Por Raul Meneleu Mascarenhas
Quando estive
nos campos de guerra do Fogo da Maranduba, nunca poderia imaginar o que
realmente acontecera ali, se não fosse a ajuda de um mago da narrativa, em um
de seus livros sobre essa odisseia chamada Cangaço. Em encantamentos
presenciais, imagino o Caipira de Poço Redondo, Alcino Alves Costa, em pé,
nessa rocha em que estive; olhando e se transportando para aquele dia nove de
janeiro de 1932 às quatorze horas, quando se deu esse famoso combate entre os
heróis Nazarenos com seus inimigos mortais, Lampião e seus cangaceiros.
Eu não
conseguia ver o que houvera naqueles campos, a não ser uma pequena cruz fincada
no meio da caatinga, para marcar a sepultura inicial desses bravos que deram
sua vida, para tentar acabar com aquelas feras que viviam fazendo perversidades
pelo sertão.
Antes, como
visto pelo Alcino, em sua encantada presença ao dia do combate, onde visitou
com os olhos da imaginação esse ermo que estamos vendo agora. Era uma mataria
fechada. Hoje apenas um ermo quase sem vegetação alta. Mas ainda vemos alguns
umbuzeiros da época.
Mas agora,
todos nós contemplávamos uma cruz, indicando o local onde foram enterrados
Elias Marques e os nazarenos João Cavalcante, Edelgício, Ercílio, Pedrinho e
Manuel Ventura. Na ocasião também fora feito algumas orações e nesse
pequeno documentário, vemos o Padre Augustinho, liderar as preces com a
participação da maioria dos visitantes.
Convido os
amigos a virem comigo apreciar o que Mestre Alcino viu com os olhos da
imaginação e pelos diversos contatos que teve com alguns dos heróis nazarenos e
com cangaceiros ainda vivos, quando talvez nessa mesma pedra, ou em qualquer
das outras próximas aos sete umbuzeiros, seus sentimentos O tenha aproximado-se
do "FOGO DA MARANDUBA!*
"O
cerrado de Maranduba era, e ainda é, uma das mais faladas caatingas da região
sertaneja de Sergipe, mataria grossa: o cipó de leite, bom nome, angico,
aroeira, braúna, barriguda, umburana, quixabeira e umbuzeiro, morada do gato,
da ema, do caititu, do tatu bola e do peba.
Pastos onde só
vaqueiros machos corriam atrás de bois, vaqueiros escolhidos e famosos como os
Soares, o maioral Milinho, João Preto, os Teobaldo, os do Cuiabá e os de João
Maria: Adolfo e Manezinho Cego, o famoso Manezinho de Rosara.
Ali. Bem ali.
Naquele emaranhado quase que intransponível, está o coito de Lampião. É ali
onde as mulheres cangaceiras esperam seus homens que retornam de mais uma de
suas costumeiras razias.
Os soldados
vêm chegando. Chegam a umas pias. Espantados, vêem os pingos de água que caem
dos paus em cima das pedras. Sinal de que os bandidos ainda estão por ali
mesmo. Ao redor das pias, apenas uns quinze homens, os outros estão atrasados,
alguns estão na casa velha do Maranduba e outros ainda nem lá chegaram. Mané
Neto, louco por uma desforra, resolve não esperar os retardatários e seguir em
frente, sabe que os homens de Lampião estão bem próximos, ali naquela
mataria.
No entanto,
não sabe Mané Neto que a natureza havia presenteado aquela parte da caatinga com
um extraordinário anel, formado por um maravilhoso círculo. Sete umbuzeiros
circundam belamente as pias, é uma paisagem de raríssima beleza. É nesse anel
formado pelos sete umbuzeiros que Lampião se refugia com seus
homens. Havia chegado naquele mesmo momento, coisa pra menos de meia hora,
demorara-se um pouco nas pias e agora espalhara seus homens pelas sombras dos
umbuzeiros. A alegria é geral. Abraços e vivas fazem a felicidade de todos. Os
bandidos formam uma só família. Vivem irmanados pela dor e pelo
sofrimento.
Apenas Lampião
não tem alegria. Está taciturno e inquieto. Chama Luís Pedro e ordena:
— Avise ao
pessoá qui enquanto nóis num preparar os sentinelas, eu num quero ninguém
desequipado, quero todo mundo aperparado e pronto pra uma surpresa. Achu qui a
quarquer momento a gente vai ser atacado.
Mané Neto está
saindo das pias e vagarosamente caminha na mataria. Os cangaceiros estão ali a
menos de cinquenta metros. A hora da verdade chegou. Escutam as vozes alegres
da cabroeira. Rápidos cercam, ou pensam que vão cercar o coito. Acham que os
bandidos estão em um umbuzeiro. Jamais poderiam imaginar que ali existissem
sete umbuzeiros e que os bandoleiros estivessem espalhados em todos, como
também não imaginaram que os bandidos estivessem praticamente preparados para o
combate, graças ao poder misterioso de Lampião que previu com precisão o
momento do perigo.
São exatamente
duas horas da tarde. É o dia nove de janeiro de 1932. Estão frente a frente os
inimigos mortais. Nazarenos e Lampião se enfrentarão, Liberato e sua força
serão os coadjuvantes da tremenda desforra. A oportunidade de vingar-se do
desastre da Serra Grande se apresenta e os nazarenos não poderiam deixar fugir
esta grande chance. Serra Grande era uma marca dolorosa que feria profundamente
a vaidade de Mané Neto; grandioso combate que ficara nos anais da guerra
cangaceira, oportunidade em que as forças comandadas por nada menos que seis
experientes comandantes, os temidos Arlindo Rocha, Zé Olinda, Gino, Domingos,
Euclides Flor e Mané Neto, foram espetacularmente derrotados pelo iluminado
cangaceiro da Ingazeira.
Triste 26 de
novembro de 1926, data em que as mortais balas dos bandidos deixam marcas
indeléveis em suas pernas e quase o levam para o outro mundo. Agora, seis anos
depois, surge a maior chance e ela precisa ser aproveitada. Serra Grande e
Maranduba, além de Serrote Preto, foram na verdade as maiores vitórias e os
maiores feitos do grande rei dos cangaceiros.
Nos cerrados
de Maranduba, Lampião dá o alarme. Grita:
— Cuidado
mininos. Os macacu cercaru a gente.
Nesse momento,
o inferno como que desaba naqueles ermos. Não existe nada comparável à
violência e aos estrondos do combate e do tiroteio. O ribombar ecoa longe,
muito longe. Parece que o inferno transportou para aquela esturricada terra os
horrores e agonias de suas profundezas.
Os das
volantes, valentes, vaidosos, confiantes e destemerosos, atiram e avançam
enlouquecidos e alucinados. A ordem de Mané Neto é avançar e avançar sempre.
Liberato está ao seu lado; ele e mais alguns entre os quais Mané Véio, Elias
Marques e o filho Procidônio estão na vanguarda, ao lado de Mané Neto. Querem
mostrar que são verdadeiros machos, verdadeiras feras, que nada ficam a dever à
força pernambucana.
Os soldados
gritam: Mistura! Mistura!
A vitória
parece certa. Já estão misturados, juntos, dentro do coito. Os retardatários
vêm chegando, tudo vai ser muito mais fácil, a animação da tropa é sem igual,
aquele está sendo um feliz combate. Lampião não tem como safar-se do cerco que
lhe fizeram. É hoje ou nunca.
É para Mané
Neto a justa recompensa de tantos anos de luta e sofrimento, desde aquele já
distante 1923, quando juntamente com o amigo e conterrâneo Odilon Flor
ingressaram nas tropas do governo, persegue o infeliz inimigo, e vem sendo
sistematicamente derrotado. Alí não é Serra Grande. Naquele combate, apesar de
Lampião ter enfrentado seis destemidas volantes, com mais de trezentos
homens e sair vencedor, contava com a vantagem de ser o atacante, de estar
fortemente preparado e bem entrincheirado esperando as volantes
impossibilitadas de sair da arapuca.
Agora a
situação é totalmente inversa, tudo é diferente; apesar do número de soldados
ser muito menor, todos os trunfos estão do lado das volantes. Acham que Lampião
havia sido atacado de surpresa, e o local, embora muito fechado, era raso, em
um plano que muito beneficiava os atacantes; tudo favorecendo as forças.
Mas do outro
lado, o herói, o titã do nordeste, o guerreiro ímpar dos sertões. Imediatamente,
dos sete umbuzeiros estrondam furiosas as armas da cabroeira. Rápidos formam um
envolvente bloqueio. Procuram de todas as maneiras fazer frente aos da volante.
Experientes, calejados e preparados, os veteranos bacamarteiros, dentro da mais
perfeita ordem, procuram se alargar pelo cerrado, numa manobra altamente tática
e envolvente, deixando os atacantes sem saber para onde dirigir o combate.
Começam então a aparecer as primeiras dificuldades, aquele combate que parecia
dominado e à mercê dos soldados, está se apresentando como um difícil e
tremendo confronto.
O momento do
flagrante já passou. Estarrecidos, os soldados sentem que não conseguiram a
vantagem esperada e ainda se dão conta de que já não são os atacantes; sofrem
uma medonha investida. O ímpeto e ferocidade dos bandidos são inigualáveis.
Começam a ficar desnorteados. Aquilo que parecia ser o início de uma gloriosa
vitória começa a ser um terrível e inesperado pesadelo. A luta é de uma
atrocidade impressionante. Ali está a nata dos valentões sertanejos.
Verdadeiras feras. Verdadeiros suicidas.
Mané Neto, o
lendário vesgo de Nazaré, mostra-se realmente um valentão. A sua vaidade, a sua
soberba, na verdade são nascidas de seu temperamento de ferro e de sua
incomparável coragem. Liberato não deixa por menos, é também um gigante
sertanejo. Juntamente com o Mané Fumaça, formam uma dupla de desassombrados
comandantes que não sabem qual é o significado da palavra medo.
Mas apesar da
valentia dos comandantes e de seus soldados, o destino da batalha estava
selado. A derrota havia se afigurado desde o início da perseguição quando o
despeito entre as volantes havia decretado aquele desastre que, no momento do
tiroteio, estava se consumando. O verdadeiro e maior desastre foi a chegada dos
retardatários.
Com o
estrondar do pesado fogo eles reúnem suas últimas forças e correm para ajudar
os companheiros. Não contam com a experiência de Lampião e seu bando que se
haviam espalhado deixando os soldados sem saber para que lado atirar.
Quando também
se envolvem com a luta não discernem o alvo a ser atingido e, na ânsia de
socorrer seus companheiros, disparam naqueles que se aproximam, confundidos com
os inimigos.
Angustiados
percebem o fortíssimo e nutrido fogo em que se encontram. O desastre e a
tragédia se configuram. Desesperados, Mané Neto e Liberato tentam parar o fogo
cerrado de seus próprios comandados. O impossível está acontecendo,
desgraçadamente seus melhores homens estão dentro de um corredor mortal, cujo
tapete era o sangue de sua própria gente.
As baixas
começam assustadoramente a subir. Os primeiros ata-cantes estão sendo
dizimados, os homens de Mané Neto são os mais atingidos. Desenha-se o quadro
monstruoso de mais uma desastrada derrota.
Dos da Bahia
estão na linha da frente, além de Liberato, os valentes de Santa Brígida; Elias
Marques, seu filho Procidônio e Mané Véio, os quatro baianos brigam juntos. Um
pouco mais ao lado, brigam Mané Neto e João de Anízia, outros estão espalhados
e amparados nos troncos das árvores.
Os bandidos
estão enlouquecidos. Avançam como se fossem feras, atiram e adiantam, negaceiam
e progridem, gritam e atiram. Rifles e mosquetões estão em brasa, a sede é
torturante, os cangaceiros em cima, endemoniados.
De repente,
Elias é baleado, Procidônio pergunta se o ferimento é grave, o ferido é um
titã, quer lutar ao lado do filho. Responde que não. Foi apenas um ferimento no
braço. A luta continua, minutos depois Mané Véio vê Elias caído, corre e ampara
o tio colocando-o sobre suas pernas. Antes viu um cangaceiro como um louco
pular na frente dos atiradores, parecendo que queria pegar Mané Neto à
mão.
O bandido
está tão próximo que, sem dificuldade alguma, atira e o cangaceiro cai a seus
pés. Aproveita e da cabaça do próprio bandoleiro bebe água; retirando a caneca
dependurada na mesma cabaça, enche-a de água. Quando sorve o precioso líquido
sente um gosto muito grande de sangue. Não se incomoda. Como está morrendo de
sede torna a encher a caneca e aí vê a mesma se tingia com o sangue que pingava
da cabeça do cangaceiro morto: Sabonete.
O ferimento de
Elias, a princípio, aparentemente sem a menor gravidade, agora lhe retira a
vida. Nos braços de Mané Véio e de Procidônio, esvai-se em sangue. O filho
também está baleado em uma perna. A situação torna-se dramática e
desesperadora. Entre os nazarenos, a tragédia ainda é maior. Mané Neto e os
seus, debaixo de um verdadeiro massacre, assiste à queda de seus homens numa
constância alarmante.
Muitos feridos
e vários mortos. Já estão sem vida os irmãos Edelgício e Ercílio de Sousa
Novais, filhos de Conrado Ferraz Nogueira, da fazenda Ema, e irmãos de Aurelino
e Herculano. Também tomba sem vida o sargento João Cavalcante, conhecido como
João de Anízia da Ipueira, além de Antônio Benedito, Pedrinho e Manuel
Ventura.
Dos
cangaceiros morrem apenas Sabonete e Caatingueira. Aquela tão sonhada desforra,
aquela gloriosa vitória, torna-se em uma retumbante derrota, parecendo que as
duas volantes serão aniquiladas pelos verdugos de Lampião.
Mané Neto está
enlouquecido, não se conforma com o desastre e renega a sua própria sorte.
Alucinado, contempla seus homens estirados, sem vida naquela caatinga. Procura
pelo companheiro João de Anízia, o valoroso sargento de sua Nazaré, até que o
encontra morto no pé de uma braúna, não nota ferimento e nem sangue; só depois
de revirá-lo é que descobre o grande furo deixado pela bala em suas costas. Não
é possível que aqueles homens tão destemidos e valentes estejam alí sem vida. O
que dirá aos pais, irmãos, esposas e filhos quando para Nazaré retornar? Alí
mortos estão os homens que nasceram, cresceram e viveram sempre juntos, todos
praticamente de uma mesma família, todos enfrentavam e quase sempre eram
derrotados por um dos seus, por um dos que também viveram toda sua vida
naqueles campos secos e bravios dos sertões de Vila Bela.
A batalha do
Maranduba, como a de Serra Grande, foram os maiores pesadelos da história
romanesca daqueles que perseguiam os asseclas nordestinos e a total desmoralização
dos cabras de Nazaré, a partir desse fatídico dia, não mais conseguiram ímpetos
e nem ânimo para guerrear com Lampião e sua gente. Maranduba e Serra Grande
são, portanto, os dois maiores marcos, os dois maiores feitos da guerra
cangaceira."
* Do livro
MENTIRAS E MISTÉRIOS DE ANGICO - Alcino Alves Costa
http://meneleu.blogspot.com.br/2016/02/combate-do-fogo-da-maranduba.html
http://josemendespereirapotiguar.blogspot.com.br
http://blogdomendesemendes.blogspot.com