Seguidores

terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

AMIGO É UMA PALAVRA QUASE MORTA

Por Alcino Costa

 

Alcino Costa e Juliana Ischiara
 
Amigo é uma palavra quase morta. Palavra que praticamente já caiu no mais absoluto desuso no meio da sociedade brasileira destes novos tempos. Pobre daquele que ainda guarda em seu sentimento as virtudes da afeição e do apreço. Infeliz é aquele que carrega, nos dias atuais, a sensibilidade de ser sincero, cortês e parceiro leal das horas boas e ruins.

Ser amigo nestas novas eras da modernidade é ser ultrapassado, cafona e conservador. É ser rotulado de alguém que com sua pouca ou nenhuma inteligência não soube acompanhar as mudanças, transformações e evoluções do viver dos povos da era das grandes conquistas e notáveis feitos da ciência e da tecnologia. É assim que o mundo da inversão de valores em que vivemos classifica aqueles poucos que ainda guardam em seus espíritos o ideal sublime da confiança e da fidelidade.
Ser confiável, procurar ser digno e honrado, buscar normas que demonstre grandeza de caráter são valores que não mais merecem nenhuma deferência no mundo cão e medonho em que vivemos. Coitada daquela pessoa que se preocupa em ser correta em suas atitudes e em seus atos, pois elas não são levadas em consideração e nem classificadas como merecedoras de crédito e respeito. Vivemos num ambiente de extrema insensatez que já não permite que um ser humano arroste todos os percalços para ficar ao lado de um amigo quando ele caiu e se encontra na desgraça e jogado na rua da amargura, no abandono e no desprezo.


Contrapondo a esses valores do companheirismo e da lealdade entre os homens, existe, desde muitos anos, o poder maligno da subserviência, da mentira e do fuxico que, numa guerra infinda, vem tentando – e conseguiu – se impor e vencer a sinceridade e a amizade, jogando estes valores para a valeta onde vivem aqueles que são catalogados como antiquados e ignorantes.

Subserviência, mentira e fuxico são três flagelos que aprisionaram a dignidade e o respeito humano, jogando-os nas masmorras da insanidade daqueles que aceitam essas desgraças e as transformam em bandeira de grandiosa relevância e que tremulam nos gabinetes e escritórios, palácios e prefeituras; enfim, em todos os segmentos sociais que sucumbiram bisonhamente perante este poder maléfico que tem a magia de fazer com que a mentira se torne verdade; o dissimulado em pessoa verdadeira e acreditada; o desonesto em alguém sincero e honrado; o falso e traidor num cidadão justo e respeitável.

É muito fácil distinguir os portadores dessas maléficas desditas. Se você tem em seu poder algum cargo ou posição de destaque em qualquer setor da sociedade, o bajulador procura se encostar de mansinho, cheio de agrados e boas maneiras. A armadilha é simples, porém de uma eficácia impressionante. Conforme o aparecer das ocasiões o “cheléleu” aproveita os momentos propícios para jogar a isca tão cuidadosamente preparada. Quando isto acontece o caminho está aberto para seu projeto danoso.
Se o puxa-saco for do interior a tática é manjada mais que tem ultrapassado com certa facilidade e grande êxito todos os obstáculos; conseguindo, assim, excelentes resultados. A primeira providência é presentear “o chefe” com um queijo, um litro de mel, alguns quilos de camarão ou pitu, e tudo mais que possa ser do agrado do paladar e do ego do detentor do poder ou de alguma influência nos meios políticos e sociais. Quando isto ocorre à meta foi alcançada e o adulador consegue coisas inacreditáveis, especialmente se essas coisas tenham como finalidade perseguir e, muito mais que isso, destruir pessoas e adversários políticos.

É assim que o fuxiqueiro age. Com muito jeito e carinho o chaleira afaga o ego e a vaidade daquele que ao subir no pódio das grandes conquistas políticas e sociais entra também na bolha fantasiosa e fantástica da grandeza e da soberbia. É certo, o detentor do poder voa extasiado pelo mundo colossal, falso e imaginário dos sonhos e das ilusões. E nesse transe visionário – de humano para divindade –, jamais irá perceber que o adulador é uma serpente que tem como único objetivo inocular o seu terrível e mortal veneno em seus anseios de grandeza e com ele espalhar a discórdia dentro das hostes de uma estrutura política ou social. E lá, do alto de sua frágil e falsa bolha, aquela autoridade se rende ao encanto da adulação, do fuxico e da mentira.

Ser puxa-saco é um ofício antigo. Nos idos de Jackson do Pandeiro, o nosso célebre “Rei do Ritmo” já cantava sobre esse reles ser humano. Cantava assim:

Vou arranjar um lugar de puxa-saco
Que puxa-saco tá se dando muito bem
Tô querendo é chalerar, eu não quero é trabalhar,
E fazer força pra ninguém...

Aqui das lonjuras do Sertão do São Francisco, dos ermos caatingueiros do meu Poço Redondo, eu rogo a Deus que através de Vossa infinita bondade faças com que as autoridades, os poderes constituídos, todos enfim, procurem se livrar da maldição que carrega em seu bojo as pestes chamadas bajulação, mentira e fuxico. É com infinita tristeza que carrego a certeza de que nos dias atuais ser amigo é ser uma besta quadrada e ser bajulador, mentiroso e mexeriqueiro é ser confiável e acreditado.

Publicado no dia 13 de fevereiro de 2007, no JORNAL DA CIDADE, Aracaju 
Alcino Alves Costa - O Caipira de Poço Redondo

http://cariricangaco.blogspot.com/2011/01/amigo-e-uma-palavra-quase-morta.html

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

QUE VENHA O ESPETACULAR ANO DE 2023!

 

Se o ano de 2022 foi extraordinário com as edições em Paulo Afonso, Piranhas, Serra Talhada, Calumbi e Bom Nome, o ano de 2023 promete com uma agenda realmente ousada e sensacional, vem ai: Princesa Isabel, São José de Princesa-Patos de Irerê, Triunfo, Mossoró, Campina Grande, Ingá e muito mais...

 

Manoel Severo, curador do Cariri Cangaço

O Cariri Cangaço volta a Princesa e Patos de Irerê, na Paraíba; marco espetacular do Território Livre de Princesa, as ligações perigosas do Coronel Zé Pereira, Marcolino e Lampião, o lendário Casarão de Patos; e chega pela primeira vez em Triunfo, uma das cidades mais bonitas de Pernambuco e do Brasil; cheia de história, tradição e cangaço, numa das mais aguardadas agendas do ano Cariri Cangaço, num consórcio inédito entre os estados da Paraíba e de Pernambuco. Será entre os dias 23 a 26 de março de 2023. 

No mês de junho o Cariri Cangaço desembarca pela primeira vez no estado do Rio Grande do Norte e na emblemática Mossoró, no oeste potiguar; terra do Chuva de Bala e do ataque de Lampião em 13 de junho de 1927; a trama do ataque, o cerco, a resistência sob o comando de Rodolfo Fernandes, a morte de Jararaca - o santo cangaceiro. Aqui seremos recebidos pelo Fórum do Cangaço da SBEC e pelos Diálogos Paulo Gastão, numa iniciativa extraordinária entre a SBEC e o Cariri Cangaço. Será entre os dias 09 a 13 de junho de 2023. 

Antônio Silvino, outro emblemático personagem da saga sertaneja do cangaço, com trajetória também marcante e longeva nas caatingas nordestinas, mas pouco estudado. Em novembro o Cariri Cangaço traz até você pela primeira vez; a partir da Serra da Borborema e das cidades de Campina Grande e Ingá; a extraordinária história do Rifle de Ouro - A Saga de Antônio Silvino, numa inciativa ousada e inédita. Será entre os dias 30 de novembro a 02 de dezembro.

Cariri Cangaço, Território de Grandes Encontros, sempre...

Agora é com você, vem com a gente; Avante!

Manoel Severo, curador do Cariri Cangaço.

https://cariricangaco.blogspot.com/2023/02/que-venha-o-espetacular-ano-de-2023.html

http://blogdomendesemendes.blogpsot.com

PROVANDO REQUEIJÃO

Clerisvaldo B. Chagas, 27 de fevereiro de 2023

Escritor Símbolo do Sertão Alagoano

Crônica: 2.842

O mundo está sempre evoluindo em todas as áreas de atuações que conhecemos. É inevitável, porém, as comparações. E entre as comparações do antigo e do presente, têm as melhoras e as pioras, tudo exposto à mesa e ao gosto do freguês. Todos agem para a criação de coisas mais práticas e capazes de abastecer o planeta. Deixando de lado todos os complexos das tecnologias, vejamos algo simples com inspiração no campo e na sabedoria da vovó. Trata-se do famoso requeijão, uma iguaria original sertaneja, modificada por invenção mais recente. Existe no campo o queijo normal como o conhecemos, tal o queijo de coalho e o de manteiga ou de fogo. È que o queijo de coalho não vai ao fogo e até recomendado para a saúde como queijo branco.

Segundo os mais velhos, o requeijão era uma espécie de queijo de manteiga ou de fogo, geralmente feito para ocasiões especiais e de durabilidade. Não era raro encontrá-lo nas bancas de feiras das cidades sertanejas de Alagoas. Os nossos antepassados   desenvolveram um método no fabrico do produto em que o miolo continuava normal como o conhecemos, todavia o seu envoltório ou sua casca era robusta, muito grossa mesmo. Era bastante utilizado para as grandes viagens em que o nordestino passava 15 dias em viagem a São Paulo, rodando em caminhão pau-de-arara. Também utilizado nas viagens de romarias ao Juazeiro do Norte para visitas ao padre Cícero Romão Batista. Quinze dias a pé cortando caminhos de pedras e areia. Nos malotes, a paçoca e o requeijão de companhia.

E sobre a paçoca, também era diferente dessas coisas que vendem em mercadinhos com nome usurpado. Graças a um senhor, falecido recentemente, segundo a mídia, foi inventado o requeijão pastoso e que atualmente é vendido em potinhos nas redes varejistas. É prático sim, tira com uma faca e se passa no pão seco. É bonito? É. Mas não tem gosto de nada. Mesmo assim, dizem alguns especialistas que é o melhor para a saúde entre a manteiga e a margarina. Não sabemos informar, entretanto, se o requeijão à moda da vovó ainda é fabricado e vendido em nossos sertões.  De qualquer modo, fica o aqui o registro de uma tradição nordestina que talvez já tenho morrido. Sobre a paçoca falaremos depois, como filha da mesma fonte do falado requeijão.

http://clerisvaldobchagas.blogspot.com/2023/02/provando-requeijao-clerisvaldo-b.html

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

CASO PAÇOCA

 Clerisvaldo B. Chagas, 28 de fevereiro de 2023

Escritor Símbolo do Sertão Alagoano

Crônica: 2.845

Continuando a palestra de ontem, vamos falar da paçoca que foi atrelada à matéria apresentada. No geral, podemos dizer que a paçoca de hoje, comprada em mercadinhos, é uma pasta básica de amendoim com farinha de milho, apresentada em tablete tipo cocada. Pode ser uma pasta de amendoim moído ou de amendoim inteiro grudado à massa. Isso já era costume do fabrico da paçoca caseira de outras regiões, não da nossa, e que passou a ser industrializado. Assim leva um susto danado, o   sertanejo diante da surpresa diferente da roça e também com nome análogo. Pois, ainda lembrando as explicações do mais velhos, vamos novamente registrar essa curiosidade que na época seria uma verdadeira delícia no Sertão das Alagoas.

A paçoca – cuidado para não transformar o nome num palavrão – era feita com carne de sol, farinha de mandioca e queijo, tudo misturado e batido num pilão de pau, daqueles brutos feitos com madeira de lei e com, aproximadamente, 70 centímetros de altura. A batida se dava com a chamada mão de pilão, e que fazia parte do conjunto do artefato. Essa comida delícia era mais usada nas longas viagens a pé ou a cavalo que era o transporte da época. Quanto ao pilão era de uso obrigatório na zona rural e com ele se fazia quase tudo, pilava café, arroz com casca, milho e tudo mais que viesse à cabeça. O difícil era fazer o pilão apenas com as ferramentas do período pelo artífice roceiro habilidoso. Já ouviu falar em mulher da cintura de pilão? É coisa da época.

Assim já vimos muitas iguarias nossas aproveitadas e transformadas pela indústria. Bem assim são os brinquedos de pau, de mola e de pano que comprávamos nas feiras e nos satisfaziam. As fábricas copiaram tudo e tivemos os brinquedos de volta com novas roupagens. Quanto ao pilão de madeira bruta, também foi copiado para miniaturas utilizadas nas cozinhas e nos enfeites de qualquer apartamento; utilitário para pilar tempero. E mesmo assim, o tempero já vem pronto para o uso. É por isso que existem os museus que retratam o presente para netos e bisnetos do futuro.

Desculpe o jeito de provocar água na boca, mas lembrar o saboroso café de pilão ou café de caco, é coisa inevitável.


http://blogdomendesemendes.blogspot.com

SANGUE NO SERTÃO E O FANATISMO DA PEDRA DO REINO

 Por Narciso Dias


No dia 24 de junho de 1578, um Exército de 24 mil portugueses, comandado pelo seu rei dom Sebastião I, partiu de Lisboa e após quase um mês navegando pelo Atlântico em 847 embarcações chegou a Tânger, no Marrocos. Dali marchou por sete dias até a cidade de Alcácer-Quibir. O objetivo era atacar, com seus cavaleiros, lanças, espadas, arcabuzes e canhões, o rei marroquino Abd al-Malik. A vitória mataria dois coelhos: afastaria as ameaças dos muçulmanos ao litoral português e o país seria o protagonista de um processo de cristianização e colonização do norte da África.

Mas o desastre foi total para os portugueses. Abd al-Malik também tinha cavaleiros, lanças, espadas, arcabuzes e canhões. E a vantagem de um Exército de 60 mil homens. Três marroquinos para cada português. Metade do Exército lusitano foi morto na batalha e a outra metade, presa.

O corpo de dom Sebastião nunca seria encontrado. Aos 24 anos, o rei não deixou herdeiro ao trono e Portugal seria governado pela Espanha por 60 anos. Do fim misterioso de dom Sebastião surgiu o sebastianismo, a crença mística de que ele voltaria para afastar o domínio estrangeiro ou para livrar dos seus opressores os pobres e infelizes. O mais popular divulgador do sebastianismo foi o sapateiro da vila portuguesa de Trancoso Gonçalo Annes Bandarra, que previu, em poemas, a volta de dom Sebastião, “o Desejado”. 


Suas Trovas fizeram enorme sucesso. Foram proibidas pela Inquisição, mas continuaram circulando clandestinamente por décadas, mesmo após sua morte. A lenda se espalhou por Portugal e, 260 anos mais tarde, tornou-se realidade no alto de uma montanha próxima à cidade de São José do Belmonte, sertão de Pernambuco, transformando-se em um dos episódios mais bizarros e sinistros da história brasileira.

Tudo começou em 1838, na Pedra Bonita (hoje, Pedra do Reino) – um platô encimado por dois rochedos paralelos, cada um com 30 m de altura –, quando João Antônio Vieira dos Santos começou a abordar os habitantes mostrando-lhes duas pepitas, as quais ele dizia serem preciosas. João Antônio afirmava que as havia conseguido graças ao rei dom Sebastião, que o conduzia todos os dias em sonho a seu esconderijo. O rei português ainda lhe teria indicado que o desencanto e a revelação de seu reino estariam próximos e, assim que isso acontecesse, ele retornaria ao mundo como o Messias. Para dar fundamento, digamos, acadêmico a seus argumentos, o profeta levava consigo, além das pedrinhas, os textos de As Trovas do Bandarra, que tanto sucesso haviam feito em Portugal.


“Esse fato demonstra a perspicácia do falso profeta, que, conhecendo o nível de esclarecimento de seus ouvintes, apropriou-se de uma narrativa de convencimento”, diz Marcio Honorio de Godoy, da PUC-SP e autor de O Desejado e o Encoberto, sobre o sebastianismo. Moradores de sítios vizinhos começaram a aderir à crença e visitar o complexo rochoso encantado, onde dom Sebastião dormia, segundo suas pregações. Com a popularidade crescendo, o profeta foi coroado rei de Pedra Bonita, cargo provisório enquanto dom Sebastião não despertava. Mas a agitação atraiu os olhares das autoridades.

O movimento provocava o esvaziamento da mão de obra rural e disseminava uma seita pagã. Enfim, um caso de polícia e de Igreja. O padre Francisco José Correia, respeitado na região, foi acionado. “O embusteiro João Antônio então se apresentou ao sacerdote, arrependeu-se de sua conduta e devolveu-lhe as falsas pedras”, conta Belarmino de Souza Neto, historiador e autor de Flores do Pajeú: História e Tradições.

O que deveria ser o fim do sebastianismo sertanejo gerou uma crença ainda mais fanática e perigosa. João Antônio assumiu a farsa e saiu da cidade, mas antes passou a coroa para o cunhado João Ferreira. O segundo rei de Pedra Bonita também dizia ter visões de dom Sebastião e intensificou a divulgação da profecia. Carismático, ganhou muita popularidade e conseguiu aumentar o número de seguidores para 300. Eles o chamavam de “Sua Santidade El-Rei” e beijavam-lhe os pés. Decidiu estabelecer sua corte ali mesmo, junto às duas grandes rochas de Pedra Bonita – local de rituais de desencantamento que permitiram ao outro rei, o desaparecido em Alcácer-Quibir, e que no momento dormia, voltar ao mundo real.

É nesse momento que as coisas começaram a degringolar. Ferreira decidiu estabelecer sua casa em um dos blocos de rocha. Nela, eram promovidos festejos e beberagens entre seus associados, que se drogavam com manacá e jurema, ervas com propriedades alucinógenas, para conseguir “entrar” no reino de dom Sebastião. Na segunda torre de pedra, foi escavado o santuário – que servia de refeitório e para os rituais de desvirginamento, nos quais, após cerimônias de casamento, as noivas eram oferecidas em primeira mão ao monarca.

O que o novo rei pregava foi registrado, em 1875, por Antônio Attico de Souza Leite, do Instituto Arqueológico da Província de Pernambuco. “Um iluminado ali congregou toda a população para o advento do reino encantado do rei dom Sebastião, que irromperia castigando, inexorável, a humanidade ingrata”, escreveu. O dia a dia dos sebastianistas era ocupado por rezas e cantorias. Na rotina não entravam a preocupação com vestimentas ou com a higiene. Também não se tomava o cuidado de cultivar vegetais ou criar animais. Caravanas de jagunços de confiança do rei eram despachadas para recolher doações ou saquear fazendas vizinhas e, se possível, buscar novos adeptos.

Ferreira tinha ideias próprias de quais seriam os rituais exigidos para promover o desencantamento de dom Sebastião. “Era necessário banhar as pedras e regar todo o campo vizinho com sangue dos velhos, dos moços, das crianças e dos irracionais”, registrou Antônio Attico. A loucura começaria para valer na manhã de 14 de maio de 1838. Ferreira anunciou que, numa visão, dom Sebastião lhe garantira que o sangue dos seguidores o traria de volta.


Durante três dias, os fiéis, embalados por gritos, danças hipnóticas, música e bebidas alcoólicas, mataram 30 crianças, 12 homens, 11 mulheres e 14 cães. Pais e mães traziam como oferendas partes do corpo dos filhos. Aos pés do rei, arrancavam orelhas, línguas, dedos dos pés, das mãos ou genitais, relata Antônio Attico, baseado em testemunhas. Os cadáveres amontoavam-se e eram colocados na base das duas pedras de maneira simétrica, separados por sexo, idade e “qualidade”, esta última determinada de acordo com o tipo de promessa e da entrega de entes queridos ao sacrifício que eles houvessem feito. Quem se recusava ao sacrifício era tido como infiel e desprezível. “Os mais fanáticos entendiam tal recusa como uma quebra na continuidade do ritual de desencanto”, afirma Honorio de Godoy.

A loucura assassina de Sua Santidade El-Rei fez surgir um terceiro personagem. Pedro Antônio Viera dos Santos, irmão do primeiro rei, João Antônio, resolveu frear o ritual. Tomou a palavra e fez um discurso carismático anunciando que ele também tinha uma mensagem de dom Sebastião para divulgar. “Ele anunciou que dom Sebastião lhe apareceu em uma visão cobrando o sangue do segundo rei para o desencantamento ser concluído”, afirma o historiador Belarmino de Souza.

Os fiéis apoiaram imediatamente a sugestão e começaram a gritar: “Viva El-Rei dom Sebastião! Viva nosso irmão Pedro Antônio!” Deposto do seu título e na condição de um simples súdito, João Ferreira, o amalucado messias, foi arrastado ao sacrifício. Seu crânio foi esmigalhado e o corpo amarrado, pés e mãos, ao tronco de duas árvores grossas. Ao vencedor, Pedro Antônio, foi passada a coroa. Era ele, agora, o terceiro regente de Pedra Bonita. Sua primeira medida foi decretar a suspensão imediata dos assassinatos.


Mas tamanho horror não poderia escapar às autoridades. Enquanto no alto do morro a transição entre os dois reinados acontecia, as denúncias dos sacrifícios humanos chegavam ao conhecimento do major Manuel Pereira da Silva, autoridade militar de São José do Belmonte. Um vaqueiro, José Gomes, fugido de Pedra Bonita, relatou as barbaridades. Curiosamente, o delator destacava a frustração dos integrantes por terem sacrificado inocentes em vão, já que dom Sebastião não havia desencantado.

O major partiu no dia seguinte rumo à Pedra Bonita. Liderava um grupo formado por dois de seus irmãos, Cypriano e Alexandre, e 26 soldados. Após um dia de caminhada, e ainda distante do local da seita, a caravana fez uma pausa embaixo de alguns umbuzeiros. A poucos metros do abrigo, no entanto, encontrou-se de frente com o novo rei dos sebastianistas, Pedro Antônio, acompanhado de um séquito numeroso de pessoas armadas com porretes e facões.O rei e sua corte haviam deixado Pedra Bonita fugindo do cheiro dos cadáveres insepultos.

O encontro pegou os dois grupos de surpresa. Os militares, em campo aberto, pareciam em desvantagem diante dos sebastianistas. Mas estes estavam exaustos. Na batalha que se seguiu, o major ganhou a guerra, mas pagou caro pela vitória. O rei, Pedro Antônio, e 16 de seus seguidores foram mortos. Do lado dos militares, cinco vítimas fatais, inclusive os dois irmãos do major. Ali, debaixo dos umbuzeiros, terminava, em 17 de maio de 1840, o sangrento reinado dos sebastianistas da Pedra Bonita, sem que dom Sebastião acordasse para socorrê-los. O messianismo não se extinguira no imaginário brasileiro. Grupos semelhantes surgiram. Um dos maiores, no interior da Bahia, em 1896, foi liderado por Antônio Conselheiro e gerou a Guerra de Canudos.

Postagem por Narciso Dias - Conselheiro Cariri Cangaço
Fonte: Facebook

SAIBA MAIS - LIVROS
No Reino do Desejado: A Construção do Sebastianismo em Portugal nos Séculos XVI e XVII -
Jacqueline Hermann
Companhia das Letras, 1998.
Flores do Pajeú: História e Tradições
Belarmino de Souza Neto
Biblioteca Pernambucana de História Municipal, 2004

http://cariricangaco.blogspot.com.br/2016/09/sangue-no-sertao-e-o-fanatismo-da-pedro.html

http://blogdomendesemendes.blogspot.com