JOÃO CÂNDIDO, O ALMIRANTE NEGRO
Conheça o filho de escravos que liderou a Revolta da Chibata
no Rio de Janeiro
MARCO MOREL PUBLICADO EM 21/11/2019, ÀS 11H13
Se o Brasil
necessita de heróis, não é preciso ir muito longe para encontrar um deles. João
Cândido Felisberto (1880-1969) foi o principal líder da Revolta
da Chibata, ocorrida no Rio de Janeiro em 1910, que acabou com os
castigos corporais na Marinha de Guerra.
Filho de
escravos, nascido nove anos depois da lei do Ventre Livre (que não considerava
cativos os filhos de escravos nascidos a partir dali) numa fazenda em Encruzilhada
do Sul, interior gaúcho, entrou para a Marinha aos 14 anos, onde teve carreira
exemplar.
Durante 15
anos navegou pelas águas doces e salgadas de todo o Brasil, percorreu quatro
continentes, aprendeu técnicas e ofícios, foi instrutor de marujos iniciantes,
encharcou-se das paisagens exuberantes, das realidades sociais e suas
contradições, conheceu personagens e episódios políticos importantes – até ser
expulso da corporação, por causa da rebelião de que participou com destaque,
nas águas da Guanabara, defendendo a dignidade da condição humana.
João Cândido
não corresponde ao estereótipo construído sobre sua imagem de um homem sem
instrução. Ele foi, sim, instruído e instrutor. Frequentou a Escola de
Aprendizes de Marinheiros em Porto Alegre, em 1895.
Depois, já
engajado, esteve lotado na mesma Escola em Recife, durante quatro meses em
1903, como instrutor. Além disso, exerceu as funções de artilheiro, maquinista,
faroleiro, sinaleiro, gajeiro e timoneiro em diferentes navios. Dominava
saberes complexos.
Lotado na
Divisão de Instrução do navio-escola Benjamin Constant, participou de
atividades variadas, como artilharia, torpedo, evolução, tiro ao alvo, bloqueio
de portos, levantamento hidrográfico e reconhecimento de portos.
O marinheiro
gaúcho serviu como instrutor na Divisão Naval de Instrução do navio-escola
Primeiro de Março, quando ensinou exercícios militares para aspirantes da
Escola Naval, em agosto de 1908. O que não lhe faltou foi instrução.
Ao explicar as
origens da Revolta da Chibata, o próprio João Cândido, em depoimento no Museu
da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, fez uma síntese do aprendizado das
viagens e experiências daquela geração de marujos brasileiros: “A revolta
nasceu dos próprios marinheiros para combater os maus-tratos e a má alimentação
da Marinha e acabar definitivamente com a chibata. E o caso era esse. Nós que
vínhamos da Europa, em contato com outras marinhas, não podíamos admitir que na
Marinha brasileira ainda o homem tirasse a camisa para ser chibatado por outro
homem”.
O movimento
tomava corpo havia dois anos. Os marinheiros se rebelavam principalmente contra
os castigos físicos que a Marinha aplicava em seus homens. Seu estopim foi em
21 de novembro de 1910, com a sessão de chibatadas que o marinheiro Marcelino
Rodrigues de Menezes recebeu.
Cerca de 2.300
marinheiros, entre os dias 22 e 27 de novembro daquele ano, tomaram os mais
possantes navios de guerra e, apontando os canhões sobre o Rio de Janeiro
(capital do Brasil da época), ameaçavam bombardear a cidade. A revolta trouxe
para a cena pública setores oprimidos da população no papel de agentes
históricos transformadores.
A rebelião
revelou rostos, nomes, falas e gestos de homens até então anônimos, com
destaque para a figura do negro João Cândido. Foi uma revolta multiétnica, com
expressiva presença da população negra, e de caráter político.
Compuseram a
Revolta da Chibata os encouraçados Minas Gerais, São Paulo e o cruzador-ligeiro
Bahia (recém-construídos na Inglaterra) e o antigo encouraçado Deodoro. Dessas
embarcações ouviam-se gritos de “Viva a liberdade!” e “Abaixo a chibata!” A
tripulação do cruzador República abandonou-o e se distribuiu entre os navios
rebelados. Os marujos do cruzador-torpedeiro Timbira também se insurgiram e
expulsaram os oficiais, mas a embarcação não acompanhou os movimentos dos
demais navios em rebelião.
Os marujos
enviaram um manifesto e diversos telegramas ao governo com suas reivindicações.
Na declaração – manuscrita em bela caligrafia – apresentavam-se como “cidadãos
brasileiros e republicanos” e exigiam: “Desapareça a chibata”. Caso não fossem
atendidos, estavam dispostos a bombardear a capital do país e as embarcações
que os hostilizassem. Pediam, também, anistia. O governo do marechal Hermes da
Fonseca, empossado havia uma semana, e o Congresso Nacional, acuados, aceitaram
todas as condições.
O capitão da
Marinha e então deputado federal José Carlos de Carvalho, a pedido do senador
Pinheiro Machado (figura política dominante no Brasil, líder do recém-criado
Partido Republicano Conservador, capa da edição 150 de AVENTURAS NA HISTÓRIA),
serviu como intermediário e negociador.
O emissário do
governo, ao perguntar aos tripulantes do encouraçado São Paulo quem era o
responsável pela revolta, ouviu a resposta: “Todos”. Acertadas as condições de
parte a parte, o capitão Pereira Leite, à frente de outros oficiais, foi
enviado para assumir o comando dos navios, em 27 de novembro.
João Cândido e
os demais marujos receberam o oficial batendo continência. As bandeiras
vermelhas da insurreição foram retiradas dos mastros. A chibata estava
oficialmente abolida da Marinha de Guerra brasileira.
A explosão
revolucionária teve como saldo cinco oficiais mortos (quatro combatendo e um
suicídio), muitos marinheiros feridos (alguns defendendo os oficiais, outros do
lado da revolta) e, pelo menos, dois mortos.
Tiros de
advertência dados pelos rebelados mataram acidentalmente duas crianças no Morro
do Castelo, destruíram casas comerciais e atingiram as dependências do Mosteiro
de São Bento. Os oficiais mortos foram o capitão-tenente José Cláudio da Silva
Junior, o capitão de mar e guerra João Batista das Neves, e os
primeiros-tenentes Mario Lahmayer, Mario Alves de Souza e Américo Sales de
Carvalho. Este, acuado pelos revoltosos, se matou.
Ao desembarcar
do encouraçado Minas Gerais, no Arsenal da Marinha, João Cândido foi cercado
por dezenas de fuzileiros armados e imediatamente preso. Detido no Quartel
Central do Exército, incomunicável, passou por interrogatórios duros e
afrontosos, até então sem tortura física.
No dia 24 de
dezembro, foi conduzido à Ilha das Cobras, no litoral fluminense. Sob pretexto
de que todas as cadeias da cidade estavam lotadas, foi levado a uma cela
solitária, encravada na rocha úmida, lúgubre e apertada. Apesar da denominação
do local – solitária –, foram depois ali depositados mais 17 marujos. Na
“solitária” ao lado ficaram outros 13 marinheiros. Ao todo, 31 detidos, nus,
num espaço feito para duas pessoas. Eram os considerados “elementos perigosos”,
no linguajar dos oficiais.
O comandante
do Batalhão Naval, capitão de fragata Francisco José Marques da Rocha, levou as
chaves das celas com ele ao se retirar da guarnição à noite. Na madrugada de
25, ouviram-se gritos de desespero dos encarcerados, debaixo de um “calor
sufocante”. Durante o dia, o carcereiro jogou cal sobre os detentos, para
“higienizar” o local.
No dia 26,
oficiais abriram a porta da cela e perguntaram se João Cândido vivia. O marujo
gaúcho, com o rosto colado numa fresta da porta, ainda respirava, e cadáveres
se amontoavam ao seu lado, inchados, envoltos em fezes e urina. Somente no dia
27, quando a notícia da violência começou a vazar, o capitão Marques da Rocha
mandou retirar os detidos, que estavam desde o dia 24 sem qualquer alimento ou
água.
Na cela de
João Cândido, ele e o também gaúcho João Avelino Lira, 26 anos, apelidado de
Pau da Lira, saíram inanimados, porém vivos. Nos sobreviventes das duas celas
jogou-se ácido fênico, como forma de desinfecção. A pele de alguns se soltava
do corpo. Ficaram ainda mais uma noite jogados no chão, nus e “ao dispor das
moscas”, como lembrou João Cândido, acrescentando: “Era assim que se morria. Eu
vi”.
Anistiados, os
marinheiros devolveram os navios e largaram as armas em 27 de novembro de 1910.
No dia seguinte, o marechal Hermes da Fonseca driblaria a anistia e assinaria o
decreto 8 400, que permitia a exclusão da Armada de todos os marujos cuja
presença fosse julgada inconveniente por seus superiores.
Discretamente,
começava a se armar a teia que desaguaria numa repressão em massa, intensa e
arbitrária. O saldo da repressão resultaria em 1 216 expulsões da
Marinha, número equivalente a quase metade dos participantes da Revolta da
Chibata; centenas de prisões, inclusive dos líderes do movimento; degredo e
trabalho escravo para centenas dos rebelados. E ainda um número não
contabilizado de assassinatos, poucos dos quais se conhecem os nomes e como
foram mortos.
O marinheiro
de primeira classe João Cândido, da 16ª Companhia da Marinha nacional, foi o
principal líder da Revolta da Chibata, seja pela atividade que exerceu durante
a rebelião, seja pelo reconhecimento dos companheiros de Armada que o aclamaram
líder. Também oficiais, governo, parlamentares, imprensa e a população em geral
assim o consideravam, ainda na época do episódio.
Em cinco dias
o marujo gaúcho transformou-se de ilustre desconhecido na maior celebridade do
Brasil daquele momento, atraindo sobre ele entusiasmo e admiração, mas também
ódios implacáveis, vinganças e difamações que o acompanhariam por toda a vida.
Atesta isso a quantidade de fotos, charges e artigos publicados em destaque nos
principais jornais, os discursos na Câmara Federal e no Senado, diálogos
registrados nas ruas, casas e cafés. “Depois da revolta da esquadra, João
Cândido tornou-se a conversa de todas as rodas”, registrava o jornal Correio da
Manhã.
O papel de
João Cândido como “dono do Brasil” durante aqueles dias foi proclamado, entre
outros, pelo escritor e jornalista Gilberto Amado com um artigo em O País, na
edição de 27 de novembro, quando ainda os marujos não tinham devolvido os
navios, chamando-o de almirante, árbitro da nação, marinheiro formidável, herói
e homem que “violentou a História”, concebendo que os navios por ele comandados
faziam “parnasianismos de manobras”.
Surgia assim,
no calor dos acontecimentos, o apelido mais recorrente do marujo, que na Gazeta
de Notícias, em 1912, era tratado de Almirante Negro pelo escritor João do Rio.
Da mesma forma, o jovem Oswald de Andrade registrou o episódio como “a primeira
revolução política que o Brasil teve nesse século – a do marinheiro João
Cândido”, a quem o futuro modernista em seu livro de memórias, Um Homem sem
Profissão, o chama de Almirante Negro. Ele era o primeiro almirante negro da
Marinha brasileira.
Depois de
deixar a Marinha, João Cândido viveu por quatro décadas como pescador
artesanal, na mesma condição de milhões de trabalhadores pobres: lutando com
dificuldade e criatividade para ganhar o sustento, sentindo na carne a
“chibata” da negação dos direitos humanos básicos.
Embora ele e
seus companheiros de revolta tenham sido anistiados em 1910, o governo
desrespeitou a anistia concedida. Quase um século depois, em 2008, receberam
perdão póstumo, no qual o governo federal reconhecia os valores de dignidade e
justiça por que os rebeldes lutaram. Ainda assim, essa nova anistia é parcial,
ficando de fora as promoções e indenizações a que os descendentes teriam
direito
João Cândido
Felisberto faleceu em 8 de novembro de 1969, no hospital público Getúlio
Vargas, no Rio de Janeiro. Viveu seus últimos anos num casebre na Baixada
Fluminense, numa rua sem saneamento básico nem luz elétrica. Seu enterro, em
plena ditadura militar, ocorreu sob forte temporal e cercado de policiais à
paisana.
+ Marco Morel
é historiador e professor do Departamento de História da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ). Organizou o livro que foi base desta reportagem, A
Revolta da Chibata, escrito pelo seu avô, Edmar Morel, que por causa da obra
teve os direitos políticos cassados e sofreu perseguições.
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