Por Rangel Alves da Costa*
Não sei se verdade, mas conto o
que me contaram...
De moço alto, bem apessoado, com a força dos anos e a disposição dos
destemidos, o que se tinha então era um corpo envelhecido, alquebrado, tomado
das dores e marcas da idade. Além, logicamente, das ferraduras na alma e das
cicatrizes das batalhas sem fim.
Mas quem era esse homem já tão carcomido pelo tempo, com feição de mandacaru
esturricado, levando seu tempo em devaneios, fantasias e assombrações? Quem era
esse velho senhor esquecido nas distâncias do mundo sertanejo, tendo agora como
consolo a solidão num velho casebre de barro e cipó, ameaçando desabar a
qualquer instante?
A História não permite revelar seu nome, nem o seu nome familiar nem o seu
apelido nas lides debaixo do sol. E assim porque homens existem que devem ser
eternizados nos seus momentos de pujança na luta, ainda que a sua batalha
continue sendo incompreendida e quase nada tenha valido senão para a própria
História.
Mas muito posso revelar sobre o tal homem, sobre o velho solitário, o afligido
e desvalido sertanejo. Era um cangaceiro. E digo que era um cangaceiro – e não
ex-cangaceiro - porque igualmente ao soldado japonês que permaneceu
solitariamente ilhado durante quase trinta anos e após ser encontrado ainda
achava que a 2ª Guerra Mundial continuava sendo travada, aquele velho continuou
desconhecendo o desfecho final daquele 28 de julho de 38, lá pelas bandas da
Gruta do Angico.
Na verdade, ele era um dos integrantes do bando de Lampião que havia acoitado
no Angico depois da longa caminha desde as terras baianas. E se salvou por
pouco, ainda assim lanhado e completamente atordoado sobre o inesperado
acontecido. Nunca soube da volante comandada por João Bezerra cercando o coito
nem do que aconteceu ao final, pois recordava apenas ter despertado de uma
noite de pesadelos já com o barulho e a gritaria por todo lado e a bala zunido
faminta.
Ao levantar já de arma à mão e procurando avistar o inimigo, não tinha tempo
nem de mirar. Atirou e atirou muito, porém não sabe se acertou algum inimigo,
mandacaru ou folhagem de catingueira. Quando ouviu alguém gritando que haviam
acertado Maria e o Capitão e em seguida dizer que “arriba”, então correu
abaixado, se protegendo nas pedras e nos tufos de mato, em qualquer direção. O
“arriba” era para correr dali, e assim fez. O que teria deixado pra trás?
Não sabia que Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros haviam morrido. Muito menos sabia que aquele cerco de emboscada havia selado o fim do cangaço. Não sabia que os sobreviventes do bando ou tinham fugido ou tinham se entregado às forças policiais. Não sabia que a sua luta tinha terminado ali e nem que não fazia mais parte de bando cangaceiro. Por isso mesmo continuou cangaceiro pelo resto da vida. Mas por que assim aconteceu?
Na sua fuga do campo sangrento, adentrando cada vez mais na mataria, sequer sabia
quantas léguas tinha percorrido até desabar de cansaço e dor debaixo de um
umbuzeiro. Acordou atordoado e se perguntando o que fazia ali sozinho, quando
toda cangaceirama deveria estar arranchada ao redor. Levantou num esforço
danado e foi passando a vista pelos lados, de arma em punho, tentando avistar
qualquer coisa. Avistou no alto um carcará e começou a entristecer e a se dar
conta de que estava sozinho. Mas o bando cangaceiro vai logo aparecer, dizia a
si mesmo. E tinha certeza disso.
Esperou ali durante dois dias e duas noites. Então decidiu entrar na mataria e
seguir andando sem destino, sempre com a certeza de que a qualquer instante o
bando seria avistado e o grupo novamente reunido para a continuidade da luta.
Mas nada era avistado senão um sertão parecendo lutuoso, entristecido, tomado
de espanto. Desalento era o seu nome naquele desvão de vida e caminhada.
Desalentado, porém sem perder a obstinação pelo seu compromisso de mundo. Ora,
era cangaceiro e nada lhe causaria fraquejamento. E foi com tal determinação
que entrou num velho casebre abandonado naquelas distâncias sem fim.
E no velho casebre de cipó e barro foi fazendo moradia, sempre esperando o dia
do reencontro com o bando do Capitão. Sentia uma saudade danada de suas ordens,
de seu olhar atravessado dizendo tudo. Mas o tempo foi passando sem nenhum
sinal de cangaceiro ou volante. Tudo estava estranho demais. Mas aquele
silêncio poderia ser rompido por uma chuva de balas a qualquer momento. Por que
os cangaceiros estavam por ali e a polícia também. Assim imaginava.
Na ausência do bando estaria ali para lutar com quem aparecesse. E por isso
mesmo continuava usando farrapos da antiga vestimenta e empunhado um mosquetão
sem valia. Já estava tomado de insanidade, numa loucura que foi se achegando
como volante traiçoeira. Até que um dia, já envelhecido e sem qualquer noção da
própria existência, juntou forças e se meteu caatinga adentro gritando que iria
se juntar ao bando. “Capitão, Capitão, vim logo que recebi o recado. Cadê todo
mundo que num vejo ninguém?”.
E ninguém sabe que fim levou o velho cangaceiro. Não retornou ao casebre nem
foi encontrado na mata. Somente aquele carcará sabe o seu destino. Somente o
carcará tem o seu destino.
Poeta e cronista
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