Por Antônio Corrêa Sobrinho
Amigos
verifiquei agora que a matéria de "O Globo" sobre o banditismo
nordestino, publicada em 1927, e que eu prometi compartilhar com vocês, por
equívoco meu, deixou de exibir o texto por mim digitalizado. O que faço agora,
com minhas desculpas.
“O GLOBO” –
13/09/1927
A PSICOLOGIA
DO CANGACEIRO
O BANDITISMO
NOS SERTÕES DO NORDESTE BRASILEIRO
UM ENSAIO
POLÍTICO-SOCIAL
(Especial para o GLOBO)
CAPÍTULO II
A vingança,
como disse o Dr. Raul Azedo, em um dos seus artigos – “não constitui para o
índio americano, como para o homem civilizado, um defeito moral, uma paixão
condenável; representa o “dever” por excelência da solidariedade tribal”.
Essa mesma concepção passou para os nossos sertanejos, e ainda hoje perdura,
por dois motivos: 1º) porque os sertões se acham tão afastados da civilização
do litoral quanto dezenas de vezes a distância que os separa das capitais dos
respectivos Estados, sendo, talvez, de 90% a proporção de analfabetos; 2º) pelo
fato, que deixamos assinalado no artigo anterior, da parcialidade na aplicação
da justiça por parte das autoridades enviadas pelos governos para aquelas
paragens as quais (“exceptis excipiendis”), nomeadas de acordo com os chefes
políticos locais, se sujeitam às ordens destes para oprimir os partidários
adversos e a gente humilde que os acompanha.
Não há nada que mais provoque o desejo de vingança do que a “injustiça”,
principalmente em um meio inculto e povoado por uma raça indômita e soberba da
sua bravura.
Daí o ódio do sertanejo pelas autoridades incumbidas de distribuir justiça, por
causa exatamente das injustiças que praticam em proveito próprio ou da sua
política; e, como consequência desse ódio, a proteção dispensada a todos
quantos se rebelam contra as leis tão mal aplicadas, e contra os representantes
legais: juízes, delegados, oficiais e soldados.
O sertanejo ignorante e pobre habituou-se assim, durante muitos anos
decorridos, a desagravar-se por si, ou com auxílio dos seus, de ofensas
recebidas, mesmo que elas partam dos potentados da terra, desde que não confia
na justiça das autoridades, por ele consideradas seus maiores inimigos; e,
assim sendo, tem imenso prazer em desorienta-las, desviando-lhes a perseguição
contra os criminosos por meio de falsas informações, e avisando estes da
aproximação da tropa, quando os não acoitam em sua própria casa.
Por seu lado, os cangaceiros, astuciosos e previdentes, certos de que só podem
fugir à perseguição com o concurso da gente humilde, exploram habilmente aquela
animosidade, repartindo com os necessitados uma parte dos roubos que praticam.
Atacam de súbito, ou mesmo com prévio aviso, uma cidade, vila, povoado ou
fazenda, que sabem desguarnecida de tropa ou com um contingente que lhes não
pode resistir, e impõem aos negociantes e fazendeiros abastados uma espécie de
contribuição de guerra, composta de dinheiro, fazendas e gêneros alimentícios.
Retirada a parte do leão, que é dividida entre eles, distribuem o restante pela
gente pobre, granjeando-lhe, destarte, a simpatia.
Às vezes, o chefe do bando arvora-se também em árbitro supremo de contendas,
que julga a seu modo, conforme as queixas que recebo, ou em protetor da honra
de mulheres, sob pena de morte para o contendor ou sedutor que não obedecer ao
seu julgamento, tornando-se, assim, querido e respeitado ao mesmo tempo, pela
aplicação da “sua” justiça, à moda sertaneja.
Do exposto verifica-se que a política, invadindo os sertões sem cuidar da
educação moral e da instrução do sertanejo ignorante, antes mantendo-lhe os
instintos atávicos das três raças que o formaram, para que os potentados
pudessem tirar proveito de sua ignorância e das suas paixões – foi e continua a
ser, a causa principal da anarquia latente ainda hoje, e que só por um grande e
continuado esforço dos governos bem intencionados poderá ser modificada.
Lutas tremendas, provocadas quase sempre ou pela falta de garantias individuais
ou por injustiças das autoridades contra os direitos dos oprimidos, sacrificados
à vontade de chefes políticos, têm consanguentado, desde tempos imemoriais,
aquele pedaço do solo brasileiro. Famílias inteiras se veem dizimado
mutuamente, numa vingança feroz, ininterrupta, eliminados sumariamente ora um
indivíduo de uma delas, ora outro do lado oposto, até se defrontarem os dois
últimos sobreviventes, dos quais um será o assassino do seu último adversário,
e, daí por diante, um “cangaceiro” a fugir da perseguição legal.
A história dos sertões nordestinos está cheia desses episódios sangrentos,
narrados por João Brígido, Alfredo de Carvalho, Alberto Rangel, Dr. Xavier de
Oliveira, e outros historiadores, aos quais o doutor Raul Azedo tem ajuntado
outros, verificados por ele pessoalmente, e tão interessantes e elucidativos da
psicologia dos nossos sertanejos, que pedimos vênia ao ilustre cientista para
transcrever aqui alguns deles.
João Brígido, narrando a luta das famílias “Pataca” e “Cunha Pereira”, nos
sertões de Coará, diz que a terra cobriu-se de assassinos, e adianta o
seguinte: “Ninguém se ofenda; mas todos que têm bisavô nos sertões do Ceará,
hão de ter na sua ascendência nomes que podiam ter ficado inscritos no pé da
forca”.
A luta entre estas duas famílias só terminou com o aniquilamento do chefe
Pereira, um filho, amigos e serviçais que o acompanhavam, os quais foram mortos
e queimados pelos Patacas, que assaltaram e incendiaram a sua casa.
Por uma questão de posse de terras, travou-se luta sanguinolenta entre as
poderosas famílias dos Monte e dos Feitosa, luta que ocasionou centenas de
mortes de lado a lado, e foi tão longe, obstinada e sangrenta, “que dela se
originaram (como afirma o Dr. Raul Azedo) os nomes de muitas localidades onde
se feriram os mais terríveis combates”, tais como: “Riacho do Sangue”,
“Batalha”, “Emboscadas”, “Defuntos”, “Cruzes”, “Trincheiras” e outros.
A coisa tomou tal aspecto, que o Ouvidor José Mendes Machado, sentindo-se
impotente para intervir na luta entre essas duas famílias, pela diminuta força
de que dispunha a colônia, embarcou para Portugal, a fim de pedir o apoio do
rei, que lhe concedeu. De volta, começou ele então a perseguir os dois bandos
criminosos; mas, ainda assim, os Monte e os Feitosa reagiram durante bastante
tempo, lutando entre si e contra as tropas reais. Por fim, batido Geraldo Monte,
chefe dessa família, e dada ordem de prisão contra o chefe Feitosa, este
internou-se no centro do Piauí, de onde conseguiu mandar matar, sucessivamente,
dois irmãos de Geraldo Monte e mais sete partidários deste. E esse terrível
criminoso nada sofreu. Passados anos, voltou ele para sua fazenda Cococy, onde
morreu tranquilamente, legando aos seus descendentes, como um troféu glorioso,
a sua espingarda, que denominava “Lagartixa”, com a qual cometera tão grande
número de mortes.
As lutas entre as famílias dos Cavalcante e dos André, entre as dos Araújo e
dos Maciel, foram outras tantas que ensanguentaram os sertões do Nordeste,
constando-nos que o célebre Antônio Conselheiro, que tanto trabalho deu ao
governo da União, em Canudos, e por causa de quem morreriam milhares de
pessoas, era o último sobrevivente da família Maciel, que, depois de matar o
último dos Araújo, fez-se beato e fanático.
Essas rixas entre famílias, ambas poderosas, ou mesmo entre uma poderosa e
outra inferior, mas que levava muitas vezes vantagens sobre a primeira, pela
valentia dos indivíduos que a compunham, atualmente são muito menos frequentes;
mas ainda existe essa solidariedade de família, na qual o sertanejo nortista
confia mito mais do que na Justiça Pública.
O Dr. Raul Azedo narra um caso, de que foi testemunha, demonstrativo dessa
solidariedade: o de um sertanejo, da família Carvalho, em cuja fazenda ele e um
companheiro de viagem se hospedaram, tendo sido recebidos e tratados com a
maior urbanidade, e onde se demoraram dois dias, por insistentes pedidos do seu
hospedeiro. Para dar uma ideia do caráter do sertanejo, conta que ele casara-se
com a viúva de um seu amigo dedicado, mãe de sete ou oito filhos, por pena de
vê-la desamparada, amando extremosamente a mulher, muito mais velha do que ele,
bem como as crianças que não eram suas. No dia seguinte ao de sua chegada,
recebe o sertanejo uma carta de um seu irmão, também fazendeiro, na qual lhe
comunicava ter sido atacada e incendiada a casa de um seu parente pelos
“Pereiras”, inimigos dos “Carvalhos”. Imediatamente ele despede-se dos seus
hóspedes, insistindo para que permaneçam em sua casa o tempo que entenderem,
mas que o “dever” o impele a abandonar tudo para correr em defesa dos seus.
- Mas não seria preferível – lhe observa o Dr. Raul – que o senhor apelasse
para a Justiça e desse queixa contra esses “Pereiras”?
- A Justiça? – replicou o sertanejo – aí é que iam parar na cadeia e ficar
arrasados todos os “Carvalhos”. Os “Pereiras” andam metidos com os chefes
políticos; estão sempre com o governo e são, por isso, ricos e prepotentes.
Este seria o pior recurso.
E abalou, montando em veloz cavalo, para a vingança, em socorro dos seus
parentes.
O caso deste sertanejo é típico, para se avaliar de que modo um homem bom,
trabalhador e honesto, possuidor até de virtudes raras, se pode transformar, de
repente, num cangaceiro.
O instinto da “vingança”, vindo dos seus antepassados, se acha latente no seu
organismo, bastando uma faísca para fazê-lo explodir e sobrepor-se a todas as
virtudes. De então por diante, criminoso e perseguido, o sertanejo pacato da
véspera torna-se um tigre; cerca-se de facínoras da pior espécie em defesa
própria e constitui um perigo social que é preciso extinguir a todo custo.
E a Justiça Pública, que deveria servir para refrear aquele instinto,
afastando-se por completo da política, garantindo o direito individual e sendo
inflexível contra a opressão dos humildes pelos poderosos – é, muitas vezes, a
responsável daquele funesto resultado, pela parcialidade dos seus representantes,
obrigando o sertanejo a fugir dela para desagravar-se, por suas próprias mãos,
de ofensas recebidas.
O caso de Jesuíno Brilhante, vaqueiro trabalhador e honrado, transformado em
temível cangaceiro, por ter “vingado” a morte de um seu cunhado, matando por
sua vez o assassino deste; o de Casimiro Honório, que durante longo tempo foi o
terror da zona do Riacho do Navio, em Pernambuco; o da família Quintino versos
família Pinheiro, se despedaçando mutuamente; o de Antônio Silvino, que foi
preso depois de um longo tirocínio no crime e se encontra na Casa de Detenção
do Recife, são outros tantos exemplos de atavismo, dessa tendência incoercível
do sertanejo pela vingança particular, exercida por ele próprio, com manifesta
ojeriza pela intervenção da Justiça Pública, por ter perdido nela a confiança,
que ela, desde o começo, lhe deveria ter inspirado.
Justiniano de
Alencar
Fonte: facebook
Página: Antônio Corrêa Sobrinho
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