*Rangel Alves da Costa
A história de Maria Xiquexique, a cangaceira, acaso contada em detalhes pelos escritores e pesquisadores do fenômeno cangaço, certamente causaria um rebuliço danado, senão uma reviravolta sem igual sobre tudo o que até hoje foi contado.
Foi batizada com nome bastante costumeiro para uma sertaneja naqueles idos: Severina. Este o prenome da filhotinha nascida de pai sertanejo e de mãe cabocla de raiz indígena. Sapequinha a menina, desde muito cedo já despertava curiosidade quando ouvia falar em cangaço e cangaceiros.
Mas um dia, já chegada aos dezoito anos, a mocinha estava estendendo roupas no varal quando ouviu um rebuliço estranho pela povoação inteira e em seguida os gritos de seus pais para que saísse daquele quintal e os seguisse em correria fugindo dos cangaceiros.
Com efeito, a cangaceirada de Lampião nem bem havia adentrado o lugarejo e a povoação inteira já corria desesperada em busca de salvação. Numa gritaria danada, entre lágrimas e desmaios, as pessoas se debandavam como podiam em direção à caatinga oposta aos cangaceiros, em direção ao rio ou sem qualquer direção. O que importava mesmo era fugir.
Quanto mais os pais gritavam pedindo que a mocinha se apressasse mais ela dizia a si mesma que enfim havia chegado a hora de conhecer Lampião e seu bando. Decidida a ficar, gritou: “Corram ligeiro que já vou atrás!”. Seus pais se apressaram, de vez em quando olhando pra trás, mas ela nada de aparecer. Ela nunca fugiria de Lampião.
Danada a mocinha. Ao invés de se embrenhar debaixo da cama (e dizem que por ali não havia cama que não estivesse tomada de gente debaixo, tremendo, se mijando, nas agonias) o que fez foi abrir a porta de casa e se postar faceira bem no meio da rua poeirenta da povoação. E aí ficou esperando a chegada da cangaceirama.
De uma esquina foi surgindo aquele monte de gente diferente de tudo jamais avistado ali. Alguns cabeludos, com óculos escuros, mas todos vestindo um grosseiro mesclado azul, com cartucheiras trespassadas, embornais brilhosos e envernizados de sol, punhais, cartucheiras, armas nas cinturas e nas mãos. Com feições tingidas em queimor, certamente com mais de dia sem banho, mas com cabelos que pareciam na brilhantina e um perfume adocicado que fazia a ventania embriagar.
Enfim, os cangaceiros, disse ela, sem sair do lugar. Mas de repente percebeu que o grupo rumava em sua direção. À frente, tendo ao lado sua Maria Bonita, Lampião caminhou vagarosamente até ficar a dois passos de onde estava a mocinha. Foi nesta distância que levantou o punhal e colocou sua ponta bem debaixo do queixo daquela estranha no meio do tempo. Mesmo com o punhal na sua pele, ela continuou na firmeza de afrontar qualquer um.
Lampião sorriu, em seguida baixou a arma e disse: “Essa é das nossas”. Logo em seguida se aproximou um cangaceiro jovem, igualmente cheio de ouro nos dedos e na roupa, e pediu licença para segredar ao ouvido do Capitão. Em seguida este pronunciou: “Se for da aceitação dela, entonce pode levar pra ser sua companheira”. No passo seguinte, o cangaceiro puxou um anel do dedo e ofereceu à mocinha, que sorriu e logo cuidou de se enfeitar.
A mocinha já saiu dali com novo apelido. Aquela Severina havia ficado para trás e a que seguia no bando era Maria Xiquexique. E dizem que muito mais bonita do que a Maria do Capitão e todas as demais cangaceiras. E foi a beleza de Maria Xiquexique, aliada ao seu instinto de tempestade, que provocaria o maior rebuliço, senão a maior desordem, no mundo do cangaço, sendo uma história dentro da própria história, mas que até hoje ninguém teve coragem de contar.
Entrando no bando para ser companheira de Tiziu, não demorou muito e Maria Xiquexique começou a se engraçar por Ingazeira, que, aliás, era companheiro da cangaceira Veremunda. Mas depois que Ingazeira envenenou a cuia de Tiziu e despachou Veremunda pra casa dos pais, a danada da Xiquexique simplesmente disse-lhe que com ele só ficaria se tomasse coragem e fosse perguntar a Lampião por que a olhava tanto e de um jeito tão safado.
Tudo mentira. Tudo para ver o circo pegar fogo. E achando pouco, eis que a Xiquexique começou a espalhar que toda cangaceirama estava morrendo de amores por ela. As mulheres se rebelaram contra seus companheiros e estes, enraivecidos com os demais cangaceiros, começaram a puxar armas para dar um fim de vez àquela pendenga toda. Foi quando Lampião pulou no meio e gritou: “Chamem essa Xiquexique aqui, pois foi ela quem virou a cabeça de todo mundo e é ela a responsável por tudo isso. Vou arrancar a cabeça dessa urtiga agora mesmo!”.
Mas arrancou não. Arrancou nada. Depois de deixar o fuzuê armado, o sangue fervendo na panela cangaceira, Maria Xiquexique saiu de fininho e tomou o caminho do mundo. Até hoje ninguém sabe onde a danada se meteu. Dizem até que ela nunca existiu.
Escritor
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