A saga do
cineasta amador Benjamin Abrahão, o único a filmar Lampião e seu bando de
cangaceiros, antes do massacre de Angicos.
Dentre os
jovens libaneses que, durante a Primeira Guerra Mundial, deixaram vilas e
cidades até hoje obscuras entre as montanhas de cedros, estava um rapaz de
Zahelh (a das tâmaras doces) chamado Benjamin Abrahão. Ele seguiu o impulso de
evasão, mas em vez do destino preferencial, a América do Norte, foi para o
borrão dos edens do hemisfério sul e suas estranhezas: selvas, sertões e
sertanejos parecidos com alguns dos imigrantes da sua terra. Abrahão deu adeus
às tâmaras em busca dos frutos tropicais ácidos e barrocos no aspecto, naqueles
lugares de sol refulgindo em nomes inesperados como "Pernambuco" -
com a sua sugestão de oco do mundo e porto de ventos entre fáceis riquezas.
Abrahão chegou, assim, a um Recife ainda sereno, cortado por um rio lento. O
rapaz dos jardins orientais viu o Derby elegante, os jogos de times de futebol
e regatas, os cinemas Royal e o Glória às vezes exibindo filmes locais, cujos
letreiros ajudavam a aprender a língua.
No melodramático Filho sem mãe, de Edson Chagas, o imigrante veria, pela
primeira vez, a figura de um cangaceiro, ao mesmo tempo mítica e pobre,
injuriada e condenada a morrer, no futuro imediato, pela chegada do progresso.
Nessa altura, Abrahão vendia tecidos, como um mascate entre os muitos que percorriam
as ruas de casas com varais coloridos de roupas ao vento. Passado um tempo, as
ofertas do libanês se ampliaram também para farinha, fubá de milho, rapadura e
carne do sertão. Esta palavra - "sertão" - viria a fazer parte
fundamental da sua vida, embalaria seus sonhos e selaria, um dia, o seu
destino. Ele era um montanhês, e sentia falta dos espaços mais livres das
pontes graciosas sobre o Capibaribe. Um dia, Benjamin comprou dois burros -
Assanhado e Buril -, o cavalo Sultão e um segundo estoque de mercadorias. Em
seguida, partiu para Juazeiro do Norte (CE), o antigo arraial
"inchado" pelos romeiros do padre Cícero Romão Batista. Começava a
aventura cinematográfica do mascate vindo dos sertões do Líbano.
No staff do Padim
Estrangeiro jeitoso e falante, Benjamin Abrahão conheceu logo o Padim Padre
Ciço dos cangaceiros e coronéis, e se tornou, com o tempo, nada menos que o seu
"secretário para assuntos internacionais". Na louca Juazeiro das
fanáticas multidões, passava pela cabeça do padre a possibilidade de ter
assuntos de "relações exteriores" para tratar. Foi nessa condição que
o nosso peregrino da sorte pôde testemunhar, na verdade, as relações
conflitadas no próprio sertão, quando, numa clara manhã de março de 1926, o
cangaceiro Lampião e mais 49 cabras triunfalmente entraram na cidade das rezas.
Dizem que Abrahão já alcançara status suficiente, naquela "corte",
para estar presente à reunião na qual o "primeiro-ministro" do padre
Cícero - o deputado Floro Bartolomeu - concedeu a patente de
"Capitão" ao controverso "afilhado" do religioso, a fim de
atraí-lo para a luta contra a Coluna Prestes, inimiga do governo do presidente
Artur Bernardes.
Virgulino Ferreira da Silva desde o primeiro momento impressionou o assessor
juazeirense para assuntos das "estranjas". Ali estava uma espécie de
guerreiro de Saladino, agarrando o seu punhal de 48 centímetros com dedos
morenos enfeitados dos anéis de pedras duvidosas. Tinha senso da cena, nas suas
chegadas e ataques: vestia-se com uma roupa de campanha atravessada de
bandoleiras que lembravam mexicanos revoltosos, sem perder nada do exame de uns
óculos de finos aros de ouro a lhe darem certa distinção equívoca, feita de
segurança e ameaça. Desfilando pela rua, pisava forte como um príncipe tisnado,
e dava entrevistas, era fotografado pelos repórteres (Lauro Cabral e Pedro
Maia) convidados do "Dr. Floro".
Com senso de
decoro, o bandoleiro não se hospedou na casa vizinha do "coroné", nem
muito menos foi se aboletar numa casa próxima da residência casa paroquial.
Ficou alojado no lar do comerciante e cordelista João Mendes, amigo de Abrahão
Benjamin. "Tem um filme nisso tudo" - é possível que ele tenha
pensado, lembrando dos cinemas do Recife. Seja como for, a impressão ficou,
indelével, nas retinas do almocreve e antigo fã de Tom Mix. Abrahão era, agora,
fã do cavaleiro andante do sertão de verdade, no "Oeste" da seca
queimando entre os santos e pecadores cantados em folhetos.
Passou o tempo. Aclimatado aos Brasis, mais adiante o libanês-brasileiro estava
em outro cenário: num cinema da avenida Rio Branco, em julho de 1931, já casado
com cabocla cearense que o acompanha em viagem de férias ao Rio de Janeiro. No
Cine Parisiense, ele recebeu o impacto de A fera do Nordeste, documentário da
época do filão aberto pelos filmes sobre crimes, trazia fotos da "chacina
do rio de Peixe", na Bahia, Um retrato realista das fammigeradas acções do
famoso bandido Lampeão.
Na vida de Abrahão, tal impacto foi ao mesmo tempo bom e mau: bom, porque ele
viu que o assunto já despontava nas telas, e mau, porque aquela
"fera" nordestina não correspondia à imagem viva do homem que ele
pudera ver na cidade dos romeiros. Mais do que de perto, na verdade ficara ao
alcance da perscrutação aguda do olho bom do "Cego", espécie de olhar
de Anjo da Vingança, ou de Demônio de Astúcia, atravessando um sujeito. Nunca o
esqueceria.
Em busca do protagonista
Quando voltou para o sertão, Abrahão se associou com dois tropeiros - Noel
Cassis e Zé da Bodega - que gostavam de conversar sobre Virgulino Ferreira. Zé
dizia que, aos 15 anos, conhecera o cangaceiro, ainda um artesão de selas,
cabrestos e arreios bem feitos, que ele vendia nos dias de feira em vilas do
alto sertão pernambucano. Por isso, podia falar dos motivos pessoais, que
Virgulino tivera, para entrar na vida de bandoleiro: vingar a morte do pai e
outras humilhações sofridas nas disputas com um fazendeiro de Vila Bela (José
Saturnino) e a jagunçada a seu serviço. Por Noel, o mascate ficou sabendo que,
muito recentemente, dois americanos tinham andado pelas caatingas, com
"máquinas de fazer filmes", dispostos a mostrar "o paradeiro do
bando de Lampião". Sabedor da sabujice dos sujeitos afoitos na sua pista,
parece que o celerado tinha mandado "dar um susto nos gringos" - o
que fora feito (e bem feito). Os dois cineastas desistiram da empreitada e
foram para Juazeiro, com o intuito de aproveitar o espetáculo das procissões de
romeiros. Deviam estar lá, naquele momento.
Foi assim que
os dois aventureiros - seus nomes se perderam - foram procurados por Abrahão,
mais do que nunca interessado em câmeras e truques de cinema. Servindo de guia
para os ianques na cidade que era a sua base, Abrahão se inteirou dos erros
cometidos por eles, nas tentativas de aproximação do arisco
"Capitão", e também de como funcionava aquele equipamento capaz de
imortalizar as criaturas pelo menos em celulóide (o que era, sim, um milagre
verdadeiro).
Outro milagre era a sorte que Abrahão, o Pai, reservara para o filho do Líbano:
estar em condições de pedir carta de apresentação do Padim para o Cego que
gostava de cinema, quando acontecia de encontrar algum em funcionamento nos
lugares que ele invadia como se fosse o Pancho Villa. Os americanos contaram
que o ex-bandoleiro Pancho fora, um dia, procurado no seu retiro de Chihuahua -
depois dos anos de "revolucionário" -, para encenar as batalhas
contra os "federales", diante de uma equipe de Hollywood. A oferta em
dinheiro, atraente para o velho "general", fizera Villa sair dos seus
cuidados e se lançar à tarefa de reunir antigos comandados, com armas e outras
lembranças guardadas em casa. Feito isso, aconteceram as filmagens veristas e
violentas, no meio da poeira. Nada foi aproveitado pelos produtores de Los
Angeles. Ou seja, o contrário da meta cinematográfica do ex-mascate, que agora
lidava com o comércio de pedras preciosas e queria filmar cangaceiros de carne
e osso, no seu áspero hábitat em vias de mudança, naquele Brasil dos anos 30:
um país que não admitia lidar com os redutos do banditismo rural
individualista.
Sandálias ao contrário
Certo de que o cangaço "estava com os dias contados" (ouvia isso nas
rodas de Juazeiro e da boca torta do deputado Floro Bartolomeu), Abrahão
Benjamin sentiu a urgência de filmar o bando de Virgulino Ferreira, no seu
cenário. Contou com a influência do Padim e de alguns bons contatos na rede dos
coiteiros que, bem ou mal, garantiam os meios de proteção do bandido. Era um
trançado de nós de confiança misturados com o poder da ameaça e das altas
quantias, pagas pelo cangaceiro.
O antigo mascate resolveu se internar na sombra perigosa da busca dos
"coitos" e esconderijos do chefe cheio de truques e mestre da
contra-informação. Lampião nunca dormia dois dias no mesmo lugar. Ao
"farejar" perigo, fazia seus homens calçarem as sandálias de couro ao
contrário, a fim de mudar o ir para o "vir" falso dos cabras, e
espremia roupa ensangüentada, nas trilhas, para dar a impressão de arrastar
muitos, no cálculo dos seus perseguidores. E, principalmente, vigiava a
lealdade dos sertanejos incumbidos de levar, para o chefe e os subgrupos, os
víveres necessários, as armas e as notícias, vitais, da movimentação dos
macacos (os soldados das volantes).
Virgulino
Ferreira da Silva gostava de ver filmes, quando havia quem os projetasse para
ele e seus cabras. Na invasão da cidade sergipana de Capela, em 25 de novembro
de 1929, quando tomou o lugar na companhia do irmão (Ezequiel) e dos famosos Zé
Bahiano, Volta Seca, Arvoredo, Mourão, Gavião e Moderno, ele encontrou um
cinema funcionando. O filme em exibição era Anjo das ruas, com Janet Gaynor. À
surpresa da entrada daqueles novos espectadores, foi-se a música do pianista e
do sanfoneiro presentes. Pouco depois, pararam a projeção. Lampião apenas
dardejou um olhar inquisitivo na direção da cabine às escuras. A sessão
recomeçou, mas tão nervosa e confusa, na troca dos rolos de filme , que o
bandido se retirou com os seus. Zé Bahiano, dizem, costumava atirar na tela,
contra os soldados romanos da Paixão de Cristo.
Assim, quando um obstinado Abrahão Benjamin fez chegar o seu primeiro recado,
Lampião apenas mandou perguntar se o estrangeiro teria mesmo coragem de vir se
embrenhar "nas sertãs do inferno". Em resposta, Abrahão garantiu que
era o que mais queria, depois de aumentar a fama do "Capitão"
promovido no Juazeiro ("Lampião lembrava-se dele?"). No passo
seguinte, o antigo mascate seguia a caminho de Fortaleza, onde sabia que o
cearense Adhemar Bezerra Albuquerque, dono da Abafilm, possuía uma câmera 35 mm
disponível. Era uma engenhoca de corda, da marca Nizo Kiamo, com lente normal
Zeiss, que Abrahão contava poder dominar, com um treino básico e muita vontade
de pôr na frente da Zeiss aquele violento fantasma do Brasil profundo.
Adhemar Albuquerque foi conquistado para a idéia da produção de um
filme-reportagem sobre o mais célebre dos cangaceiros. Dele, Abrahão levou a
tal câmera, cinco rolos de 100 pés de filme Gevaert Belgium e mais uma máquina
fotográfica Interview Établissements André Debrie, carregada com cartuchos.
Adhemar também lhe deu noções elementares do manejo do equipamento, com a
recomendação de que os filmes teriam de ser bem protegidos e revelados na
processadora de origem francesa que compunha o estúdio da Abafilm, no começo de
1936.
Diante da "costureira"
Passando por Juazeiro, Abrahão fez mais alguns testes de câmera com padre
Cícero e depois partiu em busca da aventura da sua vida, tomando o rumo do
interior de Alagoas. Em maio daquele ano, estava no sítio das Emendadas do
velho Bilé, parada de "reconhecimento", onde foi abordado por dois
cabras (um dos quais, o temível Sabonete) enviados pelo "Capitão",
depois de mudanças e rumos novos, traçados por emissários discretos, cruzando
aquelas paragens como simples tropeiros. Abrahão chegou ao seu destino, na
viagem ao centro da terra do seu interesse: foi levado, com o equipamento, para
as terras da fazenda Bom Nome, onde esperou ainda algumas hora antes de se
apresentar diante do homem que, durante anos, não havia esquecido, na sua
estranha magnificência. Dele ouviu uma pergunta hostil, já que boas-vindas
Lampião só dava ao Padim Ciço: "Cuma é que você chegou aqui com vida,
cabra velho?".
A primeira
tomada feita no reduto de Bom Nome foi operada pelo próprio chefe dos cangaceiros.
Foi o take número 1 da produção que restaria incompleta, inacabada e
parcialmente destruída nos porões da ditadura Vargas. Ao fazê-lo, Lampião se
tornou o cineasta de si mesmo, o diretor de uma cena que mostrava Benjamin
Abrahão olhando para a câmera e fincada, sobre o rústico tripé de madeira da
Abafilm. Isso aconteceu porque um homem com a história de Virgulino teria de
desconfiar até da própria sombra alongada sob os céus da tarde. Ou seja, seus
óculos examinaram a geringonça de metal, cheia de parafusos e manivelas, meio
parecida com as "costureiras" (como chamavam as metralhadoras). E o
"cabra velho", afinal, o que havia de querer com ele?
Mandou, portanto, que Abrahão montasse a coisa, de imediato, e ficasse na
frente dela. Só então largou do fuzil e, pedindo instruções, acionou, ele
mesmo, a máquina misteriosa. Ela fez um som cavo, de algum tatu-bola rodando
numa caixa de alumínio, e foi tudo. Estava feita a primeira cena, perdida para
sempre. Em seguida, foram ao almoço tardio - o estranho da máquina sem balas
como convidado do "Capitão".
Abrahão, naquele primeira "temporada", ficaria cinco dias no coito de
Bom Nome e mais um outro acampamento provisório. Fez fotografias (Lampião
gostava delas) e gastou os cinco rolos 35 mm com as primeiras cenas, nas quais
apareciam Lampião e Maria Déa ("Maria Bonita", no imaginário
popular), além de Cacheado, Luiz Pedro, Elétrico, Gorgulho, Vila Nova, Marreca,
Juriti, Zabelê e outros homens enfeitados ao máximo para aparecer "dentro
da geringonça do turco".
Dançarino e escrevinhador
Usados os primeiros rolos, o produtor arrojado correu para Fortaleza, a fim de
revelar aquele material inacreditável, histórico, etnográfico e documental da
mais alta importância. Estava apenas no começo do projeto que rolava na sua
cabeça.
Pretendia voltar para prosseguir filmando um modo de vida já condenado a
morrer, pelas ordens - cada vez mais impacientes - do Rio de Janeiro: o
"cangaço" é para ser extirpado, e seus favorecedores e admiradores,
castigados pelas forças policiais e de segurança vigiando, ao máximo, os focos
de resistência e simpatia para com a sobrevivência, anômala e bizarra, de
sertanejos violentos e desafiadores dos poderes da República.
Tudo se
revelou melhor do que o esperado, na processadora importada da Abafilm. A
primeira tomada, feita pelo "Cego", estava perfeita na angulação e na
luz do acaso movendo o dedo mais acostumado com o gatilho. Aqui e ali,
acontecera alguma subexposição do negativo, pelo amadorismo do
"iluminador" que nem sempre verificara, também, o perfeito encaixe da
fita na grifa. A imagem, em conseqüência, tremia um pouco, por momentos, até o
celulóide se ajustar, naturalmente, no chassi da Nizo. Normalizadas, tais cenas
até pareciam refletir, pitorescamente, o nervosismo do cineasta diante da
"fera do Nordeste" desembainhando seu longo punhal exibido para a
lente.
Adhemar Albuquerque ficou, mais do que nunca, entusiasmado com a co-produção
ousada. Forneceu uma boa quantidade de latas de filme ao seu sócio, e o
instruiu em mais alguns detalhes técnicos, antes de ver o homem temerário
partir, de novo, para o mistério das trilhas mal escondendo, agora, um
cangaceiro perseguido com fúria nova. Ao mesmo tempo, a façanha do árabe era
notícia em jornais como o Correio de Aracaju, não deixando de se insinuar certo
receio de o futuro filme vir a dar contornos de herói a um velho "inimigo
do povo". Em outubro, apareceram matérias redigidas, de Piranhas (AL), por
Abrahão a caminho de um novo encontro com Lampião e, agora, francamente malvisto
pela polícia. Como é que o gringo poderia saber das tocas e dos descansos do
Cego, de modo a filmar aquela gente posando como "artistas"?
Quando Abrahão mais uma vez sumiu de vista, todo mundo sabia que deveria estar
em algum lugar perdido da caatinga, na companhia do "cínico
facínora", dormindo nos bivaques, de dia, para se movimentar durante a
noite. E era assim mesmo. Só que, agora, tudo estava sendo impresso nos rolos
de filme de que restou só uma parte das cenas de Lampião escrevendo bilhetes,
costurando numa máquina (macho à prova das Singers), fingindo atirar e, logo,
dançando perfumado como uma "mulé-dama".
Seus cangaceiros apareciam cumprindo ordens de rotina: caçar, preparar comida
etc., e também junto com as poucas mulheres introduzidas nos grupos, tudo em
boa e espartana disciplina, na medida do possível. Um mundo de homens,
organizado para cabras dispensados de se retardar fazendo agrados em mulheres
talvez cansadas das longas caminhadas ("diagnóstico" que se ouvia,
com outras palavras, quando ainda estavam vivos muitos dos cabras e sertanejos
contemporâneos de Virgulino Ferreira da Silva).
Não havia saída para o cangaço, por volta do terço final da década de 30. O
cerco se fechava, sob o tacão da Nova República, e na dobra da falta de
lealdade de alguns coiteiros abrindo caminho para o massacre de Angicos. Por um
leito sinuoso de traições, armou-se a armadilha para Lampião e seus comandados,
na manhã do dia 28 de julho de 1938. A história é bem conhecida. Só alguns
poucos dos cabras escaparam, e os mortos de destaque (Virgulino Ferreira e
Maria Déa, entre eles) tiveram as cabeças decepadas e levadas, no mesmo dia,
para exposição improvisada na calçada da prefeitura de Piranhas.
Homem
implacável
Onde estava Benjamin Abrahão, que não apareceu para acrescentar um tão horrível
epílogo ao projeto do seu filme? O ex-mascate que se tornara o cineasta de uma
obra só, rodada em duas temporadas nas caatingas, já estava morto a essa
altura. Sua vida tomara rumos estranhos, após voltar a Fortaleza, depois das
últimas tomadas de 1936, noticiadas na primeira página da edição de O Povo de 9
de janeiro de 1937, com manchetes em negrito: "O Filme de Lampeão -
Regressou a Fortaleza o Ex-Secretário do Padre Cícero - Uma Entrevista a O POVO
sobre os seus Encontros com o famoso Cangaceiro. Como o Sr. Benjamin Abrahão
conseguiu apanhar o Grupo - A Mulher de Virgulino Ferreira - As Precauções do
Bandido".
Suas "atividades" haviam despertado o mais vivo interesse da polícia.
Três dias depois da publicação da matéria, o homem do filme foi ouvido, em
depoimento, pelo sargento Optato Gueiros, um dos mais ferozes perseguidores de
Lampião. Optato fora cabra do bando de Sinhô Pereira, onde conhecera o jovem
Virgulino (obsessão de 17 anos da vida do cabra depois transformado em macaco caçador
de bandoleiros). Esse homem implacável "apertou" Abrahão de muitas
maneiras, e a montagem do documentário foi feita, na Abafilm, debaixo de um
clima de medo da polícia desconfiada dos "filmadores de cangaceiros".
Abrahão ficou assustado. Viajou para Pernambuco. Deixou seu filme por ser
ordenado pelo menos num conjunto mais ou menos lógico das cenas que ele
pretendia comentar, ao vivo, nas apresentações um dia sonhadas, ao conceber o
documentário como uma espécie de esforço de "humanização" da figura anatematizada
como fera, celerado, facínora e monstro bandido inimigo do governo e do povo.
Em Águas Belas, no dia 10 de maio de 1938, o documentarista amador apareceu
morto, com 42 facadas, supostamente dadas por um ladrão em busca das pedras que
o antigo comerciante já não trazia nos bolsos. E quando, afinal, se pôde
exibir, no Ceará, uma primeira montagem do filme Lampeão, o seu autor já estava
sepultado com os segredos nos quais, eventualmente, poderia ter se enfronhado a
respeito do bando que a polícia iria aniquilar, dois meses depois. Essa sessão
- no Cine Moderno - não foi aberta ao público, mas especial para o então chefe
de polícia, capitão Cordeiro Neto, e outras autoridades presentes à projeção
privada de 2 de julho de 1938.
Alguns jornalistas - convidados da polícia - fizeram eco ao protesto dos homens
de farda, após se acenderem as luzes. Um deles perguntou, mais tarde, em tipos
impressos: "Haverá, porventura, maior vergonha para nós do que
assistirmos, país afora, a uma película, em série, do famoso assaltante de
lares, de bolsas e de vidas, que é Virgulino?". Apreendida pelas
instâncias de segurança federal - sob a alegação de "ser de molde a
comprometer a ordem pública" -, a obra de Abrahão Benjamin foi parar num
porão do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) de Lourival Fontes, o
Goebbels tupiniquim do Estado Novo. E lá ficaria por 20 anos, oxidando em meio
ao mofo e à poeira, até ser recuperada, por Alexandre Wulfes e Alcebíades Ghiu,
em 1957. Estava reduzida a cerca de 15 minutos de filme ainda aproveitável para
se fazer as cópias que, então, puderam se espalhar pelo mundo, talvez chegando,
quem sabe, muito próximo de algum Cinema Paradise das montanhas da terra natal
do cineasta das caatingas.
http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/cinema_e_cangaco_na_terra_do_sol.html
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