Por Antonio Corrêa Sobrinho
AMIGOS, vejam
que texto interessante este, que colho na edição de 24/12/1945, do "Diário
de Pernambuco", literatura das boas, o registro de um encontro musical, já
passados os dias do cangaço, de dois amigos: o veterano soldado de volante,
Euclides Vieira de Souza, e o ex-cangaceiro de Lampião, Nicodemos Morais
(Nicó).
A ZABUMBA E O
CANGACEIRO
Por Luiz
Cristóvão dos SANTOS
Inajá é uma
cidadezinha da ribeira do Moxotó. O casario se estende no plano, no centro a
Matriz e no anglo da praça um tamarindo velho. De tarde, o vento levanta
poeira, faz barulho nas janelas, que estrondam, joga areia nos olhos. E ao
poente da rua, numa curva macia, o rio sertanejo envolve a cidade amorosamente.
Carnaúbas farfalham nas margens, os leques gentis misturados nas garrancheiras
das quixabas. E imensas caraibeiras, cobertas de flor amarela, emprestam à
paisagem cinzenta uma nota de estranha e poética beleza. Um céu de ouro vivo
sobre a terra queimada. Não conheço nada mais belo nestes mundos do Moxotó, do
que as velhas caraibeiras floridas. De longe, parecem tochas ardendo. De perto,
ah! Buquês rescendentes, compactos e doirados, na paisagem combusta. À sombra
amiga, as cabras esperam que o vento despetale as flores. A seca estiola os
campos e mata os rebanhos. Então as caraibeiras oferecem a flor amarela para a
fome dos animais. Aos bodes e às piranhas. Poço do Moxotó, de água fria e
azulada, a cuja margem flora a caraibeira, guarda a traição das piranhas
vorazes. Piranhas são doidas por flor de caraibeiras. Ficam à tona, agressivas
e numerosas. E ai de quem mergulhar na água fria e gostosa.
Um dia desses, terminada a audiência, o doutor promotor foi me mostrar a
cidade. O Dr. Juiz ficou no cartório despachando a papelada, serviço eleitoral,
na certa. Foi quando ouvi o ronco da zabumba. A “Esquenta mulher” parou à porta
da Matriz. Vieram uns bancos singelos. Se não me engano era véspera de festa de
santo. Apareceu uma garrafa, um copo distribuiu a “bicada”, e a zabumba atacou
a “Saudação do Santo”. Foi chegando gente. Sentei-me num tamborete e fiquei
olhando a “retreta”. Ao meu lado, empertigado, mãos nos bolsos, quepe em cima
do olho, o cigarro apagado no canto da boca, um soldado era todo atenção.
Depois, terminada a “peça”, ele pediu:
“Mestre Nicó, ajeita os meninos para a “Caçada da Onça”.
Houve uma pausa. Nova “bicada”. E a zabumba atendeu o pedido do praça. Era uma
espécie de toada, na qual, de repente, os pífanos ficavam sozinhos, imitando o
latido e o grunhido dos cães. O bombo roncava feito onça ferida e o tarô
acelerava como pés de animais em disparada. Aquele é o maior número da zabumba
de Inajá. Os músicos capricham. Antônio Matias no bombo, Pedro Clarindo na caixa,
Nicodemos Morais (Nicó) e Antonio Ferreira nos pífanos. Um baião, toadas e até
uma valsa arrastada e dolente. Então me disseram uma coisa enorme. Aquele
soldado era Euclides Vieira de Souza, veterano das volantes, herói do “fogo” de
Cachoeirinha, de Favela e do Poço Branco, “cabra” valente da escola do coronel
Lucena, de corpo furado de bala no fogo de Olho D’água, sob o comando de Optato
Gueiros, com 25 anos de caserna, dos quais a maior parte passou nas volantes,
tiroteiando Lampião, arriscando-se, varrendo caatingas, comendo farinha com
rapadura e chupando raiz de umbu, esquentando o “papo-amarelo” nos tiroteios, e
hoje, ali sem uma fita de promoção, herói anônimo e silencioso, esperando a
morte tranquilamente depois de tantos anos de vida arriscada, esquecido dos
governos, vendo todo sando dia promoção para muitos que não fizeram nem metade
do que ele fez.
E “mestre” Nicó?
Ah! “mestre” Nicó? Era Nicodemos Morais – baixo, moreno, atarracado, cara
quadrada – nem mais nem menos, o Nicó do grupo de Lampião, que deu trabalho às
volantes, a Manoel Neto, ao coronel Lucena, a Optato Gueiros a Higino, e, em
1927, em companhia de outros “cabras”, caiu prisioneiro no fogo de Vila Bela,
curtiu cadeia, deu com os ossos em Fernando de Noronha e agora ali estava, os dedos
calejados do mosquetão e do rifle-cruzeta, amaciados no trato do pífano, mestre
de zabumba e artista querido do povo. Depois, já quase noitinha, eu vi o
soldado Euclides e mestre Nicó recordarem as façanhas passadas.
Desapareceram o volante e o cabra.
Naquele momento eram dois pacatos sertanejos, dois filhos de Deus, que andaram
por caminhos diversos, trocaram tiros de rifle, na fúria dos tiroteios e ali
estavam na tarde tranquila, no pátio da igreja, o vento do Moxotó varrendo a
rua e trazendo a lembrança dos encontros sangrentos e das escaramuças,
irmanados pela humilde música da zabumba de Inajá.
Arcoverde,
dezembro de 1949.
"Diário
de Pernambuco" - 24.12.1949
https://www.facebook.com/groups/lampiaocangacoenordeste/permalink/807766732765606/
http://blogodmendesemendes.blogspot.com