Material do acervo do pesquisador Antônio Corrêa Sobrinho
João
Vampré (1868/1949)
O estanciano
João Vampré (1868/1949) chegou à província de São Paulo aos dezoito anos de
idade, radicando-se em Limeira e, depois, na capital paulista. Fez nome como
jornalista e historiador dos costumes – folclorista, diziam no início do século
XX – nas páginas do Diário Popular, no Comércio de São
Paulo, Correio de São Paulo, Correio Paulistano e no Estado
de São Paulo. Da terra bandeirante, retratou as festas de São João, Corpus
Christi, da Santa Cruz do Pocinho, a dança dos Caiapós, e a figura de Fernão Dias
Pais (cf. Guaraná, 1925, p. 148; Cordeiro, 1949, p. 288-289; Lima, 1984, p.
80).
Não deveria o
Vampré ser pouco expressivo nesta São Paulo que ensaiava saltar de vila
provinciana à metrópole, no final do século XIX, haja vista a sua participação
como sócio fundador da Academia Paulista de Letras no distante 1909. Como dizem
alguns enciumados, seria mais um desses curiosos personagens que, por absurda
casualidade, insistira em nascer no modesto Sergipe, como os Joões Ribeiro da
vida.
Ocorre que o
literato João Vampré não parece ter rompido em definitivo os laços com a terra
mãe e nem é de todo improvável que nela tenha exercitado o olhar antropológico
que tanta projeção lhe trouxera em São Paulo. Prova-o seu trabalho sobre “O
natal em Sergipe”, editado em italiano, bem como o verbete que discute o
significado do vocábulo que dá nome ao nosso Estado.
O verbete foi
publicado da Revista de Língua Portuguesa (Rio de Janeiro, n. 43, p.
25-26, set./out. 1926), veículo dirigido por Laudelino Freire – outro sergipano
“acidental” – e faz parte de uma série de comentários filológicos divulgados
nesse e em outros periódicos. Tais comentários foram, provavelmente,
organizados no trabalho intitulado “Influência do Tupi nos nomes geográficos”
(Rio de Janeiro, 1938/1940).
O único juízo
que colhi sobre o Vampré tupinólogo não lhe foi muito favorável. Plínio Airosa,
primeiro professor de Etnologia brasileira e Língua tupi-grarani, da
Universidade de São Paulo, classificou o sergipano de “curioso” e ao seu
trabalho como de “valor muito reduzido” (Airosa, 1954, p. 39-40). Como as
verdades mudam de dono conforme o tempo e a embalagem, segue a transcrição
paleográfica do étimo “Sergipe”, quase noventa anos após a primeira divulgação
para que o leitor sergipano tire as suas próprias conclusões.
“O Brasil
offerece um quinhão original no estudo da sua toponymia, na maior parte
derivada da raça aborigene.
‘Quase todos
os nossos nomes naturalisticos e geographicos’, como escreve o profundo
polygrapho João Ribeiro, ‘dimanam dessa fecunda fonte que desalterou a
imaginação primitiva. E os conquistadores, que tudo destruiram, não puderam
apagar do arvoredo, dos rios e das montanhas essas vozes claras e sonora que
ainda hoje palpitam e agonizam sobre o destroço das tribus vencidas”. Despertado
por esta ordem de idéas, peço venia ao eminente patricio citado, a que consagro
estas linhas, para tentar uma explicação da origem controvertida da
palavra Sergipe. A lexeogenia do referido vocabulo, corruptela de Cerijipe ou Sirigipe,
primitivo nome da illha de Villegaignon e assim graphado nos mais antigos
documentos, não pode ser entendida senão pelos agrupamentos dos adjectivos
adverbiaes Ceri e ipe, ligados pelo relativo j, como
ensinaram os padres Montoya e Luiz Figueira, nas suas grammaticas da lingua
tupy.
Manuseando o
diccionario de Montoya, vê-se que Ceri significa ‘pouco’ e ipe ‘perto’.
Os indigenas quizeram referir-se á situação de outros aldeamentos que ficavam
mais afastados do ponto da sua taba principal; pretenderam elles
designar por este termo idéa analoga á que exprimimos pelo temo ‘sertão’, isto
é, ponto afastado ou pouco proximo. A consoante j introduzida no
vocapulario tupy, por influencia portugueza, exprime relatividade da
distancia em razão do ponto em que elles se achavam. Os relativos e os
reciprocos têm grande valor na lingua geral dos indios, como
ensinaram os referidos indianologos; o relativo j é empregado para
substituir o primitivo i, quando o nome a que se liga principia por vogal,
como se verificou no latim em relação ás linguas modernas que delle se
derivaram. Assim, em vez de jaguara, japy, japecanga, se diriam
primitivamente: iaguara iapy e iapecanga.
Se da propria
estructura do vocabulo ‘Cerijipe’, sem alteração alguma, resulta uma
significação propria, não temos o direito de dar-lhe semantica estranha, tal
como ‘Rio de siris’ e outras.
Cada vez mais
me convenço da affirmativa do padre Ives d’Evreux, na investigação dos nomes
tupys, aplicados aos logares.
‘Os indigenas,
muito sabios na formação dos designativos locais, compunham taes nomes, após
deliberação em conselho, assignalando caractéres physicos da coisa nomeada, ou
factos permanentes, taes como molestias endemicas, perigos constantes, etc.’
O systema
geographico e´, além disso, o unico que acha conformação na estructura
grammatical da lingua tupy e o que menos se presta a corrupções. Assim, a
palavra ‘Ciará’ composta do relativo ‘Ci’ e do nome ‘araá’ que significa
‘molestia do calor’, como se pode verificar no lexico de Montoya, exprime
perfeitamente um logar sujeito aos perigos da sêca.
Em nossa
vaidosa presunção, vivemos a suppor que o indio barbaro na predicação dos nomes
é tão futil como nós outros civilizados.”
Para citar
este texto:
FREITAS,
Itamar. Da palavra 'Sergipe': a versão de João Vampré. Jornal da Cidade,
Aracaju, 31 ago. 2003.
Saiba mais
sobre Vampré:
Fontes das
imagens
Referências
bibliográficas
LIMA, Jáckson
da Silva. Os estudos antropológicos, etnográficos e folclóricos em Sergipe.
Aracaju: governo do Estado de Sergipe/Secretaria de Estado da Educação e
Cultura/Subsecretaria de Cultura e Arte, 1984.
VAMPRÉ, João.
Étimo do vocábulo “Sergipe”. Revista de Língua Portuguesa, Rio de Janeiro,
n. 43, p. 25-26, set./out. 1926.
VAMPRÉ, João.
A influência do tupi nos nomes geográficos. An. Hidrog. Mar. Brasil,
Rio de Janeiro, 1938/1940. (Obra não consultada).
AIROSA,
Plínio. Primeiras noções de Tupi. São Paulo: sn, 1933.
AIROSA, Plínio.
Apontamentos para a bibliografia da língua tupi-guarani. Boletim da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, São
Paulo, n. 169, 1954. (A primeira edição é de 1943).
SAMPAIO,
Teodoro. O tupi na geografia nacional. [São Paulo]: sn, 1928. (“Sergipe,
ant. Cirigype, c. ciri-gy-pe, no rio dos siris. Alt. Sirigype,
Sirgipe, Sergipe.” p. 306).
CORDEIRO, J.
P. Leite. Necrológio de João Vampré. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo, São Paulo, v. 49, p. 288-289, 1949.
http://blogdomendesemendes.blogspot.com