Por Aderaldo Luciano
As tentativas
de estudar o cordel brasileiro não levaram em conta o seu caráter poético e,
quando tentaram considerá-lo, uniram-se ao contraditório por não classificá-lo
como se deveria classificar qualquer peça poética, parte do todo literário
universal. Isso se daria (e se deu quando destinei-me à observação
sistematizada) com o estudo à luz dos gêneros literários, orientando os estudos
pela conclusão, a partir da observação, segundo a qual o cordel brasileiro é
uma forma poética fixa da poesia universal. A forma fixa do cordel se dá pela
exigência do cumprimento de suas regras intrínsecas e definitivas. Essas regras
fizeram-no distanciar-se do malogrado conceito de "literatura de
cordel", ligado ao que se fazia e se fez em Portugal, aos pliegos sueltos
e coplas de Espanha, à colportage francesa, aos chapbooks britânicos. O cordel
brasileiro é forma genuinamente brasileira por ter, em primeiro lugar, criado a
forma poética fixa (com um mínimo de estrofes, sejam sextilhas, septilhas ou
décimas; nunca em quadras, nem em prosa; a utilização majoritária do verso
setissilábico; a observação da rima, disposta seguindo os pioneiros) e, para
além da forma fixa, ter criado também o sistema literário cordelístico, pautado
pela indicação de Antonio Candido (aquela que diz, em seu Formação da
Literatura Brasileira - Momentos Decisivos: o sistema literário é formado pela
presença de um autor, de um editor, de um leitor. Acrescentei ousadamente, com
imenso receio de ser mal-entendido, mas precisava correr o risco: o crítico).
Alguns pesquisadores quiseram estudar o cordel e o fizeram, até
sistematicamente, mas desconsideraram os tópicos que citei. Poetas também
resolveram metalinguisticamente falar sobre cordel. Seguem-se quatro expoentes,
mestres, que o fizeram:
Manoel Monteiro,
pernambucano de Bezerros, escreve e publica em 2011, com as bençãos da Academia
Brasileira de Literatura de Cordel, o folheto Aula De Cordel - Uma Herança
Portuguesa. Pelo próprio título, o curioso pela arte cordelística é levado a
duas constatações óbvias, mas que precisam ser levadas a sério: Manoel não
trata nossa poesia como "literatura de cordel", mas como cordel,
entretanto deixa um cordão umbilical com o que se produziu em Portugal no séc.
XVIII. O poeta é dos mais lúcidos que pude encontrar, estudioso, conhecedor do
ofício, produção longa e bem cuidada. Na primeira septilha o seu narrador nos
alerta para algo que muitos deixam de lado por quererem abraçar a nomenclatura
recebida pelo brasilianista Raymond Cantel (literatura de cordel). Ele nos
alerta para a certeza de que nosso poema já foi chamado de Romance, Verso,
Estória, Folhetim, Folheto, Livreto e Livro, mas que hoje é conhecido apenas
por Cordel. A seguir, faz uma verdadeira aula de poética do cordel,
escrutinando os detalhes da produção. Disseca as estrofes, mostra as rimas,
conta os versos, sempre alertando para o rigor da construção. Não trata do
processo histórico do cordel ou de outra característica extrínseca, parte
diretamente para o texto. Uma ótima introdução ao fazer poético, não só para o
cordel, mas para elementos da poesia brasileira. Manoel Monteiro prestou
importantes serviço para o cordel brasileiro. Faleceu em Belém do Pará, em
junho de 2014.
Azulão,
codinome de José João dos Santos, paraibano de Sapé, radicou-se no Rio de
Janeiro na primeira metade do séc. XX e, de lá, irradiou sua produção
cordelística. Um de seus clássicos, O Trem Da Madrugada, é um importante
retrato das relações humanas com a tecnologia ferroviária na cidade do Rio. Um
verdadeiro tratado social sobre os tipos e costumes cariocas na década de 80.
Mas aqui nos referiremos ao trabalho O Que É Literatura De Cordel?. Diferente
de Manoel Monteiro, Azulão centrou-se no termo português, trazendo-o à nossa
poética genuína. Nas 17 estrofes iniciais, encontramos elementos para entender
a importância do poeta no seio de sua comunidade. A partir dessa importância
individual, a importância de sua produção poética. Trata da presença do cordel
e do repente, de sua aceitação pelo interior do Nordeste, de sua presença nas
feiras livres e cantorias, do diálogo presente entre o rural e o urbano, da
migração do poeta do primeiro para o segundo espaço, das festas (batizados,
casamentos, vaquejadas) e da possibilidade de adentrar nas escolas. A partir da
estrofe 19, Azulão e seu narrador, como muitos pesquisadores, apresentam o
quadro de herança de portugueses e espanhóis, caindo no equívoco ao afirmar que
havia um sistema literário no qual os poetas escreviam e publicavam na forma de
folheto e chamavam a essa produção de literatura popular e de cordel. Essa
nomenclatura foi dada pelos estudiosos e mais precisamente por Teófilo Braga.
Não houve o sistema. E não se encontram naquela produção elementos que os
assemelham às características intrínsecas do cordel brasileiro. Ficando a
semelhança apenas no aspecto gráfico. No folheto, portanto, não se encontra a
análise, a apresentação da peça poética, mas os aspectos históricos (sem
datação). Azulão nos deixou em março de 2016.
Antonio
Américo de Medeiros, potiguar de São João do Sabugi, radicou-se em Patos, na
Paraíba. No sertão paraibano forjou toda sua intervenção na cultura poética
brasileira. É o poeta da Cruz da Menina, de Cazuza, O Caçador de Onça, da Moça
Que Mais Sofreu na Paraíba do Norte. Cantador, repentista, folheteiro, escreveu
Os Mestres Da Literatura De Cordel. Nesse folheto o poeta nos apresenta os pais
do cordel, segundo ele, quais sejam, Silvino Pirauá e Leandro Gomes de Barros.
Também nos aponta o local de nascimento do cordel brasileiro: entre Vitória de
Santo Antão e o Recife. Nos diz ainda que Pirauá vai se encaminhando mais para
a cantoria, com Zé Duda, e que Leandro abraça a tipografia. Fazendo jus ao
título, Antonio Américo desfia toda a genealogia do cordel, trazendo a nós
poetas já esquecidos, cujas obras, apesar de importantes para a consolidação da
arte, foram abandonadas dos estudos e pesquisas. Até a estrofe 18 lista a
importância desses poetas da primeira geração, Princesa. A partir da estrofe
19, inaugurada com a morte de Leandro em 1918, traça o mapa da herança,
primeiro a João Martins de Ataíde, depois a José Bernardo, que transporta todo
o material que fora de Leandro e de Ataíde para o Juazeiro do Pe. Cícero, onde
reinou até 1966. Daí, Antônio Américo, olha para Manoel Camilo e sua Estrela da
Poesia em Campina Grande, João José, da Luzeiro do Norte. Da derrocada dessas
editoras e editores de cordel, Américo lista os principais cordelistas da
segunda geração: Camelo, Pacheco, Sena. Entra na contemporaneidade e nos
oferece um banquete de nomes e datas e obras. Américo faleceu em Patos em
janeiro de 2014. Legou-nos vasto universo de poesia e ensinamento.
Pedro Costa piauiense de Alto Longá, criou a revista De Repente, dedicada à poesia de
cordel e ao repente nordestino. Radicado em Teresina teve papel protagonista na
divulgação e consolidação do cordel e do repente no Brasil. Pedro conseguiu o
diálogo entre os poetas do povo e as elites culturais piauienses, abrindo a
janela para a tomada de territórios inéditos ao cordel. Escreve o folheto O Que
é Cordel (E Seus Mestres) para ilustrar e servir de roteiro para suas
incontáveis oficinas e palestras, cursos e recitais. Retoma, no título, o termo
"cordel", mas já na terceira estrofe procura o embrião europeu
citando as origens nos centros de Portugal, Espanha e França. Um pouco mais à
frente cobra um olhar diferente para o cordel afirmando que "cordel é
literatura", logo abaixo, contraditoriamente, diz que cordel é barbante e
prega a inoportunidade do termo ao produto cordelístico pedindo que se chame de
folheto e não de cordel. A proposição fica vaga porque o termo folheto se
emprega ao produto gráfico e não ao conteúdo poético. Observe o leitor que fiz
uma gradação: de Manoel Monteiro que era poeta de bancada a Azulão, cantador e
de bancada, com ênfase na bancada, depois Antonio Américo, cantador e
cordelista, com ênfase na cantoria e Pedro Costa, a síntese mais assentada. Por
isso, na estrofe 11, Pedro constrói a divisão dos tipos de poetas do sertão: o
aboiador, o escritor, o embolador e o repentista. Fica na citação, não desfia
suas ações, seus ofícios, o que os distingue. A partir daí segue a listagem de
poetas, sem data de suas aparições. Na penúltima sextilha cita os trabalho de
Geová Sobreira e Gilmar de Carvalho para corroborar seu bom trânsito com o pensamento
acadêmico. Pedro Costa faleceu aos 54 anos em abril de 2017.
Esses quatro
folhetos citados nos ofertam um pouco do olhar dos poetas sobre suas próprias
produções e sobre o cordel brasileiro: Manoel Monteiro centrado nos elementos
formais, Azulão nos aspectos históricos e sociológicos, Antonio Américo no
percurso histórico e genealógico, Pedro Costa na classificação dos tipos de
poetas e na busca pela literariedade do cordel. A próxima matéria vai se
debruçar sobre o que escreveram metalinguisticamente poetas em atuação.
Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero Araújo Cardoso
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