Por Rangel Alves
da Costa*
No Nordeste
brasileiro, pode-se afirmar que os currais antecederam aos vaqueiros. Quer
dizer, antes mesmo que se falasse em sertanejo montando em cavalo guiando boi e
boiada pelas estradas empoeiradas, os currais já estavam instalados nas
beiradas dos rios, principalmente o Velho Chico. E assim por que o
desbravamento e povoação da região nordestina até então inóspita, se deu
através do caminho das águas, pelos leitos dos rios que levaram o litorâneo às
margens e depois às entranhas da mata.
O litorâneo
trazia consigo toda uma vida juntada e então ameaçada pelas rebeliões e
incertezas coloniais. E nessa junção de vida, os sonhos de se estabelecer
noutras paragens e de nas novas terras espalhar seus rebanhos, ainda que
pequenos. Por isso que embarcavam com seus criatórios e iam remansando nas
águas em busca das margens mais propícias ao desembarque. Como as ribeiras
geralmente eram ladeadas por serras, enchiam-se de contentamento ao avistar
paisagens mais planas e que servissem para levantar currais e alimentar os
animais pelos arredores.
Ao adentrar na
mata em busca de terras para fixar moradia, o colonizador sertanejo abandonou
seus antigos currais e deixou para trás as pedras fundamentais das povoações
que foram surgindo nas beiradas dos rios. Depois de vencer a mata e suas
hostilidades naturais e de se estabelecer em descampados ou em regiões mais
altas, novos currais foram construídos e espalhados por toda a vastidão
sertaneja. Nas proximidades ou ao lado das rústicas moradias, erguidos como
simples cercados de proteção, abrigavam alguns cavalos e bois após a
chiqueiragem do entardecer. Em meio a cantos dolentes de aboiador, os bichos
iam sendo reunidos e levados à porteira. E depois os berros e mugidos até a
descida da lua grande.
Na nova
paisagem, com os animais criados soltos e se espalhando pelas distâncias, a sua
vigilância e recolhimento só eram possíveis com o dono montado no lombo de
cavalo. Cavalos brabos ou já amansados pelo arreio e chicote, venciam os
espinhos e as traições da mataria no encalço da novilha mais desgarrada. Então
aqueles senhores, tantas vezes protegidos por gibão, perneira e chapéu de
couro, apertavam os estribos no alazão e se lançavam afoitos no rastro das
crias apartadas do rebanho. Retornavam lanhados de pontas de pau, mas sempre
tendo adiante o bicho mais arredio.
Assim que os
sertões foram sendo cada vez mais povoados e as fazendas de gado se espalhando
pelas suas distâncias, os proprietários dos grandes rebanhos foram buscar na
experiência do homem da terra o cuidado exigido por suas crias. Então aqueles
sertanejos de curral com poucas reses ou de pedaço de chão de pouco cultivo,
passaram a exercer os ofícios da vaqueirama, do cuidando com a gadama alheia,
do alimentar o bicho com palma e capim, de tirar leite, de fazer apartação, de
manter a boiada sem perigo e correr atrás daquele bicho mais afoito que se
embrenhava pelas matas.
Mas vaqueiros
de afazeres diferenciados segundo o patrão, a fazenda e o rebanho. Vaqueiros de
moradia fixa na fazenda do grande criador, ali residente com a família e
tomando conta de tudo ao redor, desde o bicho à cerca de tronco ou arame
farpado. Eram verdadeiros administradores das propriedades, cuidando não só dos
rebanhos como das pastagens e dos serviços e melhorias. Confiados pelos
patrões, destes recebiam permissões para de tudo cuidar como se fosse seu. Daí
o progresso de tantas propriedades, do crescimento saudável dos rebanhos, da
terra frutificando a cada passo.
Outros
vaqueiros trabalhavam por empreitada, por serviço a ser realizado, mas também
de forma assalariada, sem moradia nos arredores do curral. Aqueles
transportavam boiadas, levavam rebanhos de canto a outro, faziam o recolhimento
do gado solto nos latifúndios, corriam pelas caatingas e matarias em busca de
bicho brabo. Geralmente não trabalhava sozinho, mas em dupla ou mesmo em grupo,
dependendo do tamanho dos rebanhos e das brabezas dos animais. Já estes, de
comparecimento diário, possuíam como ofício a apartação do gado, a chiqueiragem
até o curral, o ordenhamento das vacas leiteiras, a vacinação do gado, além da
esticagem até as lonjuras quando alguma rês não aparecia na contagem.
Pelos sertões
se acostumou dizer que vaqueiro bom logo se reconhece pela cara lanhada ou pelo
corpo marcado da luta. Com efeito, em muitas ocasiões, geralmente nas famosas
pega-de-bois, o vaqueiro retorna trazendo não só o boi valente e arredio como o
rosto marcado pelos espinhos, galhagens e cipós traiçoeiros. Mesmo que esteja
todo paramentado ao subir no cavalo, com seu inseparável gibão, perneira,
guarda-peito, chapéu de couro e roló, o vaqueiro nunca consegue vencer as
armadilhas pontiagudas das caatingas.
Segundo a
indumentária usada, também a diferença do vaqueiro do mato daquele de moradia
na propriedade. Mas nos dois a intencionalidade maior de levar a rês ao curral.
Neste, com aquele cheiro típico de estrume e com o som do berro e do chocalho,
o destino de retorno da vida vaqueira. Uma vida tanto perigosa como não
devidamente reconhecida. Mas foi através destes homens encourados que os
sertões seguiram como boiada na estrada. E na voz o aboio dolente: “Boi na lua
se escondeu, mas São Jorge no cavalo com o bicho logo desceu. Ê gado ê, ô...”.
Poeta e
cronista
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