“EXISTIU UM DIGNO SERGIPANO OBSCURO DE ORIGEM,
POIS QUE NASCERA NUM ALMADRAQUE DE SENZALA COM O ESTIGMA IGNOMINIOSO DE
ESCRAVO, QUE BEM ALTO SE ELEVOU”
“EM SERGIPE É
ELE TOTALMENTE OLVIDADO OU TALVEZ DESCONHECIDO. FOI ELE O NEGRO QUINTINO DE
LACERDA”
Zozimo Lima
Conheçam a
história do herói abolicionista sergipano, nascido em Itabaiana, o ex-escravo
que liderou o quilombo do Jabaquara, foi o primeiro vereador negro do Brasil e
recebeu a patente de Major honorário do Exército Nacional; participou
ativamente de, pelo menos, dois grandes eventos nacionais: a Revolta da Armada
e o processo de desestruturação do sistema escravista no Brasil, sendo
considerado o mais atuante fomentador da abolição no litoral paulista.
No ano do
centenário de QUINTINO DE LACERDA, o jornalista e historiador ZOZIMO LIMA,
publicou, nas páginas do extinto jornal "Correio de Aracaju", a breve
biografia, em sua homenagem, que trago a seguir.
QUINTINO DE
LACERDA
O sergipano,
embora mal nascido, afloradas nas primeiras manifestações da inteligência,
sedento de triunfo, procura sempre gasalhado longe de seu berço e raramente
recua ou tomba na peleja sem agitar na destra os florões simbólicos da vitória.
Aqui, na terra
em que veio à luz da vida, é que dificilmente ele consegue alçar o voo pouco
além do da coruja.
Possuidor de
qualidades excepcionais que propendam para as letras ou para as artes, contra
si levanta-se a maioria composta de medíocres, incapazes e invejosos.
Razão tinha o
douto filósofo e sociólogo conterrâneo, autor da HISTÓRIA DA LITERATURA
BRASILEIRA, quando, da tribuna da Câmara Federal, em memorável discurso na
sessão de 7 de abril de 1902, afirmara: “Onde encontrardes uma inteligência
sergipana a brilhar em qualquer sentido, em qualquer das manifestações do
espírito, ficai certos de que essa inteligência, esse talento teve de, coagido,
emigrar da pátria”.
É uma verdade
a afirmativa do ilustre sergipano, reconhecida por eminentes personagens de
outras terras do Brasil. O saudoso Barão do Rio Branco, tivera para nossa terra
a denominação de “cárcere do gênio”, e o notável estadista Nilo Peçanha, que,
também, quando lhe permitiam os folgares da política partidária, se entregava
ao arroteio das boas letras e da História, chamou-a “mãe da espiritualidade”.
Existiu um
digno sergipano obscuro de origem, pois que nascera num almadraque de senzala
com o estigma ignominioso de escravo, que bem alto se elevou elevando a sua
gleba, em longínqua província brasileira onde tem memória veneranda perpetuada
em magnífico mausoléu ereto pelo povo que muito o quis e o admirou pelo seu
civismo incomparável.
Em Sergipe é
ele totalmente olvidado ou talvez desconhecido.
Foi ele o
negro Quintino de Lacerda, grande pelo amor aos seus desgraçados irmãos de
cativeiro e maior ainda pelo destemor com que, afrontando as iras dos
potentados escravocratas do Império, organizara por determinação de figuras
notáveis da campanha abolicionista de São Paulo, um quilombo de pretos fugidos
nos arredores da cidade invicta de Santos.
Quintino de
Lacerda nasceu em Itabaiana, neste Estado, no ano de 1855, não se sabe o dia
certo, e ali viveu até 1874, quando foi vendido, aos 19 anos, para Santos, pelo
seu senhor, o major Antônio dos Santos Leite, pai do atual e conhecido livreiro
desta praça Sr. Agripino Leite.
Moleque ativo,
simpático, afável, inteligente, dócil, afeiçoara-se à família de seu senhor o
Cel. Antônio de Lacerda Franco, de quem adotara o sobrenome, e com as suas sinhás-moças
estudara os rudimentos da leitura e da escrita após os fazeres da cozinha,
conseguindo, depois de oito anos de serviços como escravo, a carta de alforria,
se bem que fosse por toda Santos considerado um liberto, com os privilégios da
consideração a poucos brancos concedidos pelo seu riquíssimo e fidalgo
possuidor.
No auge da
campanha abolicionista em que batalhavam com denodo e fé um ex-escravo já
ilustre, Luiz Gama e mais Antônio Bento, João Otávio, Lobo Viana, Augusto
Bastos, Robim César Américo Martins, Afonso Veridiano (que eu conheci em 1911
no exercício de tabelião e com ele mantive estreitas relações), Vicente de
Carvalho, Silvério Fontes (sergipano, pai do grande poeta paulista Martins
Fontes), Martin Francisco, Jorge Montenegro, Geraldo Leite, Ricardo Pinto e
muitos outros vitoriosos idealistas, o preto de Itabaiana Quintino de Lacerda,
que então era capataz de turmas nos armazéns recebedores e exportadores de
café, entre os seus companheiros fazia intensa propaganda, liderava o movimento
libertador, alcançando com a sua catequese cívica prestígio extraordinário. A
massa proletária seguia-o cegamente.
A sua
influência e poder de sedução eram tão grandes, o seu nome era tão querido e
respeitado, tão proclamada a sua audácia, que os abolicionistas de Santos, não
podendo conter mais em suas residências particulares o número crescente de
negros fugidos do chicote dos ferozes fazendeiros, dirigiram-se lhe, por
intermédio do seu ex-senhor e amigo Lacerda Franco, pedindo-lhe organizasse e
assumisse o comando do reduto estabelecido nas próximas matas de Jabaquara.
É agora que
começa a obra que devia elevá-lo às cumeadas da fama que o sagrou cavalheiro da
cruzada santa da libertação.
A história dos
Palmares repete-se, sem o drama trágico da derrota nas planícies e alcantis que
formam o inexpugnável reduto da Jabaquara.
O negro filho
de Itabaiana desdobrou-se em atividade, caminhou resoluto para frente sem temer
os perigos que se lhe ofereciam na campanha. As palavras inflamadas, candentes,
destruidoras de Silva Jardim e José do Patrocínio, que ele ouvia nos comícios
da Praça dos Andradas e no Teatro Guarani, davam-lhe estímulo e forças de um
Anteu. O negro destemeroso tomava agora parte em todas as conspirações
libertadoras, iludia a vigilância da polícia e da tropa de linha postada nas
estradas para capturarem os fugitivos, subornava os capitães do mato, subia e
descia serras e montanhas, galgava Monte Serrate e Cubatão, fazia
reconhecimentos perigosos nas estradas do Vergueiro, e assim, sempre vigilante,
noite e dia, povoava o quilombo da Jabaquara, que, na sua ausência, era
guardado por outro negro valoroso conhecido por pai Felipe.
Santos, que
considerava abolida do seu seio, desde 1886, a escravidão, era agora o refúgio
dos negros que de modo próprio se davam à liberdade, fazendo longas e
arriscadas caminhadas através das matas em busca do asilo que lhes preparava
Quintino de Lacerda.
Quando, a 13
de maio de 88, chegara a Santos o decreto que extinguia o cativeiro foi como se
propagasse a loucura coletiva entre seu povo. Bimbalhavam os sinos das igrejas,
apitavam as embarcações surtas no porto, homens, mulheres e crianças de todas
as classes e categorias sociais, gritavam e choravam de contentamento.
Fechara-se o comércio. Toda a população negra de Jabaquara, composta de 2023
cativos com Quintino à frente, veio às ruas cantando e empunhando palmas e
estandartes.
À noite houve
luminárias e passeatas e festas populares que se prolongaram por dez dias.
No sexto dia,
narra Carlos Vitorino nas suas Reminiscências, Quintino recebia tocantes
homenagens promovidas por parte das comissões organizadoras dos festejos, como
justo prêmio que cabia ao abolicionista fervoroso. E ele era, agora, ídolo do
povo santista. Evaristo de Morais em substancial trabalho sobre a abolição
focaliza a ação do negro sergipano que foi Quintino de Lacerda.
Passada a fase
árdua da obra redentora, trabalhava-se, agora, em abater o trono.
Com esse fim
Quintino organizou o batalhão Silva Jardim, no qual fora investido no cargo de
seu supremo chefe, no posto de capitão. Com a proclamação, pouco depois, da
República, Quintino é promovido a major honorário por merecimento. As patentes
eram distribuídas aos mais dignos, capazes.
Candidatara-se
ele à vereança municipal e foi eleito. Alguns colegas de representação, por
preconceito racial, asseveram uns, por iliquidez do pleito, afirmavam outros,
impedem a entrada de Quintino no recinto do Conselho. Quintino queda-se no seu
posto, surdo aos protestos de seus pares. Os dissidentes chegam a um acordo
honroso, mas procede-se a nova eleição dias depois, sendo reconduzido o
abolicionista sergipano.
As classes
trabalhadoras e o comércio prestaram-lhe, por mais esse triunfo, que
demonstrava a sua popularidade indiscutível, significativa manifestação de
apreço.
A influência
política e moral de que dispunha Quintino de Lacerda revertia em proveito dos
seus camaradas de jornada que não tinham amparo.
Filantropo,
suas portas sempre estavam abertas aos desgraçados, aos náufragos de todas as
travessias por entre tormentas e procelas da existência. Por isso a sua voz era
sempre ouvida com atenção e ao seu apelo não lhe fugiam os votos nos renhidos
prélios eleitorais.
Assim, por
exemplo, quando em 1891 e 1892 declararam-se em greve dois mil trabalhadores no
porto de Santos, foi o então major Quintino quem conseguiu voltassem os
paredistas pacificamente ao trabalho, recebendo, por esse serviço relevante,
uma pública e significativa homenagem do comércio.
O despeito dos
seus colegas de representação no Conselho do Município mais uma vez
trouxera-lhe momentos de desgostos.
Mas ele era um
homem forte, de têmpera de aço, limpo de caráter e dominado pela mística de
Deus e da Justiça.
Certa feita
descobrira uma conspiração entre os camaristas. Puseram Quintino violentamente
para fora do recinto e do ocorrido telegrafara ao presidente Bernardino de
Campos, que logo interveio com imediatas providências a bem da ordem. E
Quintino continuou a fazer parte do Conselho até 1896.
Terminado o
seu mandato legislativo e não querendo mais tornar às lides partidárias da
política, recolheu-se ao lar pobre mas honrado, recebendo por essa ocasião
calorosa ovação do povo que sempre o acompanhou com abnegação nas campanhas em
prol da redenção da raça negra.
Morreu
Quintino a 13 de agosto de 1898. O seu enterro teve as pompas fúnebres a que
têm direito os vultos singulares que se enobrecem e passam a enriquecer a
História.
No cemitério
do Paquetá descansam os seus despojos sob grandioso monumento levantado pela
gratidão dos filhos da terra de Braz Cubas.
Eu lá estive
várias vezes contemplando-o com cívica devoção e comigo mesmo lamentando que,
enquanto naquela grande e orgulhosa terra um negro adventício sergipano recebia
as honras que só se tributam a quem tem mérito real, Sergipe, a sua e minha
terra, jamais teve a lembrança de lhe perpetuar o nome ao menos numa escura via
pública de subúrbio.
"Correio
de Aracaju" – 23/02/39
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