Material do acervo do pesquisador Raul Meneleu Mascarenhas
Muitas
estórias se tem pra contar a respeito de Lampião. Quanto mais você estuda e ler
sobre o cangaceiro, mas estórias você encontra. Umas verdadeiras e outras
mentirosas, sendo essas últimas que fizeram mais e mais a fama dele e de seu
bando.
Compete aos
historiadores e pesquisadores ir a fundo nestas estórias para que as mesmas não
se tornem lendas descabidas e no suprassumo das pesquisas, desçam escorrendo
perante nossos olhos e mentes, a verdade através dos relatos dos que
conviveram com ele. Isso muitos de nós apreciadores dessa saga agradecemos a
presteza desse ilustres abnegados, que quase ou nenhum patrocínio dos museus
públicos tiveram e a maioria colocando dinheiro de seu próprio bolso, pelo afã
de amarem a História de Lampião, O Rei do Cangaço.
Trazemos a
atenção mais um relato bem embasado de quem pesquisou a fundo os atos e as
atitudes de Lampião, Frederico Bezerra Maciel. Nos relata com detalhes
preciosíssimos a aventura contada abaixo, do poder da fé que Lampião tinha ao
ser ferido em uma batalha na serra do Catolé. Vemos surgir pelas linhas do
autor de 'Lampião, Seu Tempo e Seu Reinado'. Vamos acompanhar com bastante
atenção esse relato, registrado no capítulo 21 do do livro II 'A Guerra de
Guerrilhas' onde poderemos enxergar um pouco, o homem que era
Virgulino Ferreira, o Lampião:
Diversos
autores têm repetido o engano de Optato ao afirmar que a odisséia do ferimento
do pé de Lampião se deu na serra das Panelas. A correção do engano foi
confirmada, entre outros, pelo Coronel Alípio Pereira de Sousa. A serra do
Catolé é, também chamada de serra do Padre.
Nas cumeadas
do Catolé
Depois de
Santa Maria, rumou Lampião, com aquele seu pequeno grupo de apenas nove homens,
para a serra do Catolé nos limites do município de Vila Bela com a Paraíba.
Considerando insuficiente o apoio de seu grande amigo, o coronel Zé Pereira,
limitado exclusivamente dentro de seus interesses políticos em Princesa, enviou
Lampião, logo ao chegar no pé da serra, seu irmão Livino, disfarçado em
"fazendeiro maranhense", para comprar armas e munições pelos
comércios distantes.
Ninguém como
Livino para essa missão comercial: tipo vistoso e simpático, puxado na cor
branca, maneiroso de trato e de boas falas convincentes, alto, moreno bem
claro, liforme de brim caque, gravata manta, chapéu de massa, de abas largas e
achatado na copa, botinas pretas, apresentando nome fictício, e dizendo-se
filho de fazendeiro do Maranhão, assim se apresentou, esse tipão de moço, na
casa comercial "A Sertaneja", de Pesqueira, a fim de comprar armas e
munições, alegando que eram contra bandidos pelas bandas de sua terra. Naqueles
tempos não havia ainda proibição de venda de armas e munições.
Comprou todo o
estoque: seis rifles Winchester 44, papo amarelo, quatro revólveres Smith &
Wess, niquelados, calibre 38, três revólveres Colt, cor preta, também, de
calibre 38, toda a munição, cerca de 1.700 cartuchos, sendo mais de 1.000 só de
bala de rifle. Pistola fogo-central ou comblain, não quis não. Pagou tudo à
vista. sem discutir menos. Num dos três armazéns dos fundos da mesma casa
comercial, virados para a atual rua Maestro Tomás de Aquino, fez a embalagem da
mercadoria em caixões de cerveja Pilsen, entre garrafas encamisadas com palha.
Despachou a "cerveja" pela Great Western, com destino a Rio Branco,
para de lá seguir em lombo de burro.
Desejando mais
munição, pediu o tal cidadão carta de apresentação para firmas da praça. Não
podia o comerciante e dono da "A Sertaneja", Orestes de Almeida
Maciel, que contou o presente relato com tanta minúcia, furtar-se de atender a
tão excelente freguez e entregou-lhe duas cartas, para Herm Stoltz e o Armazem
do Caboclo, não sabendo porém, se ele esteve por lá. Mais tarde, aquele
comerciante, diante de um retrato do famoso Livino Ferreira, identificou nele
os traços daquele "filho do fazendeiro", não querendo, entretanto,
afirmar categoricamente, mas apenas com "quase certeza", que era o
mesmo.
Carecia
Lampião entregar-se a algum repouso. Subiu a lombada íngreme da serra, por
motivo e razão de mais seguridade, sob afirmação garantida e repetida de Cícero
Costa de que não havia volante por perto, todas em Vila Bela. Construídos no
cocuruto da elevação, para arranchação, alguns quixós, com arcabouço de varas,
revestimento e coberta de palha de catolé. Deslumbrante e maravilhoso o
panorama descortinado de lá de cima.
De um lado, a
serra da Pedra do Reino, com os dois gigantescos monólitos no cimo, esguios e
irmãos, coroados de malacacheta faiscante aos raios do sol... — envoltos, esses
grandiosos blocos, nos mistérios da lenda sebastianista do desencanto, ao
bárbaro custo de sangue e vidas, de um rei outrora desaparecido... — ou
envolvidos das névoas que, descendo se esgarçavam, se estendendo e se
espalhando, pelas imensuráveis ondulações mansas dos vales e vargedos, até o
desalcance da vista... Tudo agora verde com o inverno copioso, espelhando,
também, em filetes de riachos e córregos e em conchas de lagoas, o prateado de
suas águas abendiçoadas. O sertão virando mar... À noite, a cruviana,
assobiando fino, varria de frio o cabeço do monte, encriquilhando até mesmo os
chapéus de couro»...
A força da
oração
Em surdina,
partiram de Vila Bela, guiados por informações e no rumo da mesma serra, três
poderosas volantes, sob o comando geral do próprio major Teófanes Torres. A
sua, tendo como imediato o sargento Alípio Pereira e as outras duas sob o
comando dos tenentes Ibraim e Amadeu. Coisa para mais de cem soldados.
Teófanes, ao
passar com sua tropa pela casa do Tibúrcio Severo, prometeu-lhe dez contos se
dissesse onde estava Lampião. Embora conhecendo o esconderijo, respondeu-lhe o
fiel Tibúrcio:
— "Ah! Se eu soubesse para ganhar agora tanto
cobre!..."
Próximo da
subida da serra, pegaram o coiteiro que transportava para Lampião carne de sol,
farinha, rapadura, queijos, víveres e outras coisas mais, num jogo de malas de
couro cru, carregadas em jumento encangalhado. Os oficiais apertaram o
coiteiro, obrigando-o a levar as tropas até o esconderijo do grupo.
Os oito
cangaceiros, embora arretados com suas armas e apetrechos, como era sempre de
costume por maior precaução e seguridade, estavam ali bem descuidados. Uns
deitados, outros jogando, nos doces esquecidos da vida.
Pela manhã do
dia 26 de março, teve Lampião um de seus misteriosos e sempre certos
pressentimentos. Deixou o fiango em que descansava e quando dava uma volta para
fariscar os arredores da meia serra, apercebeu um roteio à sua direita. Que
quando se volveu para espiar o que era, recebeu vários tiros lançados quase de
uma vez só. Deu, de logo, queda de corpo e reagiu na bala, enquanto seus
cabras, atentos desde à sua estranha saída, imediatamente, de suas boas
posições, fizeram fogo nos atacantes, que iam subindo pelos arrastadores das
covoadas.
Rebolando,
coleiando e se arrastando, conseguiu Lampião acabar de descer a serra. Nesses
entões, teve a estranha sensação de lhe faltar o pé direito. Realmente, estava
ferido, e horrivelmente, por uma bala que lhe atingiu o mocotó, pelo lado de
dentro, na região do astrágalo, esfachiando os ossos. A sangreira, sem parar,
havia salpicado suas pegadas em todo o trajeto da descida. Tirou a camisa,
rasgou-a pela metade e aplicou uma bandagem compressiva, enrolando com ela, e
com bem de força, o pé estraçalhado, a modo de ver se estancava o sangue. E,
cadê poder andar! Nem mesmo ficar em pé... de dor, de desapoio da perna e de
fraqueza do corpo pela perda do sangue.
Nisto chegaram
seus companheiros. Enquanto Antônio Ferreira, Luís Pedro, Sabino, Antônio Rosa
e Meia Noite lhe davam cobertura, respondendo ao avanço desordenado dos
soldados na mataria, os outros cabras trataram de conduzir seu chefe,
revezando-se entre si no carrego, segurando-o pelas extremidades, ombros e
pernas. Até que o hercúleo latagão negro vilabelense, Capuxu, tomou
exclusivamente para si essa tarefa. Ele levava Lampião escanchado ou de mochila
nas suas espadaúdas costas. Andava veloz deixando o ferido bem longe e voltava
para a brigada. De novo pegava o baleado e repetia o mesmo, assim
sucessivamente, até que Lampião ordenou o deixasse escondido ali num
pequeno balseiro coberto por densa moita de saia de ariú*, e depois, que fosse
ele brigar e dissesse ao pessoal que abrisse a luta na direção oposta, para os
lados da lagoa do Vieira, a modo de livrá-lo da sanha dos macacos. Nesse então,
foram mortos Cícero Costa e Lavandeira. Era soldado só, os seiscentos,
passando, correndo, gritando, atirando, berrando descomposturas e os piores
nomes. Enquanto o pequeno grupo de cangaceiros se esbandaiava pra todos os
lados.
*Saia de ariú
conhecida, também, por folha de carne ou ainda sipaúba. Mofundo da família das
combretáceas (dicotiledêneas das regiões quentes). Arbusto comum nas catingas,
uma tormentosa em forma de cipó, formando moitas no chão em calotas de dois a
três metros de diâmetro. Utilizado, na canícula do dia, como abrigo de dormir
para gente, bichos, domésticos e cobras. Seu nome científico na classificação
de Mártius: "Combretum ascandens".
Lampião,
sozinho, de dentro da moita, botou bala na agulha de seu mosquetão e aguardou o
desenrolar do cerrado tiroteio, distante e, aos poucos, raleando, até se
findar. Mudou o pano ensopado de sangue, que não parava de correr. Sentia-se
cada vez mais fraco, pálido sem um pingo de sangue, dores, extremas,
insuportáveis, terebrantes ou verrumantes, produzindo uma ardência de
queimadura em alto grau. Botou o pé para cima, apoiando-o na beira do buraco. A
coloração do pé passava de roxo para negro. Era o começo da gangrena destruindo
os tecidos pela necrose acelerada.
Observando que
Lampião não estava na luta, deram os soldados de procurá-lo vasculhando por
toda parte. Locas de pedra, moitas, pé de pau, subidas, descidas, buracos,
valados... Bateram tudo. Sumiço misterioso! O major ficou indignado ameaçando
ninguém sair dali enquanto ele não fosse encontrado ou se desse notícia dele. A
busca redobrou, agora com rastejadores tirando as mínimas indicações dos
rastos. De seu frágil e inseguro esconderijo, Lampião assistia a tudo: ao
movimento dos soldados, falando e discutindo, reclamando e ameaçando, nos ires
e vires, para lá e para cá, sem fim. Alguns grupos de soldados se aproximando,
bem perto de seu esconderijo, dialogavam e passavam adiante:
— "Que demora
é essa, ninguém sai daqui hoje não?"
— "É orde
do majó. Tem sangue por toda parte e é perciso pegá a pista principá".
Outros:
"Tou c'uma fome danada". Comeram o resto de rapadura que tinha nos
bornais e caíram fora.
Outros mais: -
"Sargento Alípio, venha cá!
— "Que
é?" — perguntou o sargento. -- "Por aqui tem cangaceiro ferido, já vi
alguns pingo de sangue nas foias..." E se foram.
Finalmente,
estoutros: O soldado Manuel Amaro se achegando mais de perto, obra de cinco
metros da moita, disse:
— "Aquele peste da bexiga tá é naquela
moita!" E esquadrinhava com o olhar a moita, enquanto outro dois seus
colegas diziam:
— "Ele é lá cobra ou calango pra tá em moita?"
—
"Ele tá é na casa de Tibúrcio Severo, em Santa Rita".
Compreendeu
Lampião que havia chegado a sua hora. Nada poderia fazer. Nem sequer usar o
mosquetão, de tão fraco, exaurido. Ele que todo o tempo passou pedindo a
proteção de Deus e de sua Madrinha, a Virgem da Conceição, ia agora, nessa
emergência suprema de sua vida e do seu destino, mais uma vez se valer do poder
da fé.
Quebrou um
talo de capim, segurou-o verticalmente na frente de seu rosto e rezou com toda
a alma e fé a seguinte oração de envultamento, que lhe dera um preto velho,
morador de Né Sinhô:
- "Com o manto de Deus me cubro, com o manto de Deus
me guardo, com o manto de Deus me escondo, com o poder de Deus vencerei meus
inimigos". Avoou o talo de capim para trás, por cima do ombro direito, e
encarou de frente o soldado, agora mais aproximado, os dois, ele e o soldado,
se olhando fixe um para o outro. Espantoso! O soldado olhou, fixou bem nos olhos
de Lampião e não o viu!... Uma força misteriosa o cegara. Nesse momento ,
alguém gritou: - "Cuma é? vamo enterrá Lavandeira e Cirço Costa?"
Desviando a
atenção da moita, voltou-se o soldado para um companheiro que respondia ao
primeiro:
—
"Ninguém é coveiro de cangaceiro não. Deixe eles malas-sombrando a
serra".
E os três se
retiraram...
Não suportando
mais a tensão emocional, torturado por um complexo de terríveis sofrimentos
produzidos pelo pé ferido, pelo sangue esvaído, pela febre, pela fome e pela
sede, Lam-pião foi sentindo, numa zonzeira de bêbado, a cabeça rodar em
confusão, a vista tornar-se alazã, as vozes que ouvia se sumirem... Terminou
lhe dando a grangulina. Ao tempo que tudo isto sucedia, conseguiu Antônio
Ferreira, tiroteando a espaços, puxar as volantes para o lugar chamado Barros,
uma légua mais além, adonde, emboscado com seus cinco companheiros, surpreendeu
as volantes, ferindo três soldados, dois deles gravemente, que logo passaram a
pronto. Isso foi o bastante para Teófanes suspender a persiga e voltar a Vila
Bela.
Medicina
sertaneja
Quanto tempo
ficou Lampião desmaiado, nunca pode ele saber calcular. Apenas percebeu, quando
deu acordo de si, que era o dia seguinte, já sol alto. Apesar de esmaecido
de tanto sofrer, viu que ali, naqueles esquisitos, não podia ficar. Morreria à,
míngua. O pé ferido tinha apodrecido com a gangrena bacteriana. Moscas e outros
insetos do mato depositaram na ferida seus ovos e os incubaram. Suas larvas ou
tapurus — os bichos de mosca —, proliferavam em abundância. O mau cheiro era
nauseabundo e estonteante.
Com esforço
sobre-humano, movido apenas por sua espan-tosa vontade de ferro, foi Lampião se
arrastando penosamen te, conservando a perna direita levantada, por cima de
pedras, espinhos e tocos, numa extensão que parecia sem fim, de Urnas trezentas
braças (1.320 metros!), até chegar perto de uma vareda. Todo rasgado, sujo, o
corpo lapiado, arranhado e ferido, batendo o queixo de febre e frio, clorótico,
as feições contrafeitas de dores desde a cabeça aos pés, irreconhecível... Abrigou-se
sob outra moita, pelos sinais, vasculhada pela polícia. O suplício da sede, o
pior dos mais. Uma agonia louca, de matar.
De novo saiu
se arrastando apenas umas três braças para comer um mato chamado
"alva" e trincar Lins frutos tempo-rãos de imbu, verdes, azedos,
murchos e duros, achados por acaso, atirados, talvez, de badoque, por algum
menino brincando de caçar. A boca amargava só fel. A língua grossa,
saburrosa. A garganta seca de estalar. De mansinho apareceu uma vaca reboleira
pastando por perto. Com um ramo de mato, balançando para chamar, conseguiu
Lampião atraí-la para junto de si. Mesmo deitado, tentou mungir o leite, sem
peia nem cuia, diretamente por esguicho da teta para a boca. A vaca estranhou e
deu-lhe violento coice na boca do estômago. Lampião, estatelado de dor,
enroscou-se no próprio corpo quase perdendo os sentidos...
Com muito
tempo, arquejando, voltou à moita. A tardinha, passava pela vereda um menino
chamado Tonho Terto, de cerca de doze anos de idade, com uma cuia vazia do
leite de freguezia, que fora entregar. Lampião lhe avoou uma pedra de
advertência e chamada, porque não tinha força para falar alto. O menino se
assustou e correu. Parou e ficou espiando de longe. Não divulgava o
desconhecido que, deitado, fazia acenos com a mão, chamando-o. Precavido,
apanhou uma pedra,. cujo tamanho lhe encheu a mão, e, confiado na velocidade de
suas pernas, foi se achegando. Parecia-lhe o homem estar doente. Quase não
reconhecendo e repugnado com o mau cheiro, perguntou admirado:
— "seu
Lampião?? — "Me acode, esse menino, sou eu mesmo. Vai logo dizer a teu pai
pra trazer uma cabaça d'água e um taco de rapadura". Dando engulho, saiu o
menino correndo. E dentro de meia hora estava de volta com seu pai, o
mezinheiro Zeca Terto, o Ingá, que além de água e rapadura levava uma
garrafinha com leite.
Diante do
velho que se mostrava penalizado, disse Lampião:
— "É a vida, Zeca".
Do jeito que estava com sede, compreendeu Lampião que, se tomasse água,
morreria. Tomou, então, alguns goles de leite em uma quenga de coco. O
estômago engrolou, não sustentou e grumitou tudo. Soprando de cansaço,
agoniado, e dando massagem circular no abdômen ainda muito dolorido do coice,
deixou passar uns cinco minutos. Bebeu, de novo, mais uns goles, que o estômago
segurou. Mas, o leite deu na fraqueza, vindo-lhe um suor de bica e uma gastura
que parecia ia morrer, quase um esfalecimento.
Pediu a Zeca:
— "Veja
se descobre alguém, se é que sobrou, desse ataque dos macacos".
Enquanto
mordiscava o taco de rapadura e ia molhando a garganta com água, a noite
descia, apavorante de escura e triste, ameaçadora com os silvos das cobras e os
miados de gatos selvagens, agoirenta com os pios lúgubres dos caborés e o voo rasgado das corujas. Noite fria. Deitado em chão úmido, dores abrasadoras como
fogo, os bichos lhe devorando o pé e lhe tomando o corpo todo até pela boca,
nariz e olhos, assim passou Lampião a noite, a pior de toda a vida sua.
Terrível noite de sofrimento além de toda a imaginação! Pouco antes do
quebrar da barra do terceiro dia, chegou Antônio Ferreira com seus cinco
restantes companheiros (Luís Pedro, Sabino*; Capuxu, Antônio Rosa e
Meia Noite), todos conduzidos por Zeca de Terto, ao lugar em que estava
Lampião.
Começou
Antônio a chorar vendo seu irmão em tão lastimável estado.
Já afeito aos
horrores do sofrimento, disse-lhe Lampião:
— "Pensei não ter mais ninguém
vivo de vocês. Se os macacos tivesse cabeça, tinha pegado a gente tudinho na
unha. Antônio, vá logo me arranjar ácido feno, creolina e sabão".
Enquanto
Capuxu, montado num animal em osso, emprestado por Zeca, partia a todo o galope
atrás das três mezinhas, Antônio e os outros começaram a prestar os primeiros
socorros possíveis ao ferido.
*Havia pouco
Sabino Gomes entrara no grupo de Lampião, vivendo quatro anos no cangaço. Baixo,
moreno, robusto, cria de Marçal Fiorentino Diniz, proprietário da fazenda
Abóboras, em Vila Bela, limitando-se com Triunfo. Sabino era vaqueiro da
fazenda e cambiteiro de cana. Uma particularidade sua: falava tão manso e tão
baixo que era preciso esforço para ouvi-lo. Tornou-se um dos mais famosos
cangaceiros, dotado de grande coragem, chegando a pertencer ao Estado Maior de
Lampião no cargo de lugar-tenente. 6. A creolina é muito usada no sertão para
evitar o bicho da mosca.
Transportaram-no
para debaixo de copado pé de imbuzeiro ali à pequena distância da lagoa Vieira.
Desenrolaram o pano imundo, entufado de postema e com bandas coladas ao pé
negro, putrefato, e aos ossos quebrados, expostos. Tiraram-lho a roupa. A perna
esquerda da calça foi preciso ser rasgada para poder sair pelo pé doente e
dolorido. Com galhos finos de mato foram lho raspando os tapurus do pé e os
espalhados polo corpo. A fedentina era repelente. Quando Capuxu chegou,
procederam primeiro à limpeza. Banho com sabão e muita água trazida, em potes,
da lagoa. Ficou uma grande poça d'água no local. Mudaram o ferido para o -outro
lado do imbuzeiro, deitando-o sobre um colchão do folhas de carne. E, enquanto
o corpo enxugava com o ar, aplicaram no pé necrosado a creolina, empapando bem
as partos, em estado de putrescência, e pulverizaram-no com ácido fênico. Sob
esse duplo tratamento, Lampião quase morria. Chegou a esmorecer e revirar os
olhos. Aperreado, Antônio Ferreira lho friccionou ativamente a testa e vigorosamente
o peito, reanimando-o. Apesar das grandes dores, foi se acalmando. A poderosa
ação bactericida do fenol e do creosoto, simultâneos, deteve, o andamento da
gangrena gasosa de segundo grau.
Vestiram-lhe a
roupa, depois de lavada e enxugada ao sol. Arado de fome, e ainda zuruó, tomou
a primeira refeição após três dias de completo jejum: angu de milho com leito,
raspa de rapadura e uma xícara de café. Em vez de levar seu irmão para a casa,
ali perto, de Zeca de Terto, o que poderia comprometer o amigo e sua familiar
diante da polícia, resolveu Antônio Ferreira transportá-lo para mais longe.
Para uma grande furna de onça, existente naquelas quebradas, com capacidade de
abrigar umas vinte pessoas, lugar fechado e seguro. Como o animal, em que tinha
viajado Capuxu, estava exausto e todo estropiado, ofereceu Zeca de Terto um
chorão no qual Lampião foi montado e puxado devagarinho, sustentado pelos
acompanhantes. Já tardinha, o sol pendendo, teve receio Antônio Ferreira de não
acertar o caminho no escuro. Ordenou aos outros pros-seguissem mais devagar,
que ele iria correndo, quebrando à direita, chamar um amigo para guiá-los.
Na gruta
Terminada a
janta, sentara-se o velho João Menezes no largo banco de aroeira sob o copiá de
sua casa. Descansando dos labores da roça, espairecendo e tirando gostosas
baforadas de seu paisano. Nesse quando, despertou-lhe a atenção um forte
assobio prolongado, de alarme, que ouviu partido de debaixo de uns pés de canafístula. Botou a mão em pala sobre os olhos a modo de divulgar quem. Sua
vista, cansada e curta pela idade, apenas percebeu um vulto indistinto que
acenava, chamando-o. À medida que o velho tomava chegada, ia verificando se
tratava de um cangaceiro bem arreado. Finalmente, reconheceu Antônio Ferreira,
que lhe deu as horas e pediu para conduzi-lo, naquela hora, para a grande furna
de pedra, inclusive porque, sem dizer quem, levava gente doente. O bom do
velho, prestativo, acedeu. Com bem quinhentas braças deixaram os dois a
estrada, e, por um atalho, embrenharam-se na catinga. Palmilhadas mais umas
duzentas braças, encontraram o grupo dos cinco conduindo Lampião. Depois de
salvar o velho João, disse-lhe Lampião:
—
"Preciso passar uns dias na furna me tratando. Mas, não tenha medo não,
que ninguém vai na sua casa. Todo negócio é aqui nesse lugar. Não se faz compra
em Pernambuco, mas no Riacho de Santa Inês" (hoje Inês, povoado de
Conceição, PB). Seu João prontificou-se a ajudá-lo. Chegando à furna, Lampião
lhe deu dinheiro para as despesas, dizendo que, no dia seguinte, voltasse com
cabaças d'água, carne já assada, víveres e meizinhas para tratar dele, bom
curandeiro que era o velho João, conhecido naquelas redondezas.
No pé da
serra das Abóboras, que extrema com a, serra da Bernarda, mesmo na fazenda
Abóboras (Vila Bela), existe a Gruta do Cangaceiro. - E em Triunfo existe a
Furna de Lampião. Distante da cidade uma légua, como quem vai para Jericó (hoje
Iraguaçu). Depois da serra de Jardim, vem a de Santo António e aí, no sítio
Bartolomeu, pertencente a Marçal Paulino e perto de Periperi, a 1.060 metros de
altitude (onde instaladas recentemente as antenas de micro-ondas), fica a
Furna. Formada por três pedras, duas na frente e a outra atrás, fechando. Em
seguida à entrada, descendo mais de um metro. Dentro há um salão de 3x4 metros.
Por trás há saída. Junto à gruta, outra pedra, grande, redonda, apoiada em
pequenas pedras e com inscrições indígenas.
Sabedor de seu
tio Cândido Ferreira passando dias com Cornélio Soares, na Cachichola*, grande
fazenda situada do outro lado do rio, em Vila Bela, escreveu-lhe Lampião
pedindo uns remédios, entre os quais terebentina. Cândido mostrou a carta a seu
amigo Cornélio que mandou aviar os medicamentos na farmácia de Diocleciano
Epaminondas Maciel. Portador expedito e secreto, tanto da carta como da
resposta, foi Tibúrcio Severo.
* Em
consequência dos acontecimentos de Nazaré, no ano de 1923, resolveu Cândido Ferreira,
a conselho de seu compadre e amigo Cornélio Soares, ir morar na propriedade
deste, chamada Cachichola, onde chegou a 16 de agosto de 1923. Fugia das
perseguições. Ademais não era nada bom ver seus filhos crescendo no meio de
ódios, vinganças e lutas. Certo dia, Cândido fora visitar Cornélio, que se
achava bastante doente, na rua. Agradeceu o enfermo o oferecimento dos
préstimos de seu compadre, prometendo mandar chamá-lo caso piorasse. Alta
noite, Cândido ouviu bater na porta de sua casa na fazenda. Maginou tratar-se
de Cornélio. Mas, era Macário, seu morador, que viera para ensinar sua casa a
Lampião. Cândido, espantado, perguntou: —"Que tanta gente é essa?" —
"São seus sobrinhos que vim trazer" — respondeu Macário. Cândido,
agastado com uma noite mal dormida, preocupado com a doença do amigo, replicou:
— "Hoje é dia de azar. Queimou-se o meu cercado e agora vocês chegam com
tanta gente!" Um inimigo de Lampião, chamado Lúcio Ferraz, ali refugiado,
saiu escondido pelos fundos da casa, ganhando a catinga. Lampião e seus cabras
entraram, conversaram com Cândido, já calmo, e com o pessoal da casa, tomando
café bem acompanhado. Nessa ocasião, todos no mais absoluto silêncio, ouviram
dos próprios lábios de Lampião a narrativa minuciosa e patética, conforme o
presente capitulo, do balaço no tornozelo e como foi tratado, inclusive por
Tibúrcio Severo, na fazenda Santa Rita, município de Vila Bela. Em seguida,
despediu-se com os seus e rumou na direção de Floresta sob a claridade leitosa
e tranqüila do luar. Quanto a Lúcio, vamos encontrá-lo, no dia seguinte, em sua
casa, em Vila Bela. "Parecia um ouriço-cacheiro, todo cheio de espinhos de
quixabeira, mandacaru e macambira. A gente não podia se encostar nele..."
No Saco dos
Caçulas
Deixando seu
irmão em bons cuidados, partiu Antônio Ferreira, a toda a brida, para Princesa,
onde participou ao coronel Zé Pereira o ocorrido. Dentro de cinco dias,
precisamente no dia 3 de abril, chegou de volta Antônio Ferreira com um grande
grupo de cinquenta cangaceiros, fornecidos pelo coronel Zé Pereira, da sua
cabralhada, a fim de transportar Lampião, com toda a segurança, para a fazenda
Saco dos Caçulas, em Patos de Princesa, pertencente a seu cunhado Marcolino
Pereira Dinis. Ali, às expensas de Zé Pereira, foi Lampião operado pelo médico
Dr. Severiano Dinis, de Triunfo, na recomposição dos ossos esfacheados da
fratura cominutiva. Além de aplicar tratamento pelo espaço de três meses,
inclusive na convalescença. Outro médico, também de Triunfo, Dr. José Cordeiro,
na ausência daquele, assistia ao enfermo.
Durante todo
esse tempo, Lampião era guardado por cangaceiros que, de espaço em espaço e em
pontos estratégicos, montavam incessante e rigorosa sentinela,
demonstrando assim seu apreço e estima ao grande Chefe. Recebeu Lampião, em
caráter sigiloso, muitas visitas de "gente fina": do coronel Zé
Pereira e seus correligionários, de autoridades, de doutores, de coronéis, de
fazendeiros e até dos reverendos padres Floro Dinis, vigário e prefeito de
Princesa, Eliseu Dinis e José Leal (vulgo Padre Bezeca), respectivamente esses
dois últimos vigário e prefeito de Triunfo. Todos por solidariedade, cortesia
ou curiosidade. Durante sua convalescença, duas esbeltas e despachadas
caboclas, rivais em carnagem e beleza, Ciça e Mailurde, cuidavam de Lampião. A
primeira, alta e alva, longos cabelos castanhos claros, lhe costurava as
camisas, serzia a roupa, que também lavava e passava a ferro, entregando-a
sempre perfumada com água de cheiro. A segunda, baixa, olhos esbugalhados
e bunduda, amorena-da, lhe preparava papas, quitutes, o de comer. Ambas, cada
qual por sua vez, lhe penteavam o cabelo, botando brilhantina para brilhar e
cheirar.:. cortavam-lhe as unhas... num desvê-lo minucioso em tudo. Mormente,
emprestavam-lhe todo o carinho e ternura feminina, sem restrição. Certa
vez, houve entre as duas uma cena de coirana, apaziguada pela interferência de
seu bem-amado. Os cangaceiros gostavam de ver que, nessas xumbregações,
sutilezas e doçuras femininas do amor, a recuperação de seu Chefe se apressava.
Durante as
folgas amorosas, escrevia Lampião em um caderno a sua vida, desde a infância,
em forma de diário*. Cometia poesias sentimentais decantando as belezas do
sertão e suas legendas heróicas nas figuras dos vaqueiros, beatos e
cangaceiros... Aos cantadores seus amigos, que foram visitá-lo, cedeu esse
farto material poético. Muito folheto da literatura de cordel, vendido nas
feiras, com o nome de certos cantadores, até de celebridade, tinha sido da lavra de Lampião, que, com seu nome, não deixariam
as autoridades da época publicar.**
* De se
lamentar, para a História, a perda desse diário de Lampião, assim como, mais
tarde na tragédia de Angico, a perda das cartas e bilhetes que recebia de seus
amigos coiteiros — o Arquivo de Lampião!
** Alguns
manuscritos de Lampião para publicação em folhetos de feira, fazendo parte da
literatura de cordel. tinham os seguintes títulos: "Gibão dourado",
"Cacimba nova do boi apadrinhado", "Minha Flor Morena",
"Alegrias da casa paterna"... talvez, se publicados, com nomes
mudados.
Tentação de
Lampião
Comparando
essa nova vida de tranquilidade e amor, tão diferente da vida no cangaço cheia
de perigos, nasceu sutilmente em Lampião forte tentação de se entregar às
autoridades, mediante garantia de vida para si e todos os seus comandados.
Apresentou sua pretensão a seu irmão Antônio, que concordou. E quem melhor
intermediário do que Padre José Kehrle, além de digno sacerdote, seu amigo e
conselheiro? Enviou-lhe, pois, um positivo secreto com carta e minuciosas
instruções suplementares. Mandou o Padre José chamar Teófanes que estava
ausente, em sua fazenda. O major quis logo saber onde estava Lampião e muitas
outras coisas.
—
"Compreenda, major — disse o padre. Não insista. Seria eu um perjuro se
revelasse. Teria de renegar meu sacerdócio quebrando um sigilo. E isto nem com
a morte!" Abufelado, respondeu o major: — "A vida de Lampião e seus
irmãos eu posso garantir. Mas não a dos cabras. Mato sem deixar um".
Escreveu o
padre uma carta a Lampião com o resultado do entendimento. Aliás, sempre
prevenido, não revelou Lampião nem mesmo ao padre José onde ele realmente se
encontrava. O secreta enviado pelo vigário deveria entregar a determinada
pessoa a correspondência. Esta pessoa por sua vez, sem saber onde se encontrava
Lampião, teria de passar a carta a outro mais adiante. E assim sucessivamente,
de mão em mão, em cadeia de portadores, exceção do último, todos desconhecendo
o esconderijo do Chefe.
Lamentou
Lampião lhe negarem oportunidade de reabilitação...
Foi quando ele
escreveu o poemeto que assim começa: — "Para minha infelicidade Entrei
nesta triste vida..."
Semanas
depois, o Padre José encontrou, no lugar Saco da Roça, seu amigo Lampião,
montado a cavalo, no coice da tropa. Estava ele muito manco. Sugeriu-lhe o
padre ir, de caminhão, com ele, até Recife, a fim de se entregar ao próprio
Chefe de Polícia. Antes de qualquer resposta do irmão, revoltado retrucou
Antônio ao padre: — "Não! E não! Teófanes manda matar a gente no caminho
quando nós tiver de voltar para o juri em Vila Bela". E resoluto
virando-se para Lampião: — "E depois, meu irmão, prefiro te ver morto, até
mesmo pelas minhas mãos, do que te ver desmoralizado nas grades de um xadrez!
..."
Diário de
Guerra
9 de julho:
Num tiroteio na fazenda Situação, na ribeira do riacho São Domingos, foi morto
o famoso Antônio Rosa, e ferido outro cangaceiro, que se evadiu, com o grupo,
para a Paraíba.
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