Por José
Romero Araújo Cardoso
Quando dos
festejos do reveillon do ano de 1923, em Triunfo (PE), acalorada discussão
envolvendo Marcolino Pereira Diniz e o magistrado local, de nome Dr. Ulisses
Wanderley, resultou em tragédia, pois o primeiro, filho do poderoso
"Coronel" Marçal Florentino Diniz, também sobrinho e cunhado do
"Coronel" José Pereira Lima, chefe político de Princesa, alvejou o
juiz, seguindo-se ainda disparo efetuado por homem da confiança do caboclo
Marcolino, conhecido por "Tocha". O magistrado ainda conseguiu
reagir, atirando em Marcolino.
Raciocinando
sobre a dimensão do fato, não restou outra alternativa ao guarda-costa de
Marcolino a não ser escapar da grande enrascada em que se meteram. Marcolino
foi preso, sendo constantemente ameaçado pelos familiares e amigos do magistrado
assassinado.
Pressentindo o
imenso perigo que o filho corria, o "Coronel" Marçal Florentino Diniz
recorreu aos préstimos de Virgulino Ferreira Lampião para retirar Marcolino da
cadeia em Triunfo. Lampião e seu séqüito composto de oitenta homens cercaram
Triunfo e exigiram a imediata libertação do prisioneiro, o que foi prontamente
atendido pelas autoridades locais.
Levado à Princesa, Marcolino recuperou-se do tiro que sofreu. Recrudescia a antiga
amizade entre Lampião e Marcolino. Fotos históricas retrataram Lampião e seus
"cabras", no ano de 1922, na Fazenda da Pedra, propriedade de
Laurindo Diniz, irmão do "Coronel" Marçal Florentino Diniz. Portanto,
era bem firmada a relação de coiterismo que foi estabelecida na região serrana,
fronteira do Estado da Paraíba com o Estado de Pernambuco.
Nos meses
seguintes, já no ano de 1924, houve combates intensos entre cangaceiros e
volantes pernambucanas. Entre Conceição do Piancó (PB) e São José do Belmonte
(PE) Lampião foi ferido no tornozelo, passando péssimos momentos em razão da
gravidade do estrago que o projétil provocou.
Dias se
passaram até que chegou ao conhecimento de Marcolino a situação que o
importante aliado estava passando. Foi enviado grupo de resgate, comandado por
Sabino Gório, para resgatar o cangaceiro.
Lampião foi
levado para o reduto de Marcolino, o lugarejo de Patos de Irerê, localizado a
cerca de 18 km de Princesa (PB), no sopé da serra do Pau Ferrado. Duas
propriedades de Marcolino - a Manga e o Saco dos Caçulas - eram antigos
valhacoutos de Lampião e seu bando, há tempos imemoriais.
O
cangaceiro-mor, substituto de Sinhô Pereira no comando do grupo que liderava
antes da retirada para o Estado do Goiás, foi tratado por dois médicos
contratados por Marcolino. Chamavam-se Dr. José Cordeiro e Dr. Severiano Diniz,
sendo este último parente próximo do homem que foi imortalizado com a esposa
por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira em belíssimo baião por título
"Xanduzinha".
Distante de
princesa, a cidade de Sousa vivia clima de ebulição. Disputas políticas
resultaram em tragédias, como a que envolveu o embate no barracão do
"Coronel" João Pereira, em Nazarezinho (PB), então distrito sousense.
Filho do
"Coronel" João Pereira, de nome Francisco Pereira Dantas, sentiu o
peso da moral sertaneja, desprezando conselhos do pai, o qual faleceu exigindo
que não se vingassem. Assassinou o único sobrevivente dos que atacaram o velho
patriarca em seu estabelecimento comercial.
Conversas a
boca miúda diziam que os mandantes da morte do "Coronel" João Pereira
eram pessoas importantes da sociedade sousense, como o destacado e influente
cidadão de nome Otávio Mariz.
Em um dia de
feira em Sousa, Otávio Mariz notou animada conversa entre um bodegueiro de
Nazarezinho (PB), de nome Chico Lopes, e "cabra" da inteira confiança
de Chico Pereira, de nome Chico Américo. A duração da conversa despertou a
desconfiança de Otávio Mariz.
Nas bancas da
feira procurou uma chibata para comprar, indo ao encontro dos dois
palestrantes. Encontrou apenas Chico Lopes. Aplicou-lhe surra magistral e
pediu-lhe para ir à fazenda Jacu, reduto dos Pereira Dantas, em Nazarezinho
(PB), avisar a Chico Pereira que tinha outra prometida para ele.
No Jacu, Chico
Lopes detalhou todo acontecido. A família do "Coronel" assassinado
perguntou-lhe o que ia fazer, tendo Chico Lopes respondido estar decidido ir
até Princesa, conversar com Lampião sobre o melindroso e humilhante assunto.
Havia um irmão de Chico Lopes que integrava o bando de Lampião há alguns anos.
Isso facilitou a decisão do chefe supremo do cangaço em enviar dezessete homens
de sua confiança para Nazarezinho. Antônio e Levino Ferreira, bem como
Meia-Noite e Sabino Gório, também integravam o grupo que iria se
responsabilizar pela mais aviltante ação cangaceira no Estado da Paraíba.
Notícias
corriam céleres, dando conta da aproximação do grupo cangaceiro. Em Sousa
alguns aventavam a hipótese de organizar defesa, mas como não acreditaram na
possibilidade de tamanha ousadia, relaxaram completamente.
Ao chegar ao
Jacu, os dezessete homens foram recepcionados efusivamente. O número final de
bandidos prontos a atacar Sousa, aumentado com muitos da região, somava oitenta
e quatro quadrilheiros dispostos.
Antes do
amanhecer do dia 27 de julho de 1924, os bandidos cortaram a linha do telégrafo
e invadiram Sousa, cuja maioria da população foi pega totalmente desprevenida.
Pequena resistência partiu da residência de Otávio Mariz, principal alvo dos
atacantes. Experiente e tarimbado sertanejo, Otávio Mariz escapuliu quando viu
que não poderia resistir ao implacável ataque.
Tudo em Sousa
virou alvo de saque, os cangaceiros roubaram o comércio, residências, tudo,
prejuízo incalculável que marcou indelevelmente a história sousense.Feras
endiabradas davam vazão a todos os instintos selvagens possíveis e imagináveis.
O destacamento local, comandado pelo então Tenente Salgado, não conseguiu
realizar qualquer ação de defesa em Sousa, verdadeiro suicídio se tivesse
havido consumação.
Grupo composto
de quase duas dezenas de bandidos, liderados por cangaceiro conhecido por "Paizinho",
teve como alvo principal a residência do juiz local, de nome Dr. Archimedes
Soutto Mayor. "Paizinho" tinha queixas pessoais contra o magistrado,
a quem acusava de tê-lo condenando injustamente. Retirado ainda com roupas de
dormir, o Juiz foi submetido a todo tipo de suplicia e humilhação, sendo
forçado a andar de cangalha e em posição vexatória pelas ruas de Sousa. O ato
final seria o assassinato do magistrado, mas Chico Pereira interveio e evitou a
consumação do ato extremo.
O magistrado,
depois de tudo, no ensejo dos desdobramentos do audacioso ataque cangaceiro à
cidade de Sousa, assumiu a responsabilidade de fazer merecida justiça contra
àquelas feras que o atacaram.
A rede de
informações montada por Lampião era impecável e precisa. Logo ele ficou sabendo
dos estragos em Sousa e, principalmente, do que fizeram com o juiz. Rodopiava
nos calcanhares, ainda sentindo dores terríveis, empunhando Parabellum e
raciocinando sobre o futuro dali para frente. Homem de raciocínio rápido,
Lampião sabia que em breve enfrentariam duras batalhas contra as forças
volantes paraibanas, extremamente tolerantes devido ao respeito ao
"Coronel" José Pereira Lima e a Marcolino Pereira Diniz.
Lampião estava
certo. A providência inicial do recém instalado governo de João Suassuna foi a
instalação do segundo batalhão da Polícia Militar Paraibana na cidade de Patos
das Espinharas, com absoluto aval para dar caça ininterrupta aos cangaceiros. A
responsabilidade pela iniciativa maior de efetivar a campanha paraibana contra
o cangaço liderado por Lampião coube, naturalmente, ao "Coronel" José
Pereira Lima.
Não obstante a
proteção que Lampião desfrutou em Princesa, seria inadmissível que o chefe
político das terras da lagoa da perdição tolerasse tamanha afronta,
principalmente em razão da forma como o magistrado sousense foi humilhado pelos
cangaceiros.
No ensejo da
caçada movida contra os bandoleiros, há fato digno de registro, referente à
resistência efetivada pelo cangaceiro Meia-Noite em uma casa de farinha no
sítio Tataíra, fronteira entre os estados da Paraíba e de Pernambuco. Na
companhia da esposa, Meia-Noite, embora a mulher não tenha participado do
combate, enfrentou combinado de volantes, comandados pelo então Tenente Manuel
Benício, e tropa de cachimbos (civis em armas) contratada pelo
"Coronel" José Pereira. Meia-Noite lutou contra oitenta e dois
homens, ferindo dezoito. Escapuliu do tiroteio, mas a esposa ficou no local em
que se entrincheirara, sendo depois conduzida à cadeia de Princesa. No local,
conforme Érico de Almeida, primeiro biógrafo de Lampião, autor do livro
"Lampeão, sua história" (1926(1ª ed.), 1996( 2ª ed.), 1998(3ª ed) ),
foram encontradas quatrocentas e noventa e duas balas de fuzil mauser DWN,
modelo 1912.
Em seguida,
devido às volantes paraibanas estarem assanhadas com a ordem capital de darem
combates violentos aos cangaceiros, inúmeros enfrentamentos foram registrados,
como a batalha do Tenório, no ano de 1925, quando Levino Ferreira foi
assassinado pelo volante Belarmino Morais, comandado pelo então cabo José
Guedes. Como forma de se vingar do "Coronel" José Pereira, a quem
culpava pela morte do irmão, Lampião e seu bando invadiram humildes
propriedades em princesa, como a do Caboré, assassinando diversas pessoas,
incluindo entre essas um ancião de provecta idade de noventa e dois anos e um
garoto de apenas doze anos.
O governo
paraibano invocou o convênio anti-banditismo, firmado no ano de 1922 em Recife
(PE), obtendo permissão para que suas forças de segurança pública em
perseguição aos bandoleiros adentrassem os territórios de outros estados
nordestinos.
O grupo
cangaceiro, em certa ocasião no ano de 1925, foi localizado na região de
Serrote Preto. Desprezando as mais elementares táticas militares, os volantes
paraibanos atacaram irresponsavelmente o valhacouto de Lampião. As estratégias
guerrilheiras foram implementadas impecavelmente pelos cangaceiros, resultando
em horrível carnificina, na qual pereceram os comandantes Tenentes Joaquim
Adauto e Francisco de Oliveira, além de mais de uma dezena de soldados.
Abalado com a
perseguição tenaz que as volantes paraibanas realizavam, Lampião evitou a
Paraíba, pois seus antigos protetores não estavam mais propensos a desafiar as
ordens do governo paraibano, bem como a decisão irredutível do
"Coronel" José Pereira Lima em buscar erradicar o cangaço liderado
por Lampião, pelo menos em terras paraibanas.
Para Chico
Pereira não houve outra saída, em razão da gravidade dos fatos ocorridos em
Sousa, a não ser acompanhar o grupo de Lampião pelas adustas plagas sertanejas.
Travou combate em Areias do Pelo Sinal, entre Princesa e o distrito de Alagoa
Nova (Hoje Manaíra), depois, vítima de picada de cascavel, em território
pernambucano, amargou provações inenarráveis.
O extenso
processo elaborado pelo Dr. Archimedes Soutto Mayor mostrou-se simpático a
Chico Pereira, eximindo-o de algumas culpas e louvando diversas interferências
realizadas quando do ataque cangaceiro do dia 27 de julho de 1924 à cidade de
Sousa.
Perseguido,
embora tolerado discretamente, Chico Pereira era, no entanto, alvo de olhares
vingativos, sobretudo em razão de suas práticas donjuanescas. Sedutor, Chico
Pereira desafiava importante elemento da moral sertaneja. Ao que tudo indica,
houve a sedução de uma sobrinha do governador norte-riograndense Juvenal
Lamartine, em Serra Negra (RN).
Provavelmente
houve um conluio entre Juvenal Lamartine e seu colega João Suassuna para
eliminar Chico Pereira. João Suassuna, através de irmão de nome Antônio,
empenhou a palavra sobre a total liberdade do homem que foi obrigado a se
tornar cangaceiro devido à morte do pai, motivada pela política acirrada dos
turbulentos anos da década de vinte do século passado.
Na festa da
padroeira de Cajazeiras, no ano de 1928, Chico Pereira foi detido por oficiais
da polícia militar paraibana. Manuel Arruda de Assis foi o responsável pela prisão.
Conduzido a Pombal, onde tinha praticado crime, quando do cerco ao velho
casarão de Antônio Mamede no sítio Pau Ferrado, Chico Pereira ia ser
transferido para Princesa, onde havia assassinado soldado de nome Pierre.
A escolta que
o conduzia rumou em direção a Santa Luzia. Havia um crime atribuído a ele em
Acari (RN), referente a um roubo praticado contra o velho "Coronel"
Quincó da Ramada.
Era parte do
esquema estruturado por Juvenal Lamartine para liquidá-lo. Joaquim de Moura,
famanaz executor de bandoleiros, foi o responsável pela morte de Chico Pereira.
O ataque do
bando de Lampião à cidade de Sousa foi um dos mais ousado ato praticado pelos
bandoleiros das caatingas, cuja marca indelével permaneceu por tempos e ainda
resiste na memória de poucos que tiveram a infelicidade de presenciar a
verdadeira baderna que os cangaceiros fizeram na simpática cidade sorriso no
longínquo dia 27 de julho de 1924.
(*) José
Romero Araújo Cardoso. Geógrafo. Professor Adjunto do Departamento de
Geografia da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte. Especialista em Geografia e Gestão Territorial
(UFPB) e em Organização de Arquivos (UFPB). Mestre em Desenvolvimento e Meio
Ambiente (PRODEMA - UERN).
Geraldo
Antônio de Souza Júnior (Administrador do Grupo)
https://www.facebook.com/HistoriasdoCangaco/posts/1078895625532642
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