Por Zózimo Lima
Aconteceu em
tempos que se foram. Conto como me narraram, e os fatos têm o cunho da
veracidade porque me foram revelados por contemporâneos das sobreviventes
vítimas do canibal humano. Muitos descendentes dele por aí andejam, alguns
abastados, outros pobres, como terminou o protagonista desta triste história.
Era, contudo, honesto em matéria de dinheiro.
Voluntarioso, ríspido, violento e bárbaro como um mongol, da fibra do sanguinário tártaro Gengis Khan, assim era o poderoso e rico Bento de Faro Mota, dono dos engenhos Massapê, Pedrinhas e Tanque do Moura, no município de Laranjeiras, cidade esta que, àquele tempo, tinha cerca de oito padres espalhados pela sede e capelanias.
Bento de Faro Mota, que era figura de relevo nos meios rurais e de importância nos teres e haveres, quando entrava na cidade espalhava pelas ruas o terror que infundiam às populações do alto sertão e litoral as razias sangrentas do crudelíssimo Virgulino Ferreira — o Lampião.
Os escravos temiam-lhe a dureza do olhar feroz, que era prelúdio, logo ao despertar do dia na bagaceira e no canavial, dos açoites tremendos por dá cá aquela palha. Bento de Faro era, além de portador de possíveis taras psicopáticas, dado às libações alcoólicas em alta escala. Descia-lhe, na garganta, não só o saboroso vinho do Porto como, nos intervalos do almoço e do jantar, copázios de aguardente de 40 graus, de mistura com junça e pindaíba.
Para bem se avaliar o grau de crueldade a que era levado Bento Mota, é mister que aqui se conte o trágico episódio, certa tarde, às vésperas da feira semanal do povoado Pintos, hoje Riachuelo, ocorrido no engenho Massapé. Dois simplórios itabaianenses arriaram as suas cargas de gamelas no alpendre anexo à caixaria de açúcar do engenho. Uma das filhas de Bento, ao dar uma carreira em direção à casa-grande, descobrira, levantada involuntariamente a saia, um palmo de perna branca, bem feita, torneada. O tabaréu sem a mínima malícia chamara a atenção do companheiro para o que estava à vista, pensando assim satisfazer à vaidade da jovem sinhazinha. Esta reclamou em altas vozes, tomada de pudor mal compreendido, contra a audácia daqueles broncos almocreves. E contou ao pai, com enfeites de intrigas, o acontecido. Bento, furioso, tomado de súbita loucura, mandara, por escravos truculentos, cortar de chicote e esmagar a pontapés os dois pobres diabos, terminando por atirá-los na fornalha fumegante.
De outra feita, num domingo, porque o capelão da igreja Bom Jesus não o esperara para começar a missa, Bento de Faro o escorraçara por escravos, fazendo-o embarcar em canoa com a advertência de não mais aparecer para a prática da sua missão sacerdotal. Aquela capela fora, anos depois, quando em ruína, restaurada pelo coronel João Garcez. Os crimes de Bento Mota foram levados ao conhecimento do Imperador, que mandara prendê-lo e processá-lo. Bento fugira e fora procurar proteção em Simão Dias, na pessoa do rábula Galdino de Almeida. Este o conduzira ao Barão de Jeremoabo para ver se por ele poderia fazer algo que o beneficiasse. O Barão era homem austero, bondoso, e justiceiro. Declarara ao advogado Galdino que Bento era um monstro que precisava ser punido rigorosamente. “E se, por acaso — interveio Galdino — lhe batesse Bento à porta pedindo abrigo?” O Barão respondera que, de acordo com os seus sentimentos de cristão, lhe daria a caridade do amparo. — “Pois aqui está o Bento, em sua presença”.
O Barão de Jeremoabo, ao ver aquele homem, de quem era inimigo rancoroso, metido num gibão de couro aos pedaços, magro, escaveirado, barba intensa e grenha alinhavada, irreconhecível à primeira vista, sentiu profunda comoção e, levantando a destra, traçou no espaço um gesto de perdão. E acabou por impetrar ao Imperador benevolência em favor daquele desgraçado que, humilhado, viera pedir-lhe a esmola da piedade.
Bento de Faro Mota terminou seus dias na maior penúria, repelido por todos os que o conheceram no auge da fortuna e da selvageria.
Restam-lhe hoje descendentes, de gênio diferente, homens de bem.
"Correio
de Aracaju" – 31/07/57
Material do acervo do pesquisador do cangaço Antônio Corrêa SobrinhoLampião,
Cangaço e Nordeste
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