Amanhecia. Um
belo dia de céu azul sem nenhuma nuvem. Daqui a pouco o sol estará totalmente
fora da serra. A noite fora fria, mas o dia prometia muito calor na pequenina
Coité da Serra, perdida no Sertão seco e árido de Pernambuco.
Hora para os
cangaceiros, à frente Virgulino Ferreira, tomarem de surpresa a cidade. Nenhum
aviso nem de um lado de do outro. Naquele momento Coité dormia depois de uma
noite de absoluta tranquilidade.
Mas em cada
esquina, a cabeça, depois o corpo todo suado e carregado de coisas, os cangaceiros.
Eles iam surgindo de três em três caminhando com cautela e de arma na mão.
Os moradores
dormiam a sono solto. Ninguém para testemunhar a invasão dos cabras de
alparcatas comandados por Lampião. Pisavam de mansinho, olhos arregalados e
ouvidos atentos. Pelo jeito de seus rostos vinham de longe. Cada passo era
medido e todos em silêncio. Falar só o gestual. Em cada mão o rifle e o dedo no
gatilho pronto para qualquer emergência. Na outra rua, o grupo que caminhava
com Lampião permanecia atento cobrindo o chefe como se fosse uma criança. Mesmo
assim Lampião, que vinha mais atrás, não largava o parabelum engatilhado.
No pátio
coberto de relva já amarelecida pastavam alguns animais domésticos. Bois magros
e bodes espertos.
De repente, um
cachorro vira-lata atravessa aos pinotes no meio da rua, latindo. Talvez
assustado com a presença dos homens estranhos e silenciosos.
Os cabras
quando viram o cachorro cada vez mais afoito puseram o dedo no gatilho pronto
para abrir fogo. O animal ficou só rosnando e se defendeu correndo ladeira
abaixo. Bastou um dos homens de Lampião bater o pé. Passado o susto continuaram
a marcha lenta e cautelosa. No fim da primeira rua descobriram o bar. A porta
estava ainda fechada. No alto uma placa desbotada indicava: "bar Ponto
Alegre". Na frente, o salão com as mesas e lá atrás as de bilhar. Os
homens se encontravam ali com as mulheres. Era o baixo meretrício da cidade,
depois ficaram sabendo.
Lampião deu o
sinal verde e todos de uma só vez estavam na rua principal, em cima do
"Ponto Alegre". Na outra rua, a barbearia do seu Nozinho. Adiante, a
farmácia de Odilon, também proprietário da "Funerária Adeus Amigos".
A esta altura
os bandidos se juntaram no pátio aguardando a abertura do bar. A sede e a fome
amoleciam aqueles corpos fortes e rudes carregando armas e apetrechos comuns a
eles. Mas de cinqüenta quilos no lombo. Alguns exaustos se sentaram no chão.
Outros ficaram de pé seguindo o chefe.
No céu azul
algumas aves à procura dos alimentos. O sol estava alto. As primeiras janelas
foram abertas timidamente. As pessoas quase apareciam ao mesmo tempo, mas
recuavam ao ver o movimento inusitado de cangaceiros na rua. Há anos passaram
por Coité da Serra alguns cabras de Lampião. Mas de passagem apenas.
No ar, os sons
dos sinos da Matriz chamando os fiéis às orações. Porém poucos se atreviam
diante do pessoal armado.
O bar,
finalmente, abriu. Os cangaceiros se movimentaram rápidos. Quem estava sentado
pulou de pé. Sempre com o fuzil na mão. Todos se dirigiram ao "Ponto
Alegre". Água e comida, a primeira ação dos forasteiros. O bar rapidamente
se encheu de homens mal cheirosos e famintos.
Seu Cardoso,
dono do estabelecimento, recebeu os cangaceiros com muita gentileza. Chamou
Tiãozinho e ordenou alimento e água para o pessoal de Lampião. Pão, queijo de
coalho, ovos, salame, conhaque e muita água da jarra, recomendou. A algazarra
era grande. Coité da Serra jamais ouviu tanta gritaria. A Cidade agora
pertencia aos cabras de Lampião. "E tiro só se houver precisão!" -
Avisou o Capitão.
Comeram e beberam fartamente. Uns pegaram cigarro e inundaram o salão de fumaça
e cheiro de álcool. A cachaça foi servida em abundância.
A delegacia de
polícia não abriu as portas. Os dois únicos soldados que passaram a noite de
plantão foram embora - informaram. O Capitão não gostou dessa história e mandou
que cinco de seus cabras fossem buscar os soldados fujões. Custasse o que
custasse. E justificou a ordem: "macaco sorto não pode ficar. É
armadia!" E saíram os cangaceiros atrás dos soldados. Outros ficaram ainda
no bar comendo e bebendo à vontade.
Lá fora, os
comentários no pé do ouvido não eram poucos. Quase ninguém na rua. Os moradores
cedo devem ter saído pelos fundos de suas casas com medo de violência.
Só depois do
meio dia chegaram os cabras com os dois soldados amarrados, na presença do
Capitão. Depois de ouví-los, ordenou: "Bota esses dois frouxos no xadrez,
sem roupa, e traga a chave pra gente!" E falou mais uma vez: "Macaco
sorto é causo de baruio. E como tamo aqui sem fazê baruio deixa os home no
xilindró."
Os cangaceiros
saíram com os presos. Lampião e seu bando deixaram o bar prometendo retornar à
noitinha pra conhecer as mulheres e os homens valentes do lugar.
Anoitecia
quando Lampião e seus homens retornaram para o "Ponto Alegre". Antes,
Virgulino passou pelo velho cinema que só funcionava duas vezes por semana, e
era a alegria de boa parte da população. Quando chegou ao Cine Rex despertou a
curiosidade o filme anunciado. Um faroeste com John Wayne. Não resistiu e
avisou para seu lugar-tenente: "De noite vô vê esse caubói!".
E saiu com
seus cabras em direção ao bar. Sentaram-se, pediram conhaque e ficaram ali
conversando enquanto planejavam a viagem de madrugada que iam fazer aos sertões
de Alagoas.
Bem em frente ao Cine Rex Lampião parou. Muitas pessoas, inclusive meninos
entravam tranquilamente sem pensar nos cangaceiros que invadiram a cidade.
Lampião entrou com alguns dos seus cabras. O filme começou com John Wayne
brigando, dando tiros, quebrando tudo para prender os bandidos. O público
vibra. Chegam a bater palmas. Lampião e os cangaceiros não desviam a atenção da
tela.
De repente, a
cena se transforma. É Lampião e John Wayne se enfrentando num duelo de vida e
morte. Lampião de punhal na mão não teme a pistola. Um avança contra o outro.
Tiros. Cavalo correndo. Tumulto. Lampião derruba o caubói. A poeira sobe. Os
cavalos relincham. Um inferno dantesco.
Nesse exato
momento, um cangaceiro que estava sentado ao lado de Lampião percebendo que o
chefe dormia, bate no seu ombro e fala: "Capitão, capitão, acorda. O filme
acabou. Tá na hora de agente preparar a viaje".
O chefe acorda
assustado, já com a mão no parabelum, ainda sob o efeito do sonho que tivera
com John Wayne, o mais famoso mocinho do cinema, matador de índios e bandidos,
mas não de cangaceiros. O pessoal que estava no cinema saía comentando as
façanhas de John Wayne com os fora-da-lei de Tombstone. Perdera o bonito cavalo
branco, mas ganhara o amor de Mary, a garota mais bonita filha caçula do xerife
Tom Bolling.
Antes do
amanhecer Lampião deixa Cuité da Serra, com seus companheiros para nova
caminhada em direção do sertão alagoano, mas ainda pensando no sonho que tivera
no cinema.
Coité da Serra
ficou para trás. Calma e sonolenta à espera de outro dia sem cangaceiros.
NOTA I: Texto
de Fernando Spencer, cineasta, crítico de cinema e escritor pernambucano. A
charge é de Gilvan Lira. Publicados no Jornal Cultural "O Galo", da
Fundação José Augusto, Natal/RN., em fevereiro de 1997)
NOTA II:
republicado no blog de Chico Potengy, no dia 08 de Janeiro de 2016.
Fonte: facebook
Grupo: Historiografia do Cangaço
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