Por Rangel Alves
da Costa*
Assim que a
pedra de gelo bateu no telhado, a mulher logo começou a estremecer, a se
benzer, a pensar no pior. Gritou pelo marido, mas este já estava correndo em
direção à porta para ver se se confirmava a gritaria: Tá chovendo pedra, tá
chovendo gelo, eita que o mundo vai se acabar. Valei-me Deus, valei-me!... O
homem logo se assustou ao sentir que uma pedra de gelo caiu-lhe bem aos pés,
não olhou pra cima com medo, mas teve vontade de se meter debaixo da cama.
Gritou pela mulher e esta, ao se aproximar e presenciar um monte de gelo
caindo, não suportou a estranheza e desmaiou quase na porta de casa. Pelas ruas
era um bafafá danado, uma gritaria de não se acabar mais, choros e lamentos de
arrepiar qualquer um. “Tudo culpa do homem pecador, é o fim dos tempos, é o fim
do mundo, pois estava escrito que o homem chegará ao seu fim pela pedra de gelo
caída dos céus. E isto bem merecido, vez que o gelo se transforma em fogo e a
carne gelada vai derreter nas profundezas ardentes da perdição. Aleluia,
aleluia”, esbraveja o de paletó e bíblia à mão debaixo da chuvarada, e sem se
importar com as pedradas que lhe caíam à cabeça. Dizia-se já salvo pela fé.
Mistério dos
mistérios, coisa acontecida já desde uma eternidade, e de repente, ao invés de
pingo d’água grande e grosso, o que começa a cair lá de cima é pingo congelado,
verdadeira pedra de gelo, graúda, de bater em telhado e espatifar a cobertura
inteira. Era um barulho tão grande das pedras sobre os telhados que se
imaginava o barro sendo quebrado a marretadas. Quando as telhas se dilaceravam
e as vagas se abriam, então os pingos congelados encontravam passagem e caíam
sobre mesas, móveis, jarros, flores de plástico, sofás, tamboretes, cadeiras,
animais e pessoas, para somente depois se espatifar pelo chão. Uma pedra achou
uma boca de pote aberta e o que se ouviu depois foi o barro sendo rachado em
mil pedaços. Outra pedra caiu sobre uma panela no fogão e o resultado foi
sarapatel espalhado pela cozinha inteira. Mesmo de chapéu de couro, um caboclo
quase tomba ao chão quando foi atingido por um verdadeiro iceberg. No baque
sentido, pulou feito uma lagartixa e nem pensou duas vezes em dar o troco.
Tomou mão de uma espingarda e começou a atirar para cima, na direção de onde os
pingos caíam. Mas foi pior, pois pinicou quase todas as ripas e o que ainda
restava lá em cima veio a baixo de vez. E por cima dele, que por pouco não foi
pro beleléu.
Só mesmo coisa
de bêbado, mas um pinguço contumaz, logo que sentiu gelo fácil caindo por todo
lugar, se lançou porta afora com um copo de vodca à mão, tombando e gritando:
“Eu sabia que esse dia ia chegar, e chegou. Até que enfim lá de cima alguém se
lembrou de mandar gelo para misturar com bebida. Coisa melhor não podia
acontecer, aqui no bem bom, debaixo da chuva, de copo na mão e o garçom lá de
cima toda hora trazendo gelo pra botar no copo. Vou é trazer a garrafa pra cá,
pois gelo é o que não falta”. E sentou no chão segurando o copo, mas de vez em
quando direcionando até onde caíam as pedras. Mas de repente aconteceu algo que
não esperava. Caiu uma pedra espatifando o copo, o que gerou imediata revolta:
“Aí também é sacanagem. O copo é meu, a bebida é minha, só porque o gelo não é
também não precisava fazer assim, com toda essa falta de educação. Se não
quiser dar o gelo que não dê, mas jogar ao invés de trazer aí é demais”. E se
esforçou ao máximo para levantar e ir buscar mais uma dose.
Enquanto isso,
espantada com o acontecimento, vez que jamais tinham visto pedra de gelo caindo
do céu no lugar de pingo d’água, a meninada ora tremia de medo ora queria a
todo custo correr para a rua e recolher cada pedaço numa bacia. Mas o medo
falava mais alto e quase todos permaneciam pelas frestas ainda sem acreditar no
que presenciavam. Os mais afoitos, não ouvindo sequer o conselho dos pais,
corriam para logo voltar chorando pelas pedradas recebidas. Mas por
dentro das casas, dos quartos, nos escondidos dos casebres, as promessas,
preces, rogos e orações, não cessavam. Com lágrimas nos olhos, e até com
tremores medonhos, senhoras e velhas levavam os rosários ao peito para implorar
salvação, para que aquela chuva de gelo imediatamente parasse, antes que
provocasse uma tragédia sem igual: o sertão da seca se acabar pelo gelo. Por
isso que preferiam mil vezes o raio escaldante do sol a ter pedras de gelo
caindo por todo lugar. Ventilou-se chamar o vigário para organizar promissão,
mas este, devidamente escondido na sacristia, apenas afirmou que nada podia fazer
ante a fúria dos céus contra o mundo em devassidão.
Tudo isso
logicamente que é um exercício de ficção, mas recentemente uma chuva de granizo
caiu no sertão sergipano, mais precisamente no povoado de Santa Rosa do
Ermírio, município de Poço Redondo, que provocou espanto sem igual. Mesmo sendo
um fenômeno tido como normal depois de longos períodos de estiagem, ainda assim
muitos não conseguiam chegar a outra conclusão: É o fim do mundo. Granizo no
sertão é sinal de fim de mundo.
Poeta e
cronista
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