Essa poderia
ser a história de um brasileiro, nascido em Serra Talhada, em 4 de junho de
1898 e que, apesar da seca, da miséria, da fome, uma constante entre as
populações do sertão do Nordeste Brasileiro, seguiu em frente e venceu as
adversidades, cursou uma universidade e formou-se. Escreveu para jornais e
revistas da época. Foi reconhecido internacionalmente por seus poemas. Embora
reconheçamos e congratulemos quem faz esse percurso, nosso personagem não foi
desses.
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Justiça para Lampião - Revista O Cruzeiro (RJ)
Poderia, por
outro lado, começar caracterizando o Cangaço como o fez a polícia de Getúlio
Vargas, e seu Estado autoritário, como bandidos e vândalos, e-ponto-final.
Entretanto, gostaria de convidar a todos a uma outra reflexão sobre esse
fenômeno, para além da classificação entre herói e criminoso ou bem versus mal,
pois as questões que envolvem movimentos contestatórios são bem mais complexas
do que a simplificação descritiva do mocinho contra o bandido.
Ao analisarmos
historicamente a situação do Nordeste brasileiro percebemos que, desde tempos
imemoriais e, mais acentuadamente após a seca de 1877, a região é marcada pela
ausência/insuficiência, de políticas econômicas e sociais do Estado para conter
o crescimento da pobreza. A abolição da escravidão sem um pacto social, que
desse aos ex-escravos condições dignas de trabalho, educação, moradia,
aprofunda ainda mais o caráter miserável de grande parte do povo brasileiro.
Durante o século XX, a crescente falta de investimentos, a concentração de
terras nas mãos de latifundiários, a ausência de seriedade na
administração pública (O Ceará, http://memoria.bn.br/DocReader/765198/285),
as dificuldades da manutenção da pequena propriedade pelas famílias agrícolas,
as intempéries climáticas características de regiões semiáridas, empurram
as populações nordestinas a difíceis situações: a morte pela fome, a sujeição
ao trabalho pessimamente remunerado, beirando a escravidão, a migração
para os centros urbanos, especialmente para as regiões Sul e Sudeste do país,
em busca de uma vida melhor, deixando para trás a suas raízes e sua família.
Em outra mão,
as vias de não sujeição, como a criminalidade, a corrupção, a revolta social,
aparecem como uma resposta agressiva às lacunas deixadas pelo Estado.
Aprofundam sua situação, já marginalizada pela ausência de investimentos
sociais, públicos ou privados, financiados por saques, rapinas e, também, por
colaboradores inseridos nos poderes públicos, e adotam a violência como forma
de solucionarem as suas carências materiais mais imediatas. Uma dessas vias de
insubordinação foi o fenômeno do Cangaço, atuante desde o século XIX,
no sertão nordestino.
Pelos anos de
1830, já encontramos referências aos bandos armados
que atemorizavam cidades no sertão nordestino. O termo “cangaceiro”,
é uma referência a uma armação de madeira, a “canga”,
que eles usavam nos animais, para transportarem utensílios. Há
dois tipos de cangaceiros: os bandos de assaltantes e os bandos de mercenários,
mais comumente denominados de jagunços, evocando uma tradição de
sertanejos e desbravadores (Revista da Semana,http://memoria.bn.br/DocReader/025909_03/9435),
para serem diferenciados dos primeiros, entendidos como “bandidos”. Contudo,
sua prática é muito semelhante: utilizam-se da violência para tomar o que for
necessário à sua satisfação material e/ ou proteção.
Um
dos primeiros nomes conhecidos de
cangaceiros foi Jesuíno Alves de Melo Calado, o “Brilhante”. Sua
figura, ora romantizada, ora folclorizada, ora criminalizada, apareceu em 1870
e serviu de inspiração para os grupos posteriores, em atuação no século
XX. Posteriormente, durante os anos de 1920, procurando fugir da fome,
driblar a sujeição clientelista aos coronéis e, ao mesmo tempo, conquistar
respeito e temor por onde passava, outro personagem se firmaria como
lenda no Cangaço Brasileiro. Virgulino Ferreira: o Lampião, também conhecido
como “O Rei do Cangaço” ou “O Governador do Sertão”.
Sua figura é
mais do que polêmica. Ocupando uma zona cinzenta dentro daquela dualidade
bem/mal, que costumeiramente nos habituamos a operar, ao mesmo tempo em que
auxiliava e apadrinhava os menos favorecidos, causava terror aos poderosos das
regiões pelas quais passava. Nas contendas, enfrentava tropas federais, que a
cada ano fechavam mais o cerco contra os grupos rebeldes, e combatia
os bandos de jagunços, os mercenários contratados pelos fazendeiros para
garantirem a dominação em sua região, “libertando” sertanejos subjugados.
Apareciam, vez
por outra, cantados em poesia de cordel, cada um dos Bandos de Cangaceiros.
Sim, havia vários: do Lampião, do Corisco, do Zé Sereno, do Antônio de
Engracia… Alguns desses eram tributários ao próprio Lampião. Também
os encontramos citados em obras da Literatura brasileira, como romances de José
Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Ariano Suassuna – desse, a obra
prima O Auto da Compadecida traz um dos mais belos cenários de redenção quando,
após as rogativas de Nossa Senhora, o cangaceiro Severino é perdoado de seus
pecados.
Mas voltemos
ao Virgulino Ferreira. Segundo contam os estudiosos de sua biografia, até 1919,
levava uma vida comum em Vila Bela, atual Serra Talhada – PE, onde nasceu.
Embora seja contestada, a data de nascimento mais comum é a de 4 de junho de
1898. Trabalhava como artesão e, no trato pessoal, era conhecido como uma
pessoa simples e amável, preocupado com a sua família. Mas tudo mudou
quando, naquele ano, por causa de disputas de terra, teve sua família
assassinada por policiais (O Cruzeiro, http://memoria.bn.br/DocReader/003581/124705). Da
combinação de fatores como a miséria, a falta de segurança para a família, a
falta de amparo social, o autoritarismo policial, saía de cena o Virgulino
Ferreira da Silva. Assumia o Lampião.
Resolvendo
fazer justiça com as próprias mãos, jurou vingança e, em 1922,
Lampião já executava seus assaltos. Em sua sede de reparação,
escolheu a via da insubordinação, da marginalidade ou, como assinalam alguns,
do “banditismo social”. Fez sua escolha, dentre aquelas difíceis que citamos
anteriormente, e tornou-se líder do bando comandado por outro cangaceiro –
Sinhô Pereira. Alfabetizado, e muito hábil com o manejo de armas,
logo tornou-se o alfa de outros grupos de cangaceiros. Vingou a morte
de seu pai, assassinando o informante que o havia denunciado à polícia. Mas não
parou por aí. Lampião e seu bando atacaram fazendas e cidades em sete
estados além de praticar roubo de gado, saques, sequestros, assassinatos,
torturas, mutilações e estupros.
A complexidade
da vida de Lampião vai além das suas práticas
sanguinárias, daí a necessidade de não simplificarmos suas ações
exclusivamente como ruins. Apesar da ferocidade de sua atuação na
marginalidade, era devoto de Padre Cícero e respeitava as suas
crenças e conselhos. Entretanto, os dois se encontraram uma única vez, no ano
de 1926, em Juazeiro do Norte. Respeitava não só Padre Cícero, mas os
religiosos e as mulheres idosas, bem como castigava aqueles que, dentre os
seus, maltratassem um idoso (O Paiz, http://memoria.bn.br/DocReader/178691_06/4847).
Em sua
trajetória errante, constituiu família. Sua companheira, Maria Gomes de
Oliveira, mais conhecida como Maria Bonita, conforme apelidada
pela imprensa, juntou-se ao bando em 1930, sendo a primeira das mulheres a
integrá-lo. Virgulino e Maria tiveram uma filha, Expedita Ferreira Nunes,
nascida em 13 de setembro de 1932, e que não ficou com o
bando, pois os pais a queriam protegida da vida marginal. O casal teria tido
ainda dois natimortos.
A repressão do
Estado Novo (1937-1945), de Vargas, logo se faria sentir. Gradualmente o bando
seria cada vez mais cercado e acuado. Até que, em uma emboscada, Lampião – que
teria esse apelido devido a velocidade dos disparos de sua arma, iluminando as
noites (O Malho, http://memoria.bn.br/DocReader/116300/95404) – e seu
bando, seriam mortos em Sergipe, em 1938.
Como forma de
“castigo exemplar”, os restos mortais dos cangaceiros, em especial suas
cabeças, foram expostos em um gesto de legitimação da supremacia do Estado,
sobre a vida e a morte daqueles que se rebelam contra o poder dos grupos
dominantes. Outros cangaceiros do período se entregaram, em troca de
anistia. Mas os bandos armados não foram totalmente extintos na História
brasileira. Em 1964, por exemplo, há notícias da atuação do bando do “Chapéu de
Couro” (Cruzeiro, http://memoria.bn.br/DocReader/003581/152182).
Virgulino
Ferreira da Silva foi um brasileiro que levou ao extremo sua sede de
justiçamento e vingança, sua busca de compensação pelas perdas sofridas. Herói
para uns, criminoso para outros,o fato é que, utilizando seu exemplo como
estudo de caso para exercitar a crítica, e inserindo em nossas análises a
influência do componente social sobre a trajetória de vida de cada um,
observamos, por exemplo, a fragilidade social provocada por um
Estado que, ao deixar lacunas em suas políticas públicas e sociais
e apartar-se das necessidades mais básicas do seu
povo, cria condições para o surgimento de movimentos contestatórios. E
para resolver a crise, lança mão do autoritarismo e de execuções sumárias, como
o citado "castigo exemplar” - algo bastante recorrente na formação do
Estado Brasileiro desde os seus primórdios, e que podemos encontrar em outros
eventos em nossa História, como a morte de Tiradentes (1789), o extermínio
de populares no Arraial de Canudos (1896-97), o arrasamento da região do
Contestado (1912-1916). Essas análises, dentre outras possíveis, são
necessárias para que, olhando os equívocos do passado, possamos reverter
situações similares, oferecendo subsídios para que políticas públicas
adequadas, com amparo social e respeito a democracia, sejam adotadas.
(Raquel
Ferreira)
https://www.bn.gov.br/acontece/noticias/2020/06/virgulino-ferreira-rei-cangaco
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