Por: Manoel Severo
Crhistiano
Câmara, Dona Douvina e Manoel Severo
Ainda sobre
Humberto de Campos...
Compulsando
documentos Curaçá e sua história, recolhemos algumas informações bastante úteis
e esclarecedoras que nos ajudam a dissecar os acontecimentos mencionados pelo
cronista. Vejamos:
1) Em
1933 – a crônica foi escrita após 1930 e não pode ultrapassar 1934, ano do
falecimento do autor – o município de Curaçá além da sede englobava os
distritos de Ibó, Chorrochó, Patamuté e Barro Vermelho – todos com registros de
ocorrências que relatam a passagem de cangaceiros. Várzea da Ema ponto de
visitação repetido dos cangaceiros e que até 1911 pertencia a Curaçá, em 1933
já não integra o município sanfranciscano.
2) “Documento
publicado em 2004, noticiando história do município, no capitulo referente ao
“Processo de Urbanização de Curaçá”, anota: “ [...]
3) Recordam-se
os mais velhos que no início da década de 1930, inúmeras casas foram
construídas nos limites da cidade pelos produtores rurais. Estes abandonaram
suas roças do interior do município por sentirem-se vulneráveis diante do
conflito existente na região provocado por Virgolino Ferreira da Silva,
conhecido por Lampião, o Rei do Cangaço, Lampião chegou a liderar 200
cangaceiros e a milícia destacada pelo Governo para matá-los era conhecida como volante. “A
população rural amedrontada temia tanto os cangaceiros pela sua violência, como
as volantes pela sua maldade e perversidade (grifo nosso)”.(AGENDA 21.
Distrital, p. 8)
Recorremos
ainda a estudiosos que se mostraram surpresos não só com a existência das
crônicas, mas, sobretudo, a menção de um ataque de tamanha virulência naquela
cidadezinha sertaneja.
Antônio Amaury
O mestre Antônio Amaury Correa de Araújo, nome que dispensa apresentação pela
credibilidade e conhecimentos sobre cangaço e cangaceiros, nos informou que
Lampião realmente esteve em Curaçá na década de 1930, sendo que na ocasião duas
mortes ocorreram, até porque, os membros da família Engrácia, de cujo seio saiu
23 cangaceiros – dentre eles Antônio e Cirilo de Engrácia – eram naturais da
região, sendo, pois, bastante conhecidos naqueles lugarejos, o que assegurava
relativa tranqulidade aos salteadores, que se mostravam sempre bem informados e
municiados pelos amigos que mantinham naquelas paragens. Deu-nos ciência Amaury
que estes dados lhe foram transmitidos por certo Sr. Cândido, mais conhecido
como Candinho, nascido e criado em Curaçá e testemunha presencial do
acontecido. Sobre o assombroso número de 15 mortos, uma delas tendo o coração
de “tirado pela boca” o coração, o renomado pesquisador não tem notícia,
classificando-a como a muitas outras, de informações fantasiosas da imprensa da
época.
Não pretendemos em absoluto negar os crimes, alguns bastante cruéis, cometidos
pela gente do cangaço, ao contrário, como já mencionamos neste texto o uso do
terror como forma de intimidação foi uma estratégia largamente utilizada pelos
cangaceiros. Como sempre ressalta o escritor Frederico Pernambucano de Melo,
este é um procedimento que dificultava, sobremaneira, a ação coibidora do
Estado, porquanto, inibe o aparelho policial e judiciário, em decorrência da
inexistência de testemunhas que se dispusessem a depor, temerosas das
represálias que certamente ocorreriam advindas dos denunciados. Voltando ao
documento produzido pela AGENDA 21, parcialmente reproduzido acima, é
importante a menção às fontes orais ouvidas pelos pesquisadores, confirmadoras
da “maldade e perversidade” das volantes. Sempre é bom lembrar que trajados de
maneira muito assemelhada aos cangaceiros, composta em esmagadora maioria por
homens nascidos e criados nos sertões nordestinos, as guarnições militares que
percorriam as caatingas em perseguição aos bandoleiros, cometiam seguidas
arbitrariedades, não poupando, inclusive, idosos e inocentes, não sendo
incomuns queixas de abusos sexuais cometidos pelos soldados e, até mesmo, alguns
graduados.
Dando curso as
suas reflexões Humberto prossegue alertando que o prolongamento do fenômeno e a
inconcebível, para ele, impunidade dos transgressores, começa a gerar
indiferença entre os brasileiros, Escreve observando que [...]
“A princípio,
ao ler a comunicação de uma destas façanhas o país se comovia e indignava,
reclamando dos poderes públicos o ponto final para o feio poema de sangue e
lama. As vozes que se erguiam, foram, porém, caladas nos peitos que as
emitiram. È hoje com indiferença quase criminosa que se tem conhecimento dessas
selvagerias do bandoleiro. E Lampião de pavio aceso, continua desafiando o
Brasil (CAMPOS, p. 27).
Atribui essa
indiferença da opinião pública antes tão sensível ao noticiário sobre o assunto
a incapacidade das autoridades no Governo Federal e nos Governos estaduais
diretamente afetados pela insidiosa atividade do cangaço, para enfrentar e dar
cabo de lampião e seus seguidores. Para ele falta vontade política,
determinação administrativa e investimento financeiro para derrotar os
bandidos, embora reconhecendo que “O Governo da República tem uma infinidade de
problemas a resolver” (Cf. ob.cit. p. 28). Indaga se “ os Estados nordestinos
não possam reunir um contingente de 200 homens, escolhidos entre os melhores elementos
das suas milícias policiais?”(idem).Repara que os governos quando desejam
perseguir adversários políticos são ágeis e eficientes, inferindo:
“A sofreguidão
com que se organizam forças para a politicagem dos governos, e a
impossibilidade, que se encontra em mobilizá-las para a defesa do povo e da
dignidade nacional, não constituirão um índice triste e amargo da capacidade ou
da incapacidade dos homens públicos do nosso tempo? (ibidem).
Não quer ou
não consegue perceber que o cangaço é decorrência das mazelas históricas da
sociedade brasileira, no caso, em particular, da vida rural no Nordeste.
Insulados nos latifúndios imensos, submetidos com suas famílias a tutela dos
coronéis poderosos, os camponeses, vítimas desvalidas dos potentados, fazem-se
descrentes do juiz e do delegado, do organismo judiciário e policial, “lavando
com sangue” em alguns casos a honra de uma filha molestada sexualmente ou
uma desfeita que lhe humilhou e ofendeu de forma profunda. Feita a desgraça não
há mais retorno Muda de hábitos e de vida. Caminha lado a lado com outros
homens induzidos por diferentes ou pelas mesmas razões àquele caminho. Não
compreende Humberto de Campos, talvez antolhado peloespírito da época, que a
subsistência do cangaço somente ocorre por interesses das classes dominantes e
das autoridades. O fornecimento de armas, munições e alimentos, a venda de
informações estratégicas e o uso dos grupos armados para intimidar e eliminar
adversários políticos e concorrentes comerciais sabemos hoje, proporcionou
lucros e prolongou o poder de muita gente boa. Sem coiteiro o cangaço não teria
duração tão prolongada. Lampião, Corisco, Zé Baiano, Ângelo Roque, Gato e
tantos outros, tornaram-se profissionais numa atividade altamente compensadora,
arriscada, periculosa, desconfortável quase todo o tempo, entretanto, com
lucros materiais nada desprezíveis.
Gato e
Inacinha
A produção do próprio espaço em que operava foi tarefa que o gênio de Lampião
empreendeu com absoluta competência. Teceu com paciência e habilidade de
negociador político arguto, diversificada rede decolaboradores, que foram
decisivos para o funcionamento e a dinâmica do cangaceirismo. Mesmo nos
momentos mais duros, como nas grandes estiagens, essa rede logística podia
claudicar, entretanto, não deixava de prover as necessidades das “tropas
cangaceiras”. Assim o dinheiro circulava, corria solto, cevando os bornais de
muito graúdo. Se múltiplos fatores podem explicar o cangaço, não menos complexas
são as causas da sua extinção. Quando a roda inexorável da história gira,
cumprindo a sua dialética irreversível, a realidade se altera carregando de
roldão mais cedo ou mais tarde, de uma ou de outra forma, todos que não
compreendem este processo ou contra ele se colocam por convicção política e
ideológica.
Voltando ao texto de Campos, nos parágrafos seguintes ele imerge em duas
considerações capitais para o entendimento do seu modo de pensar. Ao final da
página 28 e no começo da seguinte, ele retoma a idéia de que o banditismo
rural, tomando aqui o conceito de Hobsbaw[2], apresenta-se
já como uma “calamidade comum, ordinária, como a lepra, como a tuberculose, como
as epidemias que, pela persistência e continuidade, se tornaram familiares”
(CAMPOS, PP. 28. 29.
Usa ainda um
exemplo que foi buscar no historiador paraense Ignácio Moura[3], que segundo
Humberto, informa em um dos seus estudos “que no Alto Araguaia há quarenta
anos, o bócio[4] era tão
vulgar, e se achava tão generalizado, que as pessoas sem papo eram olhadas,
quase, como defeituosas” (Cf. CAMPOS, p. 29).
O texto na sua
continuidade ingressa em etapa propositiva e a panacéia é objetivamente
indicada, remédio ortodoxo e prontamente erradicador do mal: “Já é tempo,
entretanto, de os homens que têm uma pena apelarem para os homens que têm uma
espada, em lugar de se dirigirem, apenas, àqueles que têm o mando” [...] Há no
Exército, e nas milícias dos Estados do Sul, numerosos oficiais briosos e
valentes, nascidos nas regiões que Lampião castiga com a sua
ferocidade e humilha com a sua depravação São baianos, alagoanos, sergipanos,
pernambucanos, cearenses, rio-grandenses-do-norte” (ob.cit. p. 29).
Fica evidente
que a proposição é federalizar o problema, solução que na cabeça não só do
escritor maranhense, mas de muita gente, equacionaria o impasse da falta de
recursos humanos e armamentos. Nada de novo no front. Inevitável
evocarmos aqui a história e colhermos no fundo do baú os exemplos de Canudos,
Contestado, Caldeirão Grande e Pau de Colher[5], sublevações
camponesas com fortes conotações religiosas, que tratadas como assuntos
meramente policiais produziram resultados sangrentos.
Profundamente
apegados as suas crenças e crendices, os cangaceiros de um modo geral não se
apartavam dos seus santos, rezas e escapulários, para não falar das correntes
com medalhas e relicários, objetos pelos quais tinham predileção estética e
devoção contrita. Todavia, se oriundos da mesma matriz social e física e
perlustrando o mesmo espaço geográfico, cangaceiros e beatos seguiram rumos
diferentes. Os beatos eram pastores de almas e obcecados realizadores de obras
civis e religiosas, como demonstram os apostolados operosos do Padre Mestre
Ibiapina, de Antonio Conselheiro e do Beato José Lourenço[6]. Lampião seus
companheiros e seguidores não se propunham a reformar o mundo ou a uma prática
social profilática junto à pobreza, agiam exclusivamente para sobreviver e
garantir o amealhamento de valores em dinheiro e metais preciosos. Vez por
outra, mormente, quando precisavam de ajuda ou informação, sabiam ser generosos
e pródigos na distribuição de favores e numerários. Cultivavam também seus
afetos e cuidavam para que os seus amigos e familiares tivessem existência
menos atribulada, na mediada do possível. Ao concluir sua crônica Humberto
de Campos, ressalva:
“Bato, neste
momento, pela primeira vez, com a minha mão de paisano, à porta dos quartéis. E
tenho quase a certeza de que meus olhos não verão em nenhuma delas o dístico da
porta do Inferno, o qual ordenava aos que entravam, que deixassem, ali, toda a
esperança.... “. (CAMPOS, ob.cit. p.30).
Finaliza como
iniciou, repercutindo a notícia telegráfica que lhe ordena à consciência por
cobro ao cangaço, infrene e desinteressado sobre as causas e sobre os homens
que de pacatos camponeses transformaram-se em salteadores de estradas e
cidades, latrocidas e sequestradores, como se tal forma de vida não os
castigassem severamente. Afinal quase todos tiveram vida breve, morreram jovens
e os que sobreviveram jamais voltaram a delinqüir. Mas o notável escritor a
isso não pode ver, porquanto, ele também partiu prematuramente.
[1] Ouvimos também
os escritores e pesquisadores Oleone Coelho Fontes e Luiz Rubem Bonfim,
autoridades reconhecidas na matéria, que desconheciam o fato mencionado no
telegrama que Campos tomou como fonte para o seu comentário
[2] Hobsbaw. Eric.Bandidos.
Editora Forense Universitária. Rio de Janeiro, 1976. 148 p.il:.
[3] Ignácio Moura
(1857-1929), nascido em Cametá, município paraense, era jornalista, escritor,
professor, poeta. .
[4] Bócio- Moléstia
que ataca a tireóide, sendo popularmente conhecida como “papo”.
[5] Canudos e Pau
de Colher na Bahia. Caldeirão Grande no Ceará e o Contesto entre os Estados de
Santa Catarina e Paraná. O rescaldo final da repressão soma milhares de mortos,
inclusive, velhos, mulheres e crianças.
[6] Ibiapina fundou
as Casas de Caridade que assistiu e educou centenas de mulheres pobres. Antonio
Conselheiro ao longo de sua caminhada ergueu e reparou templos e cemitérios, além
de providenciar aguadas e pequenos açudes para saciar as populações esquecidas
dos sertões. Quanto ao beato José Lourenço transformou em fértil e produtiva
propriedade as terras do Caldeirão.
Manoel Neto - Portal:
www.uneb.br/ceec
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