo, apresentadores do programa Gaita Hering. Conseguiu ser
contratado e logo saiu do galpão de sal. Os irmãos de Oséas vieram do RN e
continuaram a parceria iniciada no Nordeste. Em 1962, lançaram Rua do namoro,
em 1965, Quem foi o vaqueiro. Ganharam o troféu Elterpe (o maior da música
popular nacional nos anos 60) com a música Carcará, aquela que dois anos depois
transformaria uma jovem Maria Bethânia, cantando no Teatro Oficina, em mito.
Foram mais dez discos até que, em 1972, Oséas Lopes decidiu ser Carlos André e
o trio chegou ao fim.
O apaixonado veio em 1974 e logo todos cantavam as dores do homem que se
perguntava “Pra que dois copos na mesa/ e uma cadeira vazia?” Ironicamente, a
canção que tornaria Carlos André nacionalmente famoso quase não era gravada –
foi considerada por alguns como “popular demais” para ser interpretada pelo
cantor. Seu conteúdo atormentado, pouco contido, dramático, soava meio...
brega. “Diziam: ‘Essa música é muito sem-vergonha para o senhor cantar’. Mas se
ser brega é agradar o povão, então eu sou.” Lançou mais 32 discos, boa parte
deles gravados enquanto Carlos também trabalhava como diretor artístico da
Copacabana, que o contratou em 1979. Produziu trabalhos de artistas como Luiz
Gonzaga (“Ele ajudava todo mundo”). Com dinheiro no bolso e fama, Carlos André
não entrou na rotina padronizada dos artistas populares que o cercavam,
preferindo não envolver-se em farras intermináveis, onde a soma bebida e
mulheres era regra. “Eu era muito família, saía do show e ia direto pro hotel.”
Nos anos 80, lançou seis discos e mais uma coletânea, trabalhos que foi
realizando até sair da Copacabana, no fim da década. A década de 90 vaticinou o
fim de uma época, e foi justamente nela que Carlos André iniciou um quase
caminho de volta: foi morar em Fortaleza, cidade que sempre cortejou os cantores
populares – e onde vários deles, a exemplo de Genival Santos, presente nesta
série, vivem. Foi o momento no qual regravou um sucesso popular, Siboney
(Ernesto Lecuona e Dolly Morse), que se tornou famoso nas rádios nordestinas.
Recife, no entanto, continuava a ser o polo regional de música, o que logo
atraiu o artista: em 1996, veio para a capital a convite de João Florentino,
dono da Polydisc, produzir a famosa série 20 Super Sucessos (na qual os hits de
cantores como Roberto Muller, José Ribeiro, Adelino Nascimento, Waleska,
Fernando Mendes e Leonardo foram compilados). Trabalhou durante anos na empresa
até ser desligado. O mercado já sentia os efeitos da gravação caseira de
discos. “A pirataria acabou com a produção”, diz Carlos André, que, naquele momento,
voltara a também ser Oséas Lopes, o homem à frente do escritório local da
Sociedade Brasileira de Administração e Proteção dos Direitos Intelectuais
(Socinpro). É desse trabalho, além dos shows que faz e ainda produz, que vive
hoje. “Se o ‘Quebra-mesa’ fosse sucesso hoje, eu estaria rico”, comenta ele,
que, religiosamente, durante seus shows, desce até a plateia para cantar seu
maior hit ao lado dos fãs. “Não acho cansativo, acho gratificante. Quando a
música se imortaliza, não se acaba mais. Estamos fazendo shows com sucessos de
ontem”, comenta, referindo-se a colegas como Müller e Bartô Galeno (seu maior
parceiro nas mais de cem composições que escreveu, músicas como Toma juízo
mulher, Vou devolver a cama, Vou dormir no chão). No escritório da Socinpro,
ele vai recebendo interessados em contratar seu show ou de outros cantores – é
difícil manter sua atenção contínua na entrevista enquanto ele tenta marcar
datas e estabelecer preços. Nas cerca de duas horas, no primeiro encontro com
Carlos, seu telefone tocou 13 vezes (celular e fixo). No último deles, o
artista recebia mais uma proposta de show. “Estou em uma entrevista, mas me
ligue depois. Você sabe que quando quiser um brega é aqui. E é de qualidade”.
Fonte: http://jconlineinteratividade.ne10.uol.com.br/romanticos/carlos_andre.html
Enviado pelo pesquisador José Edilson de Albuquerque Guimarães Segundo
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