“Antes de se
dirigir para a casa–grande, os cangaceiros deram, a galope, umas duas voltas em
torno da praça, aparentando surpresa por não haver ninguém no lugar, muito
menos ter sido preparada nenhuma resistência contra eles. Demonstravam que
vieram mesmo dispostos a travar um intenso tiroteio contra os moradores do
povoado. Estavam todos armados de fuzis, e tinham voltado a vestir as suas
roupas de navegação, que haviam abandonado temporariamente enquanto estavam
pacificamente hospedados na fazenda.
Mesmo constatando
que o povoado estava deserto, os cabras se posicionaram de forma estratégica em
torno da praça, para prevenir possíveis ataques, enquanto Lampião, Luís Pedro e
Ezequiel Ponto Fino se dirigiram, ainda a galope, na nossa direção. Riscaram a
dois metros do alpendre.
– Muito bom
dia, seu Jeremias. Muito bom dia, seu Aparício – bradou o capitão – Que
surpresa boa encontrá–los por aqui, uma hora desta. Cadê o povo da terra? Se
escafederam assim de repente?
– Mudou–se
todo mundo para a vila, capitão – respondeu Jeremias, sem levantar–se da
cadeira, aparentando uma assustadora tranquilidade.
Eu fui me
levantando devagar, em sinal de respeito a Lampião, e ao mesmo tempo sem saber
que postura adotar diante do impávido Jeremias. Lampião foi descendo calmamente
do cavalo, sem tirar os olhos de mim e do capataz. O olho esquerdo brilhava de
ódio, o olho cego lacrimejava desprezo, e havia um sorriso meio zombeteiro nos
lábios finos e arqueados. Luís Pedro e Ezequiel permaneciam em silêncio, e
pareciam perplexos diante da placidez de Jeremias.
O capitão
colocou um pé sobre um dos degraus do alpendre e descansou o fuzil sobre a
perna, olhando fixamente para nós. Minhas pernas começaram a tremer. A figura
de Lampião, naquele momento, era muito assustadora. Estava ali na sua mais
inteira potencialidade de destruição e crueldade, embora de forma contida e
dissimulada. Fazia o papel de cavalheiro do Mal. Era o Demônio na sua
traiçoeira performance de elegância e cordialidade.
(...)
Lampião
manteve cravado sobre mim o olhar inquisidor. Estava bem próximo de mim, eu
sentia o seu cheiro forte, a emanação do seu calor. Embora fosse de minha
altura, parecia bem mais alto, enorme, gigantesco. Meus cabelos estavam
arrepiados.
(...)
Lampião
virou–se para a praça e soprou o apito que trazia pendurado ao pescoço. Aquilo
me deu um arrepio por todo o corpo. Imediatamente os cangaceiros espalhados
pela praça esporearam os cavalos e vieram a galope, concentrando–se todos em
frente à casa–grande. O capitão ordenou:
– Compadre
Mariano, reúna um grupo e vá até o curral. Quero que matem com tiros de fuzil
todos os animais que estiverem lá. Antonio de Engrácia, reúna outro grupo e vá
até o depósito de grãos e à casa–de–farinha. Destruam tudo! Não quero nada em
pé, nada funcionando, nada prestando mais para nada.
A seguir,
virou–se para Jeremias e segurou–o pelos cabelos com brutalidade, fazendo–o
levantar–se da cadeira de balanço.
– E vosmecê,
seu fio da peste! O que faz aí sentado? Fique de pé diante do capitão
Virgulino, gangrena do estopô!
Jeremias ficou
em pé, sem fixar o olhar em nada, como se estivesse imerso num torpor.
Virgulino olhou–o da cabeça aos pés.
– Eu podia
sangrar vosmecê agora, seu condenado, mas tenho que reconhecer que vosmecê é um
cabra de coragem. E eu respeito homem valente. Por isto vou lhe dar uma chance.
Vou deixar que você escape desta, se sumir imediatamente da minha vista!
Mal o capitão
terminou a frase, Mariano e o seu grupo retornaram do curral.
– Capitão, não
tem um pé de criação no curral.
– Como não tem
animal no curral? E onde foi parar o gado do coronel? – perguntou Lampião, já
olhando para Jeremias.
– Cadê o gado
do coronel, seu pustema? – gritou, próximo ao ouvido de Jeremias.
– Soltei o
gado todo na caatinga ontem à tarde, capitão – respondeu o capataz, corajosamente.
Ezequiel
interveio:
– Virgulino,
vosmecê tá perdendo tempo com este desgraçado! Não vê que o miserável soltou o
gado pra evitar que a gente matasse os animais? Ele fez tudo planejado, meu
irmão. Enfia logo o punhal no pescoço desta desgraça!
Eu tomei
coragem e me meti na discussão:
– Capitão, por
favor, não mate Jeremias. Ele já vai sofrer punição nas mãos do coronel.
– O senhor não
se meta onde não é chamado, seu Aparício! – respondeu Lampião, lançando sobre
mim um olhar que me fez fugir num átimo o sangue do rosto.
Ezequiel
saltou do cavalo e já veio subindo para o alpendre com o punhal desembainhado.
– Deixe que eu
sangro este peste, Virgulino. Tenho uma conta pra ajustar com este corno.
– Alto lá,
Ezequiel! – gritou o capitão – Quem decide aqui sou eu!
E mandou o
próprio Ezequiel, acompanhado de Mergulhão, procurar querosene dentro da casa.
Não seria difícil achar o produto, usado cotidianamente para acender os
candeeiros. Os cabras voltaram logo depois com duas latas cheias.
– Amarre as
mãos deste sujeito para trás – ordenou–me Lampião, estendendo–me uma tira de
couro que havia tirado dos arreios do seu cavalo.
Achei curioso
ele ter–me incumbido desta tarefa. Mas, enquanto amarrava as mãos de Jeremias,
dei–me conta que o capitão ainda queria dar uma chance ao capataz. Acreditando
nesta hipótese, deixei os nós frouxos, relativamente fáceis de serem desfeitos
por quem tem habilidade com as tarefas de uma fazenda. Ao mesmo tempo, senti–me
um pouco aliviado, com a esperança de que o capitão, ao confiar em mim esta
incumbência, provavelmente me pouparia de qualquer violência.
– Espalhem
querosene pela casa toda, e também pela casa do capataz. E toquem fogo em tudo!
– ordenou.
Ezequiel e
Mergulhão cumpriram a ordem, e em poucos minutos começavam a subir as primeiras
labaredas em vários cantos das duas casas. Aí veio o momento mais terrível.
Lampião puxou Jeremias por um dos braços, e foi arrastando–o com muita
truculência para a porta da casa. Jeremias voltou–se rapidamente para mim, os
olhos arregalados de pavor:
– Seu
Aparício, se o senhor sair vivo desta, peça ao coronel pra tomar conta de minha
família.
Só deu tempo
para dizer esta frase, pois Lampião deu–lhe um violento empurrão, que o derrubou
de bruços no meio da sala de visita, onde os móveis já estavam sendo tomados
pelas chamas. A seguir fechou a porta.
– Se ele for
macho mesmo, consegue se livrar das amarras, e pode escapar pela porta dos
fundos. Não quero nem saber se vai conseguir. O Diabo que o carregue! – disse o
capitão.”
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