POR “O GLOBO” – 26/06/1957
CANGACEIROS
TENTARAM FUGIR, QUANDO AS PRIMEIRAS CABEÇAS ROLARAM
Para
“Restabelecer a Verdade Histórica”, o Coronel João Bezerra Descreve, Quase
Vinte Anos Depois, Com Detalhes Impressionantes, a Carnificina Que Marcou o Fim
de Lampião e Seu Bando Sinistro – “Suspense” em Plena Caatinga, Numa Madrugada
Chuvosa de Outubro de 1938 – “O Degolamento Foi uma Medida Acertada e Não me
Provocou Remorso”, Diz a “O GLOBO” o Oficial da Força Pública de Alagoas, hoje
Reformado e Fazendeiro
MACEIÓ, junho
(De Ivan Alves, enviado especial de O GLOBO) – Assegurando que o degolamento de
Lampião foi “uma medida acertada” – pois, se não houvesse ocorrido, muita gente
no sertão não acreditaria que ele tivesse sido eliminado – e que o célebre cangaceiro
não era o “cabra” mais valente e o melhor estrategista do seu grupo, o coronel
João Bezerra, que combateu, também, contra o Sr. Luiz Carlos Prestes e serviu
sob as ordens do general Gois Monteiro e do então major Eduardo Gomes,
encontrando-se, hoje, na reserva da Força Pública do Estado, acedeu em falar a
este repórter, rompendo um silêncio de vários anos, sobre a chacina desenrolada,
sob seu comando, há quase duas décadas, em Angicos, às margens do São
Francisco.
O coronel João
Bezerra, que conta atualmente 52 anos de idade e é um tranquilo fazendeiro no
interior das Alagoas, nega, porém, tenha mandado decapitar o mais famoso chefe
do cangaço, revelando ainda que pretende figurar, em breve, como ator, num
filme do deputado Tenório Cavalcanti, em torno da vida e da morte do homem cuja
série de crimes interrompeu numa manhã chuvosa de outubro de 1938, “para
desafogo e alegria das caatingas nordestinas, que amanheciam e anoiteciam sob a
alça de mira dos trabucos de Virgulino Ferreira”, como hoje relembra, friamente,
ante a memória da sangueira celebrada em prosa e em verso, e em tom legendário,
por todo o Brasil.
CAPITÃO, NÃO:
CORONEL
Tipo clássico
de caboclo, grosso e atarracado, cabelos e bigodes grisalhados pela ação do
tempo e das lutas na caatinga, olhos brilhantes, mas sempre ressumbrando
desconfiança, o dizimador do mais terrível conjunto de cangaceiros que já atuou
no árido Nordeste avistou-se com a reportagem no saguão do principal hotel da
capital alagoana. “É ao capitão João Bezerra que temos o prazer de nos
dirigir?” – perquirimos. E o nosso interlocutor, erguendo-se da poltrona: “Não.
É ao coronel João Bezerra”. Tentando contornar o equívoco, observamos: “Creio
que seria dispensável dizer que seu nome é conhecido em todo o País”. E ele,
fitando o repórter ainda sem muita identificação: “Parece que sim.”
Vencido o
constrangimento inicial, provocado pelo engano relativo à patente, o coronel
João Bezerra dispôs-se a falar fluentemente, sem peias. Mais adiante, chegaria
a confidenciar ao major Ataíde, assistente-militar do Governador do Estado e
coordenador da entrevista, que gostara do repórter, que se lhe afigurara “um
bom cabra perguntador”, salientando, ademais, que demonstráramos grande
confiança em sua narrativa.
SAUDADE DOS
PÉS DE ÁRVORE
Perguntamos ao
coronel João Bezerra como e onde vive, atualmente. E completamos:
- Sente
saudades daqueles tempos árduos de militança na Força Pública estadual?
O coronel João
Bezerra prendeu no lábio um tênue sorriso que se insinuava e afirmou:
- Trago no
peito a nostalgia da minha Polícia Militar e mais até dos pés de árvore, a cuja
sombra eu descansava durante os dez anos que combati.
Contou-nos, a
seguir, que se reformou há seis meses, no posto de coronel. Quando liquidou o
bando de Lampião era um simples tenente, de 33 anos de idade, nascido em
Afogado das Ingazeiras, município de Pernambuco, nos lindes desse Estado com a
Paraíba. “A comuna divide-se na serra”, explicou melhor. Abeirando-se dos
cinquenta anos, passou a se dedicar por completo à fazenda Aquidabã, de sua
propriedade, localizada no distrito de Ibateguara, município de São José de
Lajes, em Alagoas.
ONDE O ARADO
SUBSTITUI A ESPINGARDA
- Na minha
propriedade rural – informa o entrevistado, com indisfarçável orgulho –
desenvolve-se uma apreciável criação de gado. Demais disso, planto café, cana
de açúcar e cereais. Raramente, em consequência, venho à capital do Estado.
O repórter
indaga se ele se enquadrou no novo regime. A resposta vem, sem titubeio:
- Integrei-me
perfeitamente na qualidade de fazendeiro, após os meus trinta e quatro anos de
farda.
E quando o
repórter comenta que, assim, o arado está substituindo a espingarda, ele
contravém, reticencioso:
- Mais ou
menos...
ALGUMAS
“BRIGUINHAS” EM 1930
Já mais à
vontade com o jornalista, o coronel João Bezerra adianta que sua primeira filha
se formou recentemente em comércio; outra está terminando o curso ginasial em
São José de Lajes, enquanto o terceiro filho, de apenas seis anos de idade,
ainda não se afastou da fazenda para estudar. E, reportando-se a um aspecto
pouco vulgarizado de sua vida, acrescentou:
- Fiz todas as
campanhas contra o banditismo organizado e ofereci combate ao Sr. Luiz Carlos
Prestes. Como sargento, em 1926, incorporei-me à 6ª Companhia de Alagoas. Em
1930, fiz excursão deste Estado ao Rio de Janeiro. Viajei três meses, enquanto
durou aquela questão, a saber, as briguinhas que então surgiram no País.
RECORDANDO
GÓIS E O BRIGADEIRO
O coronel João
Bezerra acaricia gostosamente uma faca – e o fotógrafo opera a chapa. O
entrevistado larga o instrumento e pede a repetição da fotografia. É atendido e
agradece:
- Agora, eu
fiquei mais bonito...
Retoma, então,
o fio do relato:
- Em 1932,
participei da Revolução Constitucionalista de São Paulo. Estive sob o comando
do general Pedro Aurélio de Gois Monteiro, de quem fui amigo e a quem sempre
considerei um extraordinário tático. Fui aproveitado, outrossim, como chefe da
tropa de vigilância no Campo de Aviação de Rezende, dirigido, inicialmente,
pelo então capitão Dyott Fonte nele e, em seguida, pelo então major Eduardo
Gomes. Servi, também, com o “Melo Maluco”.
PRIMEIROS
ELOGIOS NAS FOLHAS
O vento
ligeiro de Maceió – réplica nordestina do minuano dos pampas – arremessa-se com
violência de encontro à janela, junto à qual se desenrolava a entrevista.
Perguntamos ao coronel João Bezerra se o vento o estava importunando. E ele:
- Deixa ficar,
que não dá pra derrubar nenhum cabra de raça. O nosso entrevistado é homem de
memória realmente excepcional: afiança que um graveto que tenha estalado sob
sua bota nas longas andanças pelos sertões atormentados do Nordeste certamente
será lembrado, caso se faça necessário. Voltando a discorrer sobre o movimento
de 1932, acrescenta:
- Ainda hoje,
lamento tenha sido desmoronada uma tropa nossa em Bocaina, onde se
travaram diversos combates machos. Os jornais referiram-se elogiosamente à minha
atuação, por eu ter tomado a vanguarda da porfia.
LUIZ PEDRO,
SUPERIOR A LAMPIÃO
A janela, a
pedido de um amigo comum, se fecha. Oferecemos um copo de água mineral ao
entrevistado e ele recusa: “Por ora, não”. Em sequência, entrando propriamente
no objeto da reportagem garante:
- Homem, o
bandido que criou nome foi Lampião, mas no grupo dele havia estrategistas mais
hábeis, como Luiz Pedro, que também era mais valente e mais esperto do que o
chefe.
O coronel João
Bezerra percebe o nosso espanto e adita:
-Todavia, Lampião também era um cabra valente da peste.
DETALHES
INÉDITOS SOBRE O FIM DO BANDOLEIRO
O repórter
solicita ao coronel João Bezerra que focalize a morte do famigerado Virgulino
Ferreira, comissionado como capitão por decreto do Governo Bernardes. O
entrevistado parece comprazer-se com a solicitação:
- Está certo:
vou devassar para vocês passagens que nunca pude devassar sobre os meus passos
para chegar a Lampião.
E, segurando o
braço do repórter:
-
Reconstituirei a verdade histórica, que alguns tentam vulnerar.
PROCURANDO
LOCALIZAR A “GANG”
O coronel João
Bezerra, ereto na cadeira e policiando todas as anotações do repórter, reconta,
então, desde o seu início, a caçada que, desencadeando-se na hinterlândia das
Alagoas e de Pernambuco, mobilizou a atenção nacional. Seu tom de voz, agora,
torna-se mais duro:
- Fortemente
apoiado pelas autoridades, comecei por efetuar sindicâncias para a localização
do grupo. Numa diligência que eu fizera, quando eles passaram no município de
Palmeira dos Índios, eu soube que ali haviam tiroteado com o sargento Porfírio,
em Craibeiras. Eu me achava em Olho d’Água das Flores, de
ordem superior, por acreditarmos que eles procurariam aquele centro.
Encontrava-me, dessarte, na boca da barra, mas lá eles não compareceram.
REMUNICIANDO O
CONTINGENTE
Deduzimos que
a primeira tentativa fora frustrada. E o coronel João Bezerra, ajeitando o laço
da gravata, sem maior convicção:
- Homem,
cangaceiro, como mosca, a gente não derruba com o primeiro tapa.
E continuou:
- Somente
depois do tiroteio, já mencionado, entre os facínoras e a Força Pública,
ocasião em que, confirmando o adágio, entre mortos e feridos se salvaram
todos,segui para Santana de Ipanema, em caminhão, onde apanhei
munição suficiente para reabastecer a tropa, que demandaria o homizio dos
cangaceiros. Chegando a um povoado de nome Tiririca, embosquei casas de
caboclos – alguns prisioneiros do grupo – e, às 8 horas do dia seguinte, eu os
peguei, assombrados, obrigando-os a orientar a tropa até o sítio onde haviam
deixado o grupo, que era nas caatingas fechadas, onde havia numerosas
macambiras.
LAMPIÃO DA
TAPA EM LUGAR DE ESMOLA
- Lobrigando
algumas macambiras com folhas quebradas, interroguei um ex-prisioneiro do
bando. Ele me asseverou que fora ele que ali caíra. Ao pedir uma esmola a Virgulino
Ferreira, deste recebeu violento tapa, projetando-o ao solo. Dispensei o
prisioneiro, porquanto já levantara todos os vestígios da passagem dos
delinquentes, e ative-me aos seus rastros durante doze dias, perdendo-os nas
caatingas de Guaribas, perto da vila de São Domingos, município de Buíque,
Pernambuco.
MAIS DE
DUZENTOS QUILÔMETROS ENTRE ESPINHOS
A um quesito
do repórter, o entrevistado esclarece:
- Cumpri,
aproximadamente, nesse percurso, quarenta léguas, com as voltas e revoltas da
caatinga. Eis os lugares que me lembro de ter percorrido, na pista dos
cangaceiros, nessa viagem: Lagoa do jirau, Riacho do Mel, Riacho de Traipu,
Serra dos Tocos, Poço do Cosme, Lagoa da Camiso, Serra do Uruçu, Serra das
Antas, Currais Novos, Serra de São Pedro, Sete Lagoas, Uamaro. Saí de lá
emplastrado de espinhos.
DESENHA-SE O
DESÂNIMO
- Em face do
escondimentodos rastros dos criminosos, verifiquei que eles se iam acampar
ocultamente, porém já na proteção de alguém, no povoado. Distante cerca de
quinhentas braças do local, escolhi entre os 95 homens 20 soldados dos mais
carrancudos – que mais facilmente se poderiam assemelhar com osmarginais – para
poder fazer investigações diretas. Percebendo que nas maiores casas de negócios
havia um aspecto de indignação, abordei um comerciante sobre a existência ou
passagem de cangaceiros por ali. Ele redarguiu que ignorava totalmente o fato.
Sondei os demais, mas nenhuma informação obtive a respeito. Meu ato subsequente
foi retornar ao seio da tropa, no acampamento. Um leve desânimo desenhou-se em
mau espírito.
ABATE DE BODES
CRIA UMA PISTA
- Chegando ao
acantonamento, vi que já haviam abatido quinze bodes. Inquirindo de quem era a
criação, responderam-me que parecia ser do subdelegado local. Mandei chamá-lo,
apresentando-se ele imediatamente para cobrar a despesa. Fê-lo, porém, a preço
exorbitante. Chamei-lhe a atenção, frisando que não deveria deslembrar-se do
convênio sobre o custo de gado e de bode para tropas volantes. Ele concordou e
eu ainda o interpelei com certo rigor, acentuando que quem não era amigo dos
soldados passava a sê-lo dos cangaceiros.
COMUNICAÇÃO
COM AUTORIDADES PERNAMBUCANAS
O coronel João
Bezerra relata, adiante:
- O
subdelegado demonstrou, então, que já tinha estabelecido contato com os
cangaceiros, naquele dia. Compreendendo que eles se achavam perto, talvez
escondidos pelo próprio subdelegado e temeroso de argui-lo sozinho, porque no
“aperto” ele poderia morrer, daí surgindo más consequências e aborrecimentos
entre unidades federadas, resolvi telegrafar ao Comandante Optato Gueiros, que
se encontrava em Águas Belas, nos seguintes termos: “Venha urgente para
tratarmos do plano para a campanha, pois, desta feita, obteremos os melhores
resultados de toda a ofensiva contra o banditismo”. Não quis ser mais
explícito, visto como, naquela época, os telegrafistas eram quem mais prevenia
os cangaceiros. Obtive, pouco depois, a resposta que transcrevo: “Deixo de atender
ao vosso chamado, por motivo de os veículos se acharem em reparos. Opino,
entretanto, por uma batida nas caatingas dos Guaribas”. Diante do exposto,
deliberei pegar o subdelegado, desse no que desse. Mandei buscá-lo, mas ele se
evadira, ganhando o mato. Esperei mais três dias, mas ele não regressou.
TENTANDO
DESPISTAR
- Aproveitei a
boa vontade do sargento Domingos Cururu e ordenei-lhe que, regressando o
subdelegado, ele lhe batesse duro. Retirei-me, pois com a minha presença ele
não tornaria. Segui, então, para Águas Belas, onde o comandante Optato Gueiros
me aguardava. Lá, trocamos ideias a respeito da questão em lide, tendo eu
rumado, a seguir, para Santana, a fim de prestar contas da diligência de
quatorze dias ao coronel Lucena, de quem obtive oito dias para descansar.
Transcorrido esse período, fui cientificado pelo próprio coronel Lucena,
comandante-chefe das tropas volantes com sede em Santana, de que circulavam
boatos segundo os quais Lampião atravessara a fronteira de Pernambuco, entrando
em Alagoas, pela zona de Pilão do Gado, já município de Mata Grande. Tocando
num lugarejo circunvizinho, tomou umas cargas de rapadura dos matutos, fazendo
com que estes o ouvissem anunciar que ia direto a Moxotó. Compreendi logo que
era justamente o contrário, pensando o coronel Lucena como eu.
NO COMANDO DA
TROPA
- Segui
imediatamente com a tropa, tendo convidado, por telegrama, o coronel Lucena, a
fim de nos juntarmos no Barro Branco. Acertamos aí o esquema da ação policial,
com o coronel Lucena passando-me o comando de toda a tropa em manobra,
determinando, ainda, que eu fosse para Mata Grande com o aspirante Ferreira,
que ele, três dias após, iria levar nossos vencimentos e ultimar providências
porventura não assentadas até àquele instante. Vencido o prazo, chegando o
coronel Lucena ao local, eu já havia ordenado as buscas em Moxotó,
verificando-se a existência de vestígio de bandidos na região. Combinei com o
mesmo coronel Lucena telegrafar ao comandante Opitato Gueiros, em Aguas Belas,
chamando-o a Maravilha, com o objetivo de acertarmos o envio de tropa
pernambucana para Moxotó, enquanto eu pegaria a pista da “gang” de Lampião,
para saber o local em que se havia homiziado. Providenciei a mudança de comando
da tropa em Mata Grande, deixando elementos de minha absoluta confiança sob a
liderança do então sargento Aniceto, segui ribeira abaixo, onde, com quatro
léguas, peguei a pista, deixando-os na Serra da Cachoeira, entre Pão de Açúcar
e Piranhas.
APROXIMANDO-SE
DO GRUPO
O coronel João
Bezerra sorve rapidamente um cafezinho, assiná-la que as minúcias que nos está
dando nunca foram antes enunciadas, e ajunta:
- Verifiquei,
então, que no rumo por eles escolhido iriam diretamente à Serra do São
Francisco, que estava próxima, às margens do rio do mesmo nome. Propus-me
demandar Piranhas, objetivando abastecer a tropa e, como era dia de feira,
estudar psicologicamente a fisionomia de cada um dos coiteiros que por ali
aparecessem, o que foi feito com precisão.
POR TRÁS DOS
ÓCULOS ESCUROS
- Na ocasião
em que o mercado estava reunido, sentei-me em uma cadeira de loja cujo dono era
o maior coiteiro da zona, do lugar onde desembocavam os caminhos vindos das
caatingas onde se achavam os bandidos. Eu usava óculos escuros, para esconder
minhas reações. Elementos procedentes daquelas bandas – aproximadamente uns
vinte – quando batiam com os olhos em mim passava no intimo de cada um deles,
fui ao telégrafo e passei um telegrama a mimmesmo, assim redigido: “Tenente
João Bezerra. Piranhas, venha urgente. Lampião está com todo o grupo em Moxotó.
Capitão Elpidio. Delegado de Policia”. O despacho fora feito falsamente como
sendo de Mata Grande.Com isso, visava a bigodear os coiteiros e verificar a sua
reação. Entreguei o documento ao estafeta, depois de carimbado, eretornei à
minha cadeira.
O coronel João
Bezerra faz um parêntesis para sublinhar:
- Eu nunca
disse essas coisas a nenhum repórter.
Agradecemos a
deferência e ele narra:
- Chegou o
estafeta, entregou o telegrama e passei o recibo. Comentei, então, em tom
provocativo: “Cangaceiro não é qualidade de gente!” Li, a seguir, o telegrama
em voz alta e grande número de coiteiros se acercou para ouvir-me melhor.
Através dos óculos escuros, vi que eles estavam mangando de mim...
COM A NOTA DE
LAMPIÃO NO BOLSO
O coronel João
Bezerra toma o quarto cafezinho da entrevista, que foi escrita entre 19h10m e
23h20m, e descreve:
- Assim foi
que o notório coiteiro Pedro de Cândida, que viera fazer feira para o próprio
grupo, foi quem mais me olhou e mais riu, uma vez que se achava com a nota da
despesa de Lampião no bolso e Cr$ 2 500,00 em espécie, quantia essa pertencente
ao bandido. Depois de lido o despacho, mandei tocar “reunir”, embarquei a tropa
num caminhão e propalei que me dirigia a Moxotó, onde consoante o telegrama, se
achavam os cangaceiros.
A VOLTA
INESPERADA (Para os Coiteiros)
Dezenove anos
passados, o coronel João Bezerra parece feliz com sua estratégia. Sorri com
certo entono ao referi-la:
- Chegando a
Pedra, estacionei, aguardando a noite para voltar, o que fiz, reforçando a
tropa. Às 18h30m, eu estava em Piranhas, onde, evidentemente, ninguém me
esperava. Os meus agentes tinham notícias mais frescas, declarando-me que o
Pedro de Cândida há três dias havia passado na beira da roça de um cidadão, nas
caatingas, com duas bandas de bode nas costas, rumo à Serra de São Francisco,
onde eu suspeitava achar-se o grupo.
PRENDER PEDRO
DE CÂNDIDA, EIS A QUESTÃO
- Inferi logo
que, detendo Pedro de Cândida, estaria tudo resolvido, o que logrei às 2 horas
da madrugada. Com três canoas pequenas, atreladas umas às outras, por não
dispor de canoa grande, e sob os maiores perigos de naufrágio, cheguei ao local
de nome Remanso, distante do povoado de Entremontes, onde morava o coiteiro. Mandei
bater na porta e fazer o sinal de tropa, dizendo-lhe que eu queria falar-lhe.
Pedro de Cândida, ao ver o miliciano, apavorou-se, conseguindo ludibriá-lo.
Deixou de comparecer, pretextando que um boiadeiro da Bahia poderia descobrir
que ele estava tendo entendimento com a milícia estadual e isto lhe seria fatal.
SINAL DE
CANGACEIRO ABRE A PORTA DE COITEIRO
- Indignei-me
com a recusa e determinei ao soldado insistisse, trazendo Pedro de Cândida de
qualquer maneira, ainda mesmo disparando-lhe o parabélum, o que foi cumprido
dentro de dez minutos, comparecendo Pedro de Cândida à minha presença. O
soldado usou de estratégia, fazendo o sinal de cangaceiro, o que levou Pedro de
Cândido a abrir a porta da frente, quando já se aprestava a fugir pela de trás.
Ao ver, então, o soldado, exclamou: “Você voltou para me matar?” Ao que o praça
retrucou: “O tenente me ordenou que, se não pudesse trazê-lo, eu o matasse,
aqui mesmo”. Pedro de Cândida resolveu comparecer.
BEM PERTO DOS
MALFEITORES
- De posse
desse achado, peguei Pedro de Cândida na abertura da camisa e, com pequeno
gesto com o joelho, o coiteiro caiu ao chão. Fiz-lhe, na oportunidade, um susto
gostoso, puxando o punhal e colocando-o abaixo de sua costela mindinha.
Perguntei-lhe se estava disposto a mostrar os assaltantes. Ele concordou,
contando-me, ainda, a mangação que fizera, supondo que eu estava, mesmo, em
Moxotó. E, sem mais preâmbulos, atravessamos o rio na mesma embarcação, sem rumor,
pois estávamos bem perto do grupo.
UM
“INTERMEZZO” SENTIMENTAL
- Quando
saltamos do barco, Pedro de Cândida me requereu, em prantos, que eu assentisse
em que ele fosse tomar a benção à sua mão, cuja residência era ali próximo,
como apontou com o dedo. Consenti. O aspirante Ferreira e eu o acompanhamos de
perto, enquanto as minhas forças gozavam uma trégua. Eram 3 horas da madrugada
e chovia torrencialmente. Ao passar por debaixo de duas quixabeiras frondosas,
nas proximidades do domicílio, Pedro de Cândida parou repentinamente e
assinalou: “Seu tenente, o senhor deveria ter trazido mais soldados. Cangaceiro
é a peste! Talvez a minha casa esteja cheinha deles”. Revoltei-me: “Por que não
me advertiu antes, miserável, mas só agora?”
UM ALVO BRANCO
SE RECORTA NO NEGRUME DA NOITE
A expectativa
dos que ouvem as palavras do coronel João Bezerra é inocultável. Ele, porém,
não denota qualquer exaltação:
- Nesse
momento, ordenei ao aspirante que destravasse a metralhadora e se colocasse
atrás da residência. Quanto a mim, coloquei o pente de cinquenta tiros na minha
metralhadora possante e recomendei a Pedro de Cândida que batesse na porta,
fazendo o sinal de cangaceiro, e chamasse o irmão. O irmão respondeu logo:
“Pedro?” E este: “Venha cá!” Imediatamente, abriu-se a porta e o irmão de Pedro
de Cândida saiu com uma camisa muito branca, que se recortava bem na escuridão.
Olhou bem pertinho da minha cara e espantou-se: “Uai! Já está aqui?” Ao que
Pedro de Cândido aconselhou: “Meu irmão, conte logo tudo, que nós vamos morrer
por causa dos cangaceiros e eu já sofri o diabo”.
FORNECENDO A
PISTA DEFINITIVA
- Aí eu
perguntei: “Os cangaceiros estão por aqui?” Ele, antes de proferir qualquer
frase, olhou para o irmão, que o encorajou: “Diga tudo, meu irmão, senão nós
vamos se acabar!” Ele virou-se, então, para mim e se abriu: “Estão, sim, seu
tenente. Os cangaceiros estão lá”. E eu: “Como é que você sabe que estão lá?” E
ele, rápido: “Porque eu estive lá, na boquinha da noite, para ver uma máquina
de costura que o capitão (Lampião) me prometeu, mas dona Maria (Maria Bonita)
estava cosendo e ele me disse que eu fosse buscá-la bem cedinho, devendo eu,
então, procurá-la no pé da pedra, debaixo das macambiras, onde ele, se não
estivesse mais lá, deixaria o aparelho escondido”. Sorri: “Então vamos ver
logo, senão você perde a sua máquina”. E o cabra, tremendo: “Ave Maria! Nesse
caso, eu preferia perder!” Fiquei, por motivos óbvios, com esse coiteiro,
entregando seu irmão ao aspirante. Sentenciei, logo depois: “A camisa é branca;
se correr, é um bom alvo”.
PREPARANDO A
TROPA PARA O COMBATE
Perguntamos ao
coronel João Bezerra qual era o seu estado de espírito, naquele momento. Ele
nos olha de lado: “Nenhum nervosismo. Eu tinha a tranquilidade de quem vai para
um batizado de cabra que acaba de nascer”. Reintegra-se na história:
- Voltamos
para junto da tropa: clareando-os com uma pilha elétrica, acordei os praças que
já dormiam: “Vamos embora”. Subimos a margem do São Francisco, num lugar muito
íngreme, pelo lado, justamente, em que não esperavam a tropa, pois me julgavam
já em Moxotó. Na chegada, esperei todo o contingente, que vinha em coluna por
um, e, após reuni-lo, em círculo, 3h30m da madrugada, dei-lhes ciência de que,
se Deus ajudasse, dentro de mais trinta minutos, se decidiria a parada entre a
força e os cangaceiros. Grande parte dos presentes respondeu, de uma só vez:
“Já andamos desesperançados de brigar; essas pestes são encantadas”. E num
segundo tempo: “E porventura qual é o grupo a que o senhor se refere?” E eu,
lacônico: “O de Lampião”. Ao que eles se admiraram: “É o cego?” Confirmei: “Ele
mesmo”.
EM MARCHA
RASTEJANTE
- O coronel
João Bezerra poderia mencionar o número de homens que tinha a seu dispor,
naquela noite? – indagamos.
- Eu tinha45
homens.
E adivinhando
o nosso quesito seguinte:
- Lampião
tinha 48 homens. A minha tropa, eu a dividi em quatro grupos: três de 10 homens
e um de 15, sendo este o meu, pois dele partiria o ataque. Assim foi que ao
grupo capitaneado por Ferreira de Melo eu ordenei que seguisse com o coiteiro
Pedro de Cândida, que conhecia toda a disposição do adversário, e rumasse em
direção ao riacho, onde se achava o sentinela, colocando-se entre o mesmo e o
grupo. Em sequência, seguiria ainda riacho acima, em marcha rastejante, até
avistar os cangaceiros, que dormiam ao ar livre. Ali deveriam aguardar o aviso
da minha metralhadora.
CANGACEIROS EM
PILHÉRIAS
- Segui
margeando o riacho pela direita – chovia ainda torrencialmente e, meia centena
de metros adiante, mandei descer outro grupo de 10, para ficar à direita de
Ferreira de Melo, aguardando as mesmas ordens. Segui com 25 homens, realizando
prodígios de equilíbrio, pelos bicos das pedras, e abaixando-me pelos matos. Aí
eu já batia com a testa em celas dos cangaceiros, as quais, juntamente com as
dos coiteiros que com eles foram ter, estavam dependuradas. Lembro-me que um
cavalo, que se achava apeado e tinha um grande chocalho ao pescoço, espantou-se
com a tropa e deu um formidável sopro pelas narinas. Tive que recuar quase uns
trinta metros para que o animal não corresse, espavorido, balançando o
chocalho. Os cangaceiros já estavam acordados, pilheriando uns com os outros,
falando em trocar o bornal e reclamavam contra o café, que estava frio. O
ataque de surpresa já iria desencadear-se.
DEFLAGRA-SE O
COMBATE
O coronel João
Bezerra chega ao ponto culminante da entrevista:
- Disposta
toda a tropa, quando eu me preparava para transpor uma pedra comprida, da
altura de 1 metro, ouvi diversos disparos pelo lado em que colocara a tropa do
aspirante e outros tentos para o nosso lado. Recebi, nesse momento, uma pancada
na perna e outra na mão: vi o sangue descer, o que provava que eu tinha
recebido umas balinhas. Porem, quando me levantei, fazendo força na perna,
constatei que o osso estava íntegro. Olhando para a direita, vi sair fogo de
quatorze fuzis, cadenciadamente, na altura de metro abaixo. Gritei, então:
“Avancem!” Cinco minutos depois, notei, com satisfação, que a tropa se
misturava com os cangaceiros, que, desse modo, tiveram que passar a lutar em
várias frentes.
PISANDO SOBRE
CADÁVERES
O coronel Joao
Bezerra ainda alisa a lâmina da faca, mas tem os olhos postados sobre as notas
do repórter. Acompanhemo-lo:
- Fui
passando, então, por cima dos cangaceiros mortos, cujas vestes estavam
ensopadas de sangue e de água de chuva. Lembro, também, que um soldado meu, de
nome Adriano, exclamou: “Estou baleado, tenente!” E, antes que eu pudesse
auxiliá-lo, ele estava com a barba serenada.
- Que
significa barba serenada, coronel?
- Morto. Logo
a seguir, outro soldado, Antônio Jacó, me preveniu: “Seu tenente, o cabra lhe
mata!” E, de fato, o cabra atirou, mas, como o mosquetão estava descalibrado, a
bala foi alojar-se num toco de catingueira, ao meu lado. Apontei a metralhadora
para ele, mas logo o vi caindo por cima das macambiras, pois Antônio Jacó –
cuja pontaria parecia uma olhada de machado – já o havia alvejado.
O GRITO DE
VITÓRIA: “O CEGO MORREU!”
O chão e as
macambiras cobriam-se de sangue. Luiz Pedro, cabra valente pra danar, vinha ao
nosso encontro, sem nos ver. Fui, de dentro do riacho, enquadrando-o na mira da
metralhadora, até 10 metros. Quando me preparava para matá-lo, vi, com
tristeza, que um soldado atirou primeiro. Com mais vinte metros, vimos quatro
cangaceiros caídos. Junto a eles, um soldado gritava: “O cego morreu!” Eu
respondi que o cego (Lampião) não morreria assim. E ele, convicto: “Se este não
for Lampião, quero ser cabra da peste, pois eu fui coiteiro dele durante dois
anos”. E eu, ainda desconfiado: “Verifiquei se o olho direito dele é cego”. Ao
que ratificou o praça: “É cego, sim, tenente”. Mandei trazer o cangaceiro, no
caso Lampião, mas o praça trouxe a cabeça. Alguns cabras, entrementes,
conseguiam escafeder-se, enquanto as cabeças de seus comparsas rolavam pelo
barro.
MEDIDA
ACERTADA
O coronel João
Bezerra observa que a lembrança do degolamento de Lampião e de seus sequazes
ainda constitui um impacto. Elucida, por isso:
- O
degolamento se enquadrou perfeitamente num processo antigo. Demais disso, não
poderíamos trazer todas as cabeças. Quando os meus subordinados cortaram as
cabeças, não protestei também por um outro motivo: uma falange de dedos
amputada não modificaria uma fisionomia. Determinei fosse feito o
reconhecimento dos cadáveres, mandando respeitar os mortos.
E repisou o
entrevistado:
- O
degolamento foi uma medida acertada. Se não tivesse ocorrido, muita gente, até
hoje, não acreditaria na morte de Lampião.
VERSÕES QUE
DIVERGEM
O nosso
entrevistado vai além.
- Um dos
ex-combatentes da época, coronel Manuel Neto, da Polícia de Pernambuco, e
ex-prefeito de Irajá, escreveu, levantando dúvidas quanto às reais
circunstâncias que rodearam o fim de Lampião. Forçou, com isto, os meus colegas
das Alagoas a censurá-lo e levou-me igualmente, a lhe escrever uma carta, que
dizia, a certa altura, mais ou menos o seguinte: “Deixe, meu bom colega, que os
paisanos venham em cima de nós, militares, com seu despeito, sua inveja, não um
velho militar, nas suas condições, que, muitas vezes, imitando-me ou tentando
imitar-me, se amparou no seu mosquetão, aguardando o pronunciamento da Justiça.
Você sabe bem, está bem lembrado, de quando lhe telegrafei, chamando-o, e que
você, em lugar de comparecer, para me ajudar, mandou o sargento Davi Surubeba(que
ainda hoje é vivo e está lembrado), que chegou retardado, encontrando-me nas
mãos de dois médicos, que me pensavam dos ferimentos recebidos no combate meia
hora antes. E Davi Surubebae o sargento Odilon Flores, de saudosa memória, pegaram
as cabeças dos cangaceiros, tendo o primeiro, ao erguer a de Lampião, asseverado,
chorando: “Queria que fosse eu que tivesse morto Lampião.Mas foi o meu amigo, tenente
João Bezerra, quem o matou”.
MEMÓRIAS EM
TERCEIRA EDIÇÃO
Perguntamos ao
coronel João Bezerra sobre Volta Seca, atualmente no Rio de Janeiro, onde até
se iniciou como cantor. A resposta é áspera: “É um cachorro!” Narra-nos, então,
um episódio, impublicável, marcado pela maior brutalidade, cujo protagonista
principal foi aquele ex-integrante do grupo de Lampião. E arremata o
entrevistado, após acentuar que a fita “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, foi uma
pantomima, sem guardar qualquer relação com a verdade histórica, e que pretende
figurar, em breve, como ator, num filme sobre a vida e a morte de Lampião,
produzido pelo seu amigo, deputado, Tenório Cavalcanti.
- Dessa forma
é que vou publicar a terceira edição do livro sob o título “Como dei cabo de
Lampião”, com capítulos interessantes para o momento, inclusive o desmentido a
algumas notas escritas irrefletidamente por pessoas inescrupulosas.
Terminara a
entrevista, quatro horas e dez minutos após se haver iniciado. Conduzimos o
entrevistado até à porta do hotel. “Não lhe ficou, portanto, qualquer remorso
da liquidação de Lampião e seu bando?” – reinquirimos. E o coronel João
Bezerra, firme:
- Nenhum
remorso. O degolamento enquadrou-se, como já disse, num processo histórico.
Depois, era mais cômodo trazer as cabeças que os corpos, dada a distância em
que nos encontrávamos. Trazer os corpos seria impraticável.
O coronel João
Bezerra pede que lhe enviemos exemplares do número de O GLOBO em que foi
publicada a entrevista. Quando apertava a mão do repórter, um hóspede do hotel,
identificando-o, comentou com o companheiro:
- Olhe o
degolador de Lampião...
E o coronel
João Bezerra, já ganhando a calçada:
- Aí começa a lenda. A verdade termina no que
lhe contei. Foram feitas as despedidas e o coronel João Bezerra afastou-se,
tranquilo, como se estivesse na santa paz dos céus, sem que lhe angustiassem o
espírito aquelas cabeças que rolaram, um dia, pelo chão calcinado dos sertões,
há quase duas décadas. Certamente os espectros não transpõem a porteira da sua
fazenda, onde se erguem as sombras dos cafezais e dos canaviais e onde o gado
muge as suas mágoas – as únicas existentes na queda fazenda Aquidabã.
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