Por Adriana Negreiros
Fonte da foto: Blog Carlos Santos
Um
soldado de Lampião no banco dos réus da história
De todas as crueldades atribuídas ao cangaceiro José Leite de Santana, vulgo
Jararaca, a mais famosa consistia em arremessar crianças para o alto e
apará-las com a ponta do punhal. Trespassados pela lâmina, garotinhos leves o
bastante para serem lançados na direção do sol morriam lenta e dolorosamente,
em meio aos gritos dos pais – e às gargalhadas do cangaceiro.
Além de
assassino sádico e cruel, Jararaca – “Forte, resistente, ágil, moreno-escuro,
atirador exímio, grande lutador de facas”, na descrição do historiador Luís da
Câmara Cascudo – também carrega fama de pecador santificado pelo martírio. O
túmulo onde jaz, no Cemitério São Sebastião, na cidade de Mossoró, recebe
constantemente a visita de fiéis em busca de milagres. Nas celebrações de
Finados, em 2 de novembro, é a sepultura mais visitada daquele município do
oeste do Rio Grande do Norte, a 280 quilômetros de Natal. Diante da lápide, os
devotos depositam cestos de flores, laços de fita e velas acesas. Não raro
também se encontram, entre as oferendas, preservativos usados – uma das crenças
locais é a de que Jararaca intervém em casos de fraqueza sexual aos que se
entregam ao amor por sobre seus restos mortais.
Na manhã do
último dia 9 de junho, uma sexta-feira, a nata da intelectualidade mossoroense
reuniu-se no salão do tribunal do júri, no Fórum Desembargador Silveira
Martins, para tentar chegar a um veredicto sobre a figura algo dúbia de
Jararaca. Três advogados, uma professora, um padre, um jornalista e um médico
formavam o conselho de sentença do tribunal simulado que decidiria, noventa
anos depois de sua morte, se o cangaceiro deveria entrar para a história como
bandido sanguinário ou vítima da opressão do Estado. Nascido em 5 de maio de
1901 na cidade de Buíque, no agreste pernambucano, Santana é um dos personagens
centrais do episódio mais glorioso da história de Mossoró: a vitória da
resistência local ante a tentativa de invasão da cidade pelo bando de Virgulino
Ferreira da Silva, o Lampião, o Rei do Cangaço.
Em 1927,
quando decidiu conquistar Mossoró, Lampião já era o grande terror dos sertões,
o bandido mais temido de toda a história do Nordeste. Superara, em fama e
prestígio, os ilustres cangaceiros que o antecederam, como o pernambucano José
Gomes, o Cabeleira (celebrizado no romance de mesmo nome, de Franklin Távora);
o baiano Lucas Evangelista, o Lucas da Feira; e o potiguar Jesuíno Brilhante.
Lampião e seus asseclas espalhavam violência por onde passavam, praticavam
saques, incêndios e assaltos. Com um punhal de 80 centímetros, Virgulino furava
os inimigos – rendidos e ajoelhados – próximo ao osso situado logo abaixo do
pescoço, a chamada saboneteira, descendo pelo corpo em linha diagonal e fazendo
sangrar os grandes órgãos. O procedimento impunha à vítima uma morte vagarosa,
ao gosto dos cangaceiros.
Pela
habilidade de escapar à perseguição das forças policiais, Lampião já havia,
àquela altura, sido elevado à categoria de lenda. Nas décadas de 20 e 30, era
uma figura onipresente nos jornais, revistas e até na cena cultural do país. Em
1926, um ano antes do ataque a Mossoró, a peça Manda Chuva de Lampião garantira
uma rentável bilheteria ao Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro. O Rei do
Cangaço gostava de atribuir a boa sorte de não ser capturado à proteção de
padre Cícero, de quem era devoto, e ao fato de ter o “corpo fechado”. Na
verdade, o fator decisivo para o sucesso das fugas do bandido era, além de seu
sofisticado senso estratégico, o apoio de muitos líderes políticos e coronéis
da região, a quem seu bando servia como uma espécie de milícia. Embora muitos
estudiosos tenham tentado compreender Virgulino Ferreira da Silva a partir do
viés marxista da luta de classes – o que lhe conferiria certo caráter de Robin
Hood sertanejo –, o fato é que ele atendia sobretudo aos interesses da elite
agrária.
A notícia de
que Lampião avançava na direção de Mossoró chegou aos ouvidos dos moradores em
abril de 1927. À época, a Capital do Oeste Potiguar, como seus habitantes ainda
gostam de intitulá-la, já era um dos municípios mais importantes do interior
nordestino. Com 20 mil habitantes, localizada no meio do caminho entre duas
capitais – Natal e Fortaleza –, em nada se assemelhava às pequenas cidades onde
Lampião e seu bando saqueavam o comércio, invadiam salas de cinema e
interrompiam festas de casamento, muitas vezes mandando os convidados tirarem a
roupa e dançarem nus.
Mossoró
sediava, àquela altura, um dos maiores parques salineiros do país e três firmas
de descaroçamento e prensa de algodão, o chamado “ouro branco”. Também tinha
uma agência do Banco do Brasil e três jornais – um deles, O Mossoroense,
circulava desde 1872. As filhas e mulheres dos barões do sal e do algodão
mandavam confeccionar seus vestidos com tafetás e sedas que chegavam da França
e da Inglaterra pelo porto de Areia Branca, município litorâneo vizinho.
O presidente
da Intendência Municipal de Mossoró era, ele próprio, um vistoso representante
da elite salineira. Aos 55 anos, magro, bigode pincel e porte elegante – mesmo
no excruciante calor mossoroense, não dispensava o terno e a gravata-borboleta
–, Rodolfo Fernandes possuía, como Lampião, aguçado senso estrategista. Ao ser
informado de que o cangaceiro-mor já se encontrava em território
norte-rio-grandense, acionou o alerta vermelho. Seus conselheiros mais
próximos, entretanto, achavam aquela preocupação um exagero. Virgulino podia
ser ousado, mas não era maluco a ponto de tentar a sorte em uma potência como
Mossoró, diziam seus interlocutores. Ademais, a Catedral de Santa Luzia tinha
duas torres. E, como se sabia, Virgulino costumava dizer que “cidade com mais
de uma torre de igreja não é lugar para cangaceiro”. Não se tratava de
superstição, mas de raciocínio lógico – municípios com tal característica eram
maiores e, portanto, mais difíceis de dominar.
Durante alguns
dias, Fernandes dedicou-se a elaborar um plano de resistência. Deixou os homens
da cidade de sobreaviso para que, ao primeiro sinal, despachassem mulheres,
idosos e crianças para as cidades vizinhas e engrossassem as trincheiras
oficiais. Recorreu aos industriais e comerciantes da cidade e apurou 23 contos
de réis para a aquisição de cinquenta rifles e fuzis, além de 9 mil cartuchos.
O intendente
já tinha informações de que, em Apodi, distante apenas 80 quilômetros dali, sob
o comando do cabra Massilon – que, por ser da região, liderava a incursão pelo
estado –, o bando invadira a cadeia e roubara os revólveres dos praças. Não que
armas fossem artigo em falta entre eles. No ano anterior, 1926, Lampião e seus
asseclas haviam sido convocados para formar os batalhões patrióticos e combater
a Coluna Prestes no sertão nordestino, tarefa conduzida pelo deputado federal
Floro Bartolomeu, com a anuência de padre Cícero. Os bandoleiros nunca
chegaram, de fato, a correr atrás da Coluna – mas garantiram, além de uma falsa
patente de capitão para Virgulino, novíssimos fuzis de uso exclusivo do
Exército para o bando.
O coronel
Antônio Gurgel, um dos barões da região, acompanhava, angustiado, a evolução do
grupo. Sua esposa passava uns dias em uma fazenda próxima dali, e as notícias
de invasões a propriedades privadas, com alardeados estupros, espancamentos e
incêndios, eram frequentes. Na tarde de 12 de junho, um domingo, Gurgel juntou
em uma bolsa uma pistola, cinquenta balas e 1 conto de réis. Tinha decidido ir
ao encontro da mulher. Ainda na estrada, contudo, foi rendido pelo cangaceiro
Coqueiro, que tomou sua bolsa e o levou a Lampião. A partir daquele instante, o
coronel se tornou mais um refém do Rei do Cangaço – outros já haviam sido
feitos na jornada dos cabras pelo Rio Grande do Norte.
Naquele mesmo
domingo em que Gurgel foi capturado, os mossoroenses vestiram-se de azul e
branco, de um lado, e alvinegro, de outro, para assistir a uma partida do
clássico entre Humaitá e Ipiranga, os dois gigantes do futebol local. Depois do
jogo, os atletas do vitorioso Humaitá saíram em passeata pela cidade. Um petit
comité formado por jogadores e torcedores reuniu-se para um sarau dançante
em um dos casarões de estilo colonial do Centro de Mossoró. Quando o convescote
estava no auge da animação, por volta das nove da noite, um mensageiro chegou
com a má notícia: Lampião já estava em São Sebastião, povoado vizinho, em
posição de ataque. Houve quem questionasse se aquilo não seria um boato
plantado pela torcida do Ipiranga para interromper a comemoração do time
adversário. Pelo sim, pelo não, deliberou-se pelo fim da festa.
Foi melhor
assim. Às onze, os sinos das torres da Catedral de Santa Luzia começaram a
badalar. Na sequência, tocou também o sino da Igreja de São Vicente e, depois,
da Igreja do Coração de Jesus. A música produzida pelos quatro sinos ecoou por
toda a cidade, avisando aos moradores que era chegada a hora da batalha. No
meio da noite, levas de comboios com mulheres, velhos, crianças e, dizem as
más-línguas, os covardes, deixaram Mossoró – a maioria carregava os pertences
mais valiosos em pequenas trouxas feitas às pressas. O município de Areia
Branca triplicou a população em questão de horas. Houve até quem pegasse barcos
e navegasse rumo ao alto-mar, com temor de ser capturado por Lampião em terra
firme.
Durante a
madrugada, barricadas de fardos de algodão foram montadas para proteger os
lugares onde os soldados se abrigariam para o combate. A casa de Rodolfo
Fernandes era uma das mais seguras, com uma barreira em forma de U protegendo a
frente e as laterais da residência. A operação foi comandada pelo tenente
Laurentino de Morais, enviado de Natal pelo governo do estado. Boa parte dos
150 homens armados postou-se no alto da Igreja de São Vicente. Havia
combatentes também nos telhados de casas e de prédios da região. Quando o dia
amanheceu, Fernandes recebeu uma carta do coronel Antônio Gurgel enviada por um
portador de Lampião.
“Meu caro
Rodolfo Fernandes. Desde ontem estou aprisionado do grupo de Lampião, o qual
está aquartelado aqui bem perto da cidade. Manda, porém, um acordo para não
atacar mediante a soma de 400 contos de réis. Posso adiantar sem receio que o
grupo é numeroso, cerca de 150 homens bem equipados e municiados à farta.” Mais
à frente, implorava em nome da própria neta, Yolanda, de 2 anos, para que
arrumassem a quantia e salvassem sua vida. Fernandes, sem perder tempo, enviou
a resposta: “Antônio Gurgel. Não é possível satisfazer-lhe a remessa de 400
contos, pois não tenho, e mesmo no comércio é impossível encontrar tal quantia.
Ignora-se onde está refugiado o gerente do Banco do Brasil, sr. Jaime Guedes.
Estamos dispostos a recebê-los na altura em que eles desejarem.”
Ao receber a
correspondência, Lampião resolveu tratar o assunto de chefe para chefe. Como a
ocasião exigia formalidade, escolheu um papel timbrado. No alto, lia-se a
inscrição “Capitão Virgulino Ferreira (Lampião)”. De próprio punho, garatujou
as seguintes ponderações: “Coronel Rodolfo. Estando eu até aqui pretendo
dinheiro. Já foi um aviso aí para os senhores. Se por acaso resolver me mandar,
será a importância que aqui nos pede, eu evito a entrada aí. Porém, não vindo
essa importância, eu entrarei até aí, pensa que a Deus querer eu entro e vai
haver muito estrago por isto, se vir o doutor. Eu não entro aí, mas me resposte
logo. Capitão Lampião.” O intendente, atendendo ao pedido do cangaceiro, foi
ligeiro na resposta. Mas inflexível: “Estamos dispostos a acarretar com tudo o
que o senhor queira fazer contra nós. A cidade acha-se firmemente inabalável na
sua defesa.”
Como a
negociação não prosperou, Lampião reuniu seu estado-maior, formado pelos
cangaceiros Moderno, Ezequiel e Luís Pedro, e anunciou o início da marcha sobre
Mossoró. Montados a cavalo, seguiram até a localidade de Saco, distante 2
quilômetros do Centro, onde seis reféns – entre eles, o coronel Gurgel –,
permaneceram sob a vigilância de um bandido. Os demais bandoleiros foram
divididos em dois grupos, liderados respectivamente por Sabino e Massilon.
Jararaca, que bebera mais cachaça do que o recomendado a um guerreiro prestes a
entrar em combate, fora destituído do seu tradicional posto de líder e passara
a integrar o time de Massilon. Lampião e seus tenentes seguiram para o
cemitério. O combinado era que, após o assalto vitorioso, o bando voltasse a se
encontrar.
Com os fuzis
apoiados sobre os ombros e cantando Mulher Rendeira, o grito de guerra das
invasões (Olê, mulher rendeira/olê, mulher rendá/me ensina a fazer renda/que eu
te ensino a guerrear), os cangaceiros entraram na região central de Mossoró. Os
ocupantes das trincheiras no alto da Igreja de São Vicente e da casa do
intendente tinham visão privilegiada do avanço das tropas.
Tão logo o
grupo surgiu no horizonte, iniciaram-se os disparos. Os cangaceiros,
acostumados a desfilar nos povoados sem serem incomodados, foram surpreendidos.
O cabra Colchete, do grupo de Massilon, tentou avançar sobre uma barricada de
algodão e foi morto por um tiro certeiro na cabeça. Jararaca, ao ver a cena,
correu na direção do companheiro e foi atingido por um tiro no peito. Mesmo
machucado e ainda embriagado, conseguiu levantar-se e correr, ocasião em que
levou outro balaço, dessa vez na coxa, perto da bunda.
Derrotados,
Sabino, Massilon e os demais correram em direção ao cemitério e transmitiram as
más notícias para o estado-maior cangaceiro. De lá, o grupo seguiu até o Saco,
pegou os reféns e os cavalos e fugiu em disparada. Aquele episódio acabaria por
se constituir na maior humilhação imposta ao Imperador dos Sertões, o
Governador da Caatinga, o todo-poderoso Rei do Cangaço. Também serviria para
despertar o espírito cívico dos mossoroenses.
Desde então,
seus moradores passaram a se referir ao município, hoje com 290 mil habitantes,
como “País de Mossoró”.
“Todo
mossoroense cresce ouvindo, com orgulho, os relatos da vitória contra o bando
de Lampião”, disse-me a atual prefeita do País de Mossoró, Rosalba Ciarlini,
uma sorridente médica de 64 anos cujo penteado e jeito de se vestir lembram o
da ex-presidente Dilma Rousseff.
Enquanto
aguardávamos o início do julgamento de Jararaca, a prefeita me ocuparia
contando histórias reveladoras do espírito vanguardista e libertário da cidade.
Lembrou que em 1927, mesmo ano dos fatos gloriosos, a professora Celina
Guimarães Viana tornou-se a primeira eleitora do Brasil. Antes que o voto
feminino fosse regulamentado pelo Código Eleitoral de 1932, uma lei potiguar
estabeleceu a indistinção de sexo para votar e ser votado. Guimarães, além de
entusiasta do ideário do humanismo cívico, também era juíza de futebol.
Rosalba
Ciarlini recordou ainda que, em 1875, 300 mulheres saíram às ruas de Mossoró
para protestar contra o alistamento militar obrigatório. Com pedaços de pau e
pedras, renderam um juiz de paz e, na sequência, confiscaram e picaram os
documentos relativos à convocação de seus filhos e maridos. Também rasgaram os
editais de alistamento afixados pela cidade e, em uma praça, chegaram a trocar
sopapos com os soldados da força pública. O motim, que entraria para a história
como a Marcha das Mulheres, seria outra demonstração inequívoca da valentia e
bravura dos nascidos no País de Mossoró. “A líder da Marcha, Anna Floriano, é
minha tataravó”, disse a prefeita, sem disfarçar o orgulho.
Minha aula de
história foi bruscamente interrompida um minuto depois das nove e meia da
manhã, quando o juiz Breno Valério Fausto de Medeiros, da 3ª Vara de Família da
Comarca da cidade, declarou aberta a sessão do júri. “Este é um julgamento de
valor sociológico”, explicou. “A população mossoroense, representada pelos
jurados aqui presentes, irá decidir se Jararaca é vítima ou culpado.” Cerca de
oitenta pessoas tinham ido assistir ao debate entre defesa e acusação, a
maioria estudantes e professores de direito e história. Vestiam-se com
capricho. O ar-condicionado gelava o salão espartano, adornado com um
mobiliário funcional em tons de cinza. Os homens podiam trajar seus ternos
elegantes, a despeito do calor de 30ºC do lado de fora. Algumas mulheres usavam
saltos altos, bem como rímel, delineador e sombra esfumada nas pálpebras.
O julgamento
havia sido idealizado e organizado pela Sociedade Brasileira de Estudos do
Cangaço como parte das comemorações pelos 90 anos da Resistência, termo usado
pelos mossoroenses para referir-se ao episódio de 1927. Um desavisado que, por
distração, intitule o fato de “invasão” corre o risco de ser submetido a
mínimos dez minutos de explanação semiótica sobre o evento, a depender do
interlocutor.
À exceção de
uma mulher com chapéu de cangaceira na plateia, o evento não tinha nada de
folclórico ou caricato. Acusação e defesa foram assumidas por duas figuras
proeminentes na cena jurídica local, ambas vestidas a caráter, com toga: os
advogados Diógenes da Cunha Lima, ex-reitor da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte e presidente da Academia Norte-rio-grandense de Letras; e
Honório de Medeiros, mestre em filosofia do direito e assessor jurídico do
governo do estado. Cada um dispôs de sessenta minutos para fazer,
respectivamente, a acusação e a defesa do cangaceiro.
“Jararaca não
tinha esse nome por ser feio”, discursou Cunha Lima, fazendo suspense sobre o
apelido do réu. “Mas pelos atos de animal peçonhento”, concluiu o advogado, um
homem magro e bonito que, ao sorrir, parece ter menos do que seus 80 anos.
Cunha Lima argumentou que o cangaceiro obedecia a um chefe sanguinário, que
frequentemente cortava a língua de seus inimigos.
Num tom grave,
recorreu a uma narrativa que adquiriu tons de lenda e é constantemente
lembrada, com um ou outro detalhe diferente, pelos que contam as peripécias de
Lampião. Conforme a história, certa vez, durante a invasão a uma fazenda, o
sicário tentou beijar uma moça à força. Seu noivo, ao presenciar a cena, foi
tirar satisfações com o bandido. Ato contínuo, o pobre homem teve calças e cueca
arrancadas e os testículos trancados a chave na gaveta de uma cômoda. Sobre o
móvel, Lampião deixou um facão. “Volto em dez minutos”, avisou ao rapaz. “Se
você ainda estiver aqui, será morto.” A lenda não conclui se o jovem cortou os
testículos para sobreviver ou se foi torturado e aniquilado pelo cangaceiro.
“Esse era o
tipo de coisa que Lampião e sua gente fazia. Não se pode considerar que um
homem como Jararaca não seja culpado”, argumentou Cunha Lima, com os olhos
fixos nos sete jurados. Os cangaceiros, ele disse, cometiam atos bárbaros
motivados por ganância, pura maldade e desejo de fama. Comparou Lampião ao
personagem Macbeth, de Shakespeare. “Um tornou-se rei da Escócia. Outro, do
sertão. Ambos usavam ouro sobre a cabeça – um, em forma de coroa; outro, nos
enfeites do chapéu. Os dois diziam ter os corpos fechados. Ambos tinham
mulheres bandidas – Lady Macbeth e Maria Bonita – e eram sanguinários e
destruidores de vidas”, explicou.
“Que ninguém
se esqueça dos crimes que os cangaceiros fizeram contra a heroica cidade de
Mossoró”, concluiu. E, em tom jocoso, lembrou aos jurados que havia um certo
ex-presidente brasileiro que também se considerava uma jararaca.
Enquanto
Lampião e seu bando galopavam o mais rapidamente possível para bem longe de
Mossoró, Jararaca conseguiu rastejar por entre a multidão – que estava
distraída arrastando o corpo do cangaceiro Colchete pela cidade – e alcançar a
ponte férrea, na saída para Areia Branca. Dormiu próximo a um arbusto e, ao
amanhecer, arrastou-se por mais alguns metros até encontrar um grupo de
trabalhadores da estrada de ferro. A um deles, chamado Pedro Tomé, Jararaca
entregou uma quantia em dinheiro e pediu que fosse à cidade buscar algodão,
gaze e água oxigenada.
Pedro Tomé, um
homem caseiro, trabalhador e pouco dado aos fuxicos que corriam pelas praças da
cidade, estava por fora dos eventos virtuosos da véspera. Ouvira o barulho dos
tiros, ao longe, mas os tomara por fogos de artifício – 13 de junho é o dia em
que se acendem enormes fogueiras em homenagem a santo Antônio. Ao chegar à
farmácia e contar sobre o homem ferido, foi alertado de que se tratava de um
cangaceiro. Apavorado, Tomé voltou para casa protegido por dois policiais.
Jararaca recebeu voz de prisão e foi levado para a cadeia pública de Mossoró,
no Centro da cidade.
A cela em que
Jararaca ficou trancado tinha grades que davam para a rua. Centenas de
mossoroenses amontoavam-se em frente ao local para ver um cangaceiro de perto,
como um leão feroz preso a uma jaula do zoológico. Enchiam-lhe de perguntas.
Queriam saber quantos homens já havia matado. Se amealhara fortuna no cangaço.
Quais eram seus arrependimentos. Até hoje, corre a lenda de que, nesse momento,
Jararaca teria confessado sentir um único remorso: de aparar crianças com a
ponta do punhal.
Um dos que
correu até a cadeia para ver o bandido foi Raul Fernandes, filho do intendente
Rodolfo. Tinha então 19 anos. Mais tarde, já médico, escreveria o livro A
Marcha de Lampião, no qual descreve Jararaca como um sujeito “mestiço, de
estatura média, músculos rijos, compleição robusta, mais forte do que os
soldados circundantes”.
O bandido
recebeu cuidados médicos na prisão e foi autorizado a permanecer, parte do
tempo, em uma sala mais reservada, onde podia se acomodar numa espreguiçadeira
de lona. Foi ali, provavelmente, que ele recebeu Lauro da Escóssia, filho do
dono do diário O Mossoroense, depois que o jornalista conseguiu
autorização da direção da cadeia para realizar a primeira entrevista com
Jararaca.
Segundo o
relato de Escóssia, seu interlocutor fazia barulho ao respirar, por causa do
tiro no pulmão, e tinha olhos opacos. O preso também revelaria detalhes
operacionais da tentativa de invasão, como o fato de ter sido Massilon o
idealizador do ataque. O concorrente O Correio do Povo também traria
uma entrevista bombástica com Jararaca: ao repórter, o bandido citara nomes de
políticos e coronéis nordestinos que davam proteção e recebiam dinheiro de
cangaceiros. Na sequência às delações de Jararaca, o tenente Laurentino de
Morais, comandante da operação de resistência, foi chamado às pressas a Natal
por seus superiores.
Possivelmente
na noite de 20 de junho – a data exata ainda é motivo de controvérsias entre
pesquisadores –, Jararaca foi acordado por dois policiais, com a justificativa
de que seria levado à capital para tratamento médico. Sonolento, o bandido,
segundo escreveria Raul Fernandes, teria pedido alguns minutos para recolher os
pertences, dentre eles seu velho par de alpercatas. “Deixe-as aí. Em Natal,
você será presenteado com sapatos de verniz”, disse, com ironia, um dos
policiais.
Do lado de
fora da cadeia, uma escolta formada por oficiais – dentre eles, o tenente
Laurentino de Morais – aguardava o cangaceiro, logo acomodado no banco de um
possante Willys-Knight com capota de lona. Quando o veículo já pegava
velocidade, o cangaceiro olhou pela janela e estranhou o caminho que estavam
tomando. Em vez da estrada para Natal, iam na direção contrária. Em frente ao
Cemitério São Sebastião, o motorista pôs o pé no freio e desligou o motor. Os
policiais arrastaram o bandido para fora do carro, adentraram o cemitério e, ao
dobrar à esquerda, chegaram a uma cova aberta.
O que se
sucedeu foi, durante anos, motivo de controvérsia. O pesquisador Kydelmir
Dantas, membro da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço, lembra que,
enquanto esteve na ativa, o sargento Pedro Silvio de Morais, um dos comandantes
da resistência, sustentou que Jararaca havia sido morto com uma coronhada do
fuzil de um policial, “sem que seu corpo sofresse qualquer decepação”. O
depoimento de Morais consta do livro Lampião em Mossoró, publicado pelo
historiador potiguar Raimundo Nonato em 1955. Em 1996, já na reserva, o mesmo
Morais daria outra versão dos fatos para o historiador Raimundo Soares de
Brito, autor de Nas Garras de Lampião: “De todas as ocorrências daquela
noite, a que mais me comoveu foi quando os seus coveiros quebraram, com
picaretas e coices de armas, as pernas do infeliz bandoleiro, pois a cova que
fora cavada antes era muito pequena.”
O advogado
Honório de Medeiros, encarregado de defender Jararaca, recorreu a uma livre
interpretação de um dos mestres da filosofia racionalista do século XVII para
dar início a sua fala. “Espinosa dizia que quem tudo compreende tudo perdoa”,
sentenciou, batendo as pontas dos dedos contra o tablado do púlpito enquanto
encarava a plateia com ar solene. Aos 59 anos, cabelos grisalhos e olhos vivos,
Medeiros é um homem alto, de corpo forte e presença vigorosa na corte, em
contraste com os modos suaves do acusador Diógenes Cunha Lima.
“Jararaca
nasceu pobre, preto e bastardo. Jararaca nasceu condenado”, disse, em tom
dramático. “Levava uma vida sem esperança, sem médico, sem música, sem
alimento, sem nada. Olhava para o futuro e via, entre amanheceres e
anoiteceres, longos dias de trabalho praticamente escravo”, argumentou.
“Cangaceiros, ao contrário, eram homens embriagados de liberdade, assim como,
no oeste americano, foram Billy the Kid e Bonnie & Clyde”, afirmou, em
referência ao ladrão que aterrorizou os Estados Unidos no final do século XIX e
ao casal fora da lei especializado em assaltar bancos durante a Grande
Depressão americana.
O advogado
pediu aos jurados e à plateia que evitassem julgar os crimes de Jararaca com os
olhos de hoje. Fez uma longa explanação sobre insubmissão e evolução do
processo civilizatório. Disse que madre Teresa de Calcutá e o físico Albert
Einstein, assim como Jararaca e Massilon (sobre cuja trajetória publicou um
livro), também eram rebeldes. “A insubmissão está consagrada na história e na
ciência”, defendeu. “Os insubmissos mudam a ordem das coisas. Com a Lava Jato,
o Ministério Público Federal também criou uma ruptura.”
Nos minutos
finais da defesa, ao ser alertado por um oficial de Justiça de que o tempo
estava prestes a se encerrar, narrou, com fortes tintas, o triste fim de José
Leite de Santana. “Os soldados, sob observação de tenentes e sargentos, levam
Jararaca até uma cova previamente aberta. Percebem que ele estertora. Não
estava morto. Os oficiais recuam e determinam que o ponham dentro da cova. E,
estertorando, Jararaca recebe a primeira pazada de areia na cara. É sepultado.
Vivo”, contou, levantando a voz ao pronunciar a última palavra.
“O Estado
prendeu, julgou, condenou e executou Jararaca sem que ele tivesse direito à
defesa. Pagou uma pena violenta e tenebrosa. E estamos aqui reunidos para
condená-lo de novo?”, indagou, enfaticamente, dirigindo-se aos advogados, ao
padre, ao jornalista e ao médico que compunham o conselho de sentença. “O que
peço é que compreendamos Jararaca. E, porque o compreendemos, sejamos capazes
de perdoá-lo”, concluiu.
A plateia
parecia impactada com o discurso de Honório de Medeiros. Os aplausos que ele
recebeu (proibidos em um júri convencional, mas liberados naquele julgamento
simulado) foram mais intensos do que os dedicados à acusação. Diógenes da Cunha
Lima tinha direito a uma réplica, mas a dispensou. “Ele foi brilhante. Fiquei
apaixonado”, confessou o jornalista Raimundo Lopes, presente à audiência. O
juiz Breno Fausto de Medeiros determinou que dois oficiais providenciassem a
coleta dos votos. Cada um segurava uma urna de tecido vermelho aveludado. Na
primeira, os jurados deveriam depositar o voto válido – vítima ou culpado – e,
na segunda, o descarte.
Finda a
coleta, o juiz recebeu a urna com os votos válidos e passou à leitura das
cédulas. “Primeiro voto: culpado”, anunciou, para um auditório em silêncio.
“Segundo voto: vítima. Terceiro voto: vítima.” E assim prosseguiu, até o último
voto. Por 6 a 1, Jararaca foi absolvido da acusação de inimigo de Mossoró.
O juiz
solicitou aos presentes que ficassem de pé para a leitura da sentença. Após um
breve resumo do caso, proferiu a conclusão: “O conselho de sentença composto
por representantes da sociedade mossoroense, personalidades de reputação
ilibada e capacitação inconteste, acolheu, por maioria, a tese da defesa,
absolvendo o acusado no seu julgamento histórico e o reconhecendo injustiçado e
vítima dos seus algozes.”
Encerrada a
audiência, o juiz, alguns jurados, advogados e jornalistas reuniram-se para
almoçar num restaurante especializado em costela de javali. “Fiquei surpreso
com o resultado”, disse-me o juiz Breno Fausto, enquanto esvaziava uma concha
de feijão-verde no prato. “Mossoró é uma cidade peculiar. Ao mesmo tempo em que
se orgulha da resistência absolve um cangaceiro”, comentou.
O único voto
contra Jararaca tinha partido do médico e advogado Armando Negreiros, cuja
revolta contra a sentença adquiria ares dramáticos. “Com esse júri, Mossoró
renuncia à resistência e condena a figura de Rodolfo Fernandes”, reclamou,
depois de tomar um gole no copo de cerveja. “Jararaca era um delinquente de
última categoria, um bandido de alta periculosidade. Como é que um homem desses
é vítima de alguma coisa?”
Durante o
almoço, Diógenes da Cunha Lima ouviu de mais de um comensal a mesma explicação
para o seu infortúnio: tinha perdido a simpatia do corpo de sentença ao citar,
indiretamente, a figura do ex-presidente Lula. “Era um júri majoritariamente de
esquerda”, ponderou Armando Negreiros. “Não reflete o que a sociedade norte-rio-grandense
pensa”, lamentou.
Quis o destino
que o júri simulado de Jararaca ocorresse no mesmo dia em que, em Brasília,
encerrava-se o julgamento da chapa Dilma-Temer no Tribunal Superior Eleitoral,
ocasião em que o voto de minerva do ministro Gilmar Mendes permitiu que o
presidente Michel Temer permanecesse no Palácio do Planalto. No Twitter,
observadores da cena potiguar relacionaram os dois casos. “Se até Jararaca foi
inocentado em Mossoró, você queria que no TSE fosse diferente?”, indagou
@Luzichi. “Jararaca, assaltante de Mossoró, sequestrador, assassino confesso,
foi absolvido de quê? Foi o TSE que o liberou?”, escreveu @thadeubrandao.
Mossoró tem,
de fato, uma relação dúbia com os cangaceiros. Chuva de Bala no País de
Mossoró, espetáculo teatral em que cerca de oitenta atores encenam a expulsão
de Lampião, tratando o intendente Rodolfo Fernandes como herói, é um dos pontos
altos da programação cultural da cidade, atraindo multidões de espectadores de
toda a região.
Já no Memorial
da Resistência, espaço construído pela prefeitura, em 2008, para contar os
eventos de 1927, há, na entrada, enormes painéis de Lampião e Maria Bonita. Uma
escolha que, para muitos, é difícil de entender: se os grandes heróis da
Resistência foram os combatentes, por que as fotos destacadas são as dos cangaceiros?
“Trata-se de um simbolismo. Os resistentes não venceram qualquer um. Venceram
Lampião, o Rei do Cangaço”, teorizou a professora Ludimilla Oliveira, que
compôs o júri de Jararaca.
Coincidência
ou não, na sessão solene em homenagem ao aniversário de 90 anos da Resistência,
na Câmara Municipal, ninguém comentou o mérito da absolvição de Jararaca. “O
maior resultado do julgamento é o resgate da história da Resistência,
independente da absolvição ou condenação”, esquivou-se a prefeita Rosalba
Ciarlini, presente à sessão.
No discurso
mais aplaudido da solenidade, o advogado Francisco Marcos de Araújo, presidente
da comissão organizadora das comemorações da Resistência, convocou o espírito
guerreiro de seus conterrâneos. “Só podemos, no presente, dizer que somos um
povo libertário e valente porque não nos tornamos genuflexos ao jugo vandalista
do cangaço”, discursou, quase aos gritos. Ao fim da cerimônia, todos os
participantes – inclusive a prefeita – dançaram miudinho ao som do hino de
Mossoró, um xote cuja letra diz: Lembramos hoje teus anos de glória/Ousada
foste sempre Mossoró/Por ti começa a senda da vitória/Na luta ao cangaceiro
Lampião.
Na manhã de 10
de junho, um dia após a absolvição de Jararaca, duas velas queimavam sobre seu
jazigo no Cemitério São Sebastião. Um cesto de vime azul ostentava uma rosa
branca, com folhas no caule. Potes de plástico transparentes comportavam flores
amarelas. Arranjos de flores artificiais, envolvidas em fitas azuis, caíam por
sobre a lápide.
Dali era
possível ver, a não mais do que 10 metros de distância, o túmulo do herói da
Resistência mossoroense, o intendente Rodolfo Fernandes. A construção, bem mais
imponente que a de Jararaca, contém um busto do líder político e é adornada por
colunas gregas. Sobre a lápide de Fernandes jazia uma solitária rosa vermelha,
com as pétalas já secas, esturricadas pelo inclemente sol da valente Capital do
Oeste Potiguar, o País de Mossoró.
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-julgamento-de-jararaca/
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