Por: Rangel Alves
da Costa(*)
AS SOMBRAS DO CASARÃO
O velho
casarão ainda está de pé, majestoso, imponente, com paredes brancas amareladas
pelo tempo, defronte às águas do Velho Chico. Tal qual antigo farol sinalizando
a distância das águas, ele permanece flamejando o passado em meio a uma
realidade tão diferente.
O casarão fica
situado numa povoação ribeirinha, chamada Bonsucesso, no município de Nossa
Senhora da Conceição de Poço Redondo, sertão sergipano, onde felizmente nasci.
Povoação pobre, com gente humilde vivendo do que o rio possa oferecer ou em
subempregos num faz de tudo, nem parece se dar conta da maravilha arquitetônica
ali presente.
Não sei ao
certo a época de sua construção, minha costumeira curiosidade esqueceu de ir
atrás desse calendário. Mas garanto que remonta aos tempos da escravidão. A
prova está por todo lugar, ainda que praticamente ninguém saiba mais dizer a
mando de quem foi construída nem a mão de obra responsável por aquela
verdadeira fortaleza sertaneja.
Mas direi sim,
sobre a mão escrava naquela construção. As evidências são muitas, bastando que
se considere como ela foi erguida e qual o material utilizado para tal. O
imenso casarão possui um interior com amplos espaços, muitas dependências,
porém sem luminosidade adequada. E deveria ser diferente, pois fica numa
elevação aberta e bem defronte ao São Francisco.
Mas tudo pode
ser explicado pelo esmero na obra. A sua arquitetura colonial, apenas com parte
térrea, comporta paredes que chegam a mais de um metro de espessura, e em todas
as dependências. Tudo parece tão fortalecido, fechado, recluso, que sua
ambientação, ainda que com amplos espaços, perde a luminosidade e se afeiçoa ao
interior de um velho mosteiro. Aquele aspecto fechado, misterioso, indagador.
E algo
interessantíssimo: tudo na pedra, na pedra negra lavada, lisa, sempre lembrando
ferro. As paredes foram erguidas na junção de pedra sobre pedra e depois
recebendo acabamento exterior para parecer divisória comum. E certamente não
foram trabalhadores ribeirinhos que cavaram aqueles profundos alicerces,
trabalharam as pedras e deram aquela feição de fortaleza que ainda hoje pode
ser avistada.
Contudo, a
prova maior de que foram escravos os construtores está mais na parte exterior
do casarão do que mesmo nas suas gordas paredes. Eis que nos fundos da construção
havia uma espécie de muro cercando uma considerável área de terra, bem maior
que um quintal comum. E este muro todo feito de pedra, e pedras soltas, apenas
umas sobre as outras, numa engenharia de desafiar a imaginação.
Com relação ao
muro de pedras, todo morador da povoação informa que foi obra de mãos escravas,
dos negros que ali trabalhavam sob o chicote e o mando do velho senhor.
Certamente um poderoso que enriqueceu engordando gado e depois transportando
pelas águas do rio. Mas também com o cultivo de arroz nas baixadas molhadas
formadas pelas enchentes do Velho Chico. E tudo através do escravo.
Há alguns
anos, na última vez que estive por lá, ainda avistei partes desse muro. Em
alguns lugares as pedras se mantinham sobrepostas, firmes; mas derrubadas em
outras ou simplesmente desaparecidas. As pessoas simplesmente chegavam ali e
começavam a retirá-las ao acaso ou para utilizar em outras construções. E assim
tão importante registro histórico foi desaparecendo.
Certamente não
encontrarei mais nenhuma pedra ao voltar por lá. E logo voltarei pelo
encantamento que possui aquele lugar, aquela paisagem, aquele casarão. Depois
de muitos donos, soube que o mais recente proprietário cuidou de preservá-lo
sem alterar em nada suas estruturas. Contudo, o que mais preciso fazer por lá é
ouvir a voz daquelas paredes, sentir as mãos negras erguendo as pedras,
infelizmente reencontrar com os tristes labores de um dia. Mas terá que ser
assim, vez que dizem que o casarão permanece em eterna construção e ainda se
ouve o barulho de pedra sendo colocada sobre pedra.
Mas contam
também outra história. Dizem que um jovem padre, passando de visita na região,
foi convidado pelo dono do casarão para um almoço e repouso defronte o leito do
rio. Ao chegar por lá, já na hora da comida ser servida, o religioso se negou
veementemente a colocar seus pés porta adentro. Não quis dizer os motivos, mas
a imaginação popular depois concluiu que ele avistou os negros lanhados
cimentando as pedras das paredes com o próprio sangue.
Diante da
porta, esbugalhou os olhos, fez voltar um grito, e recuou. E repentinamente
enlouqueceu. Desceu num pulo a calçada com mais de dois metros de altura,
alcançou a margem do rio e adentrou nas águas. E desapareceu para sempre. Nas
noites de lua triste ele é avistado rezando missa na pedra grande. E diante dele
os negros ajoelhados.
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com