Por Ivone Boechat
Quando eu era
criança, o velório era um acontecimento.
A cidade era
pequenina, então tudo se divulgava rápido. Em pouco tempo, o alto-falante da
igreja onde o falecido frequentava comunicava, em alto e bom som, o passamento desta
para uma vida melhor, ou se usava um carro anunciando detalhes:
quem morreu, onde, idade, motivo do óbito.
A morte
pairava nas piadas! Antes de acontecer o pior, até o doente bem humorado
brincava: fiquei tão mal que por mais um pouco comia capim pela raiz; pensei
que fosse vestir um pijama de madeira, etc... Depois, se porventura o sujeito
morresse, aí, sim, a coisa era levada a sério e o sepultamento era
um fato social marcante.
Naquele tempo
não se fechava uma tampa de caixão sem jogar perfume e pétalas de flores sobre
o defunto. Já fui encarregada de comprar muito perfume ruth para
pulverizar por cima do morto. Nunca me esqueci do cheiro. O perfume, claro,
perdia a personalidade, por causa do odor muito forte de cravo, cravina, brinco
de princesa, de rosas miúdas de cores variadas. Não havia casa de venda de
flores, as crianças saiam pedindo nas portas das casas. Já ouvi muita coisa.
- Esse defunto
morava em cima da pedra?
- Vou dar, mas
não sei nem se merece.
- Vá em paz.
Houve negação:
- Pra aquele
cara? Bata em outra porta.
A caravana de
crianças saía em mutirão solidário e não respondia a nenhuma provocação, nada.
Quem deu, tudo bem.
As coroas de
flores eram artificiais, confeccionadas com papel crepom.
Excepcionalmente, aparecia uma coroa de flor natural.
Se morresse um
bebê, a partir de um ano, ou um jovem, as pessoas choravam mais, conhecendo ou
não o falecido. Quando morria um velhinho, a conformação era maior, mas mesmo
assim, as pessoas choravam muito mais do que hoje. Na hora em que o caixão ia
passando para o cemitério, as portas do comércio ficavam quase fechadas. Os
rádios eram desligados, os homens tiravam o chapéu, até o de palha; era muito
silêncio. Se fosse enterro de católico, o sino da igreja batia
compassado: tom... tom... tom... E eu ficava pensando, que pena! Devia tocar
pra todo mundo.
Os velórios
tinham longa duração. Os alto-falantes, dependendo da importância do sujeito,
davam uma nota, de tempo em tempo, com uma voz de relações públicas de
necrotério: “A família de ... comunica a sua partida...” - anunciando a
hora tradicional do sepultamento que nem era mais novidade pra ninguém: 16h.
Todo mundo lá era enterrado nessa hora. Um dia falei para o meu pai que a nota
de falecimento estava errada, porque a pessoa que morre não parte, ela chega. E
vi que ele acabou rindo.
A verdade é
esta: chorava-se mais! Ainda havia loja vendendo lenço pra todo lado
e a gente, ao sair de casa, ouvia a recomendação: não se esqueça do lenço.
Tinha lenço de tudo quanto era jeito: xadrez, de bolinha, de florzinha. Era
muita lágrima! Nas festas de aniversário o que mais as pessoas ganhavam era
caixa de lenço.
O luto pela
morte era longo. Minha avó ficou de luto uns 20 anos e com as duas alianças no
dedo: a dela e a do jovem marido falecido. Depois começou a vestir roupa
cinza, até se vestir, discretamente, como viúva eterna: roupas feitas com
tecido de fundo preto e flores brancas.
O cemitério
estampava, logo na entrada: revertere ad locun tuun. Fui saber o que
significava aquilo com o único funcionário no local: o coveiro. Fiquei
espantada, porque o coveiro respondeu, automaticamente: - a tradução
daquilo escrito ali é: - Volte ao teu lugar.
Ele “sabia”
latim e eu detestava. Ele disse o que significava a frase, sem olhar para a
parede, sabia de cor.
É assustador,
mas aprendi a falar a única frase que eu sabia no primeiro ano do ginásio com o
coveiro. E não deu outra. Na segunda feira, estufei o peito e disse para a
minha colega de carteira escolar: revertere ad locun tuun. Ela me
olhou assustada e eu esnobei: aprendi latim (ela também tinha
horror) e disse a frase, várias vezes, sem tropeçar na pronúncia e traduzi, sem
dicionário. Ela ficou de boca aberta. Onde você aprendeu tudo isto. E eu nem
parei para pensar: - no cemitério.
Ela também
passou a frequentar os velórios!
Enviado pela professora Ivone Boechat
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