Por Rangel Alves
da Costa
Só mesmo
sorvendo um bom café para suportar o inconformado amigo repetir sobre um
suposto golpe ou defender indefensáveis como se anjos fossem. Toma mais um
gole, acende um cigarro e vem com ensaios verbais típicos de quem não leu outra
coisa senão a cartilha vermelha. Até desconfio que deseje me engasgar quando,
no exato instante que levo a xícara à boca, começa a falar das maravilhas do
crescimento econômico e da bonança que vive a sociedade brasileira atual.
Tudo bem, cada
um diz o que quer. É o velho Voltaire comendo o nosso juízo por respeito ao
direito de expressão. Dá vontade de ir mesmo ao popular e dizer que não há
cegueira maior do que aquela que não quer enxergar a realidade. Mas acabo indo
de um filósofo qualquer inventado na hora: Não aceitar derrotas é acumular
vitórias de ilusão. Mas chega o dia que de tanto falsamente ganhar se sente
completamente derrotado. Quer novamente fingir e não pode, pois nem a ilusão
lhe pertence mais.
Mas nem todo
amigo tem o dom de tirar o gosto de qualquer cafezinho durante um proseado.
Muitos existem - a maioria, felizmente - que conseguem temperar ainda mais o
bom e saboroso café. Não há maior prazer que chegar com um velho amigo ao pé do
balcão e pedir dois cafezinhos, daqueles que chegam inebriando o ambiente e fumaçando
na xícara, ao modo dos antigos cafés aracajuanos e que hoje se tornaram
raridades. Muitos haverão de recordar do Café Aragipe e do Café Império
perfumando a Rua José do Prado Franco e arredores.
Nos cafés
antigos os guardiães da memória se encontravam para cuidar da preservação
verbal dos fatos e acontecimentos, mais tarde relatados em livros. Cronistas de
épocas assim faziam antes de se tornarem memorialistas. Políticos e autoridades
não só marcavam presenças como traçavam eleições e despachavam ali mesmo na
beirada da xícara olorosa e perfumada. E que desatino quando a surpresa da
fofoca fazia com que o negrume respingasse no terno de linho branco. Assim a
vida nos cafés antigos e que não existem mais, restando as sombras do balcão
lusitano e o gole apressado.
De qualquer
modo, indescritível a importância do café, do cafezinho ou do seu gole, na vida
dos povos. Tanto assim que muita gente só reconhece o dia ter começado após um
trago de café. Sem o primeiro café não há disposição para nada, é como se nada
ainda tivesse acontecido, sequer o dia amanhecido. Contudo, não são poucos os
que apenas beijam o sabor e já estão em apressada correria para os ofícios do
dia. Morde a beirada do pão, leva a xícara à boca, mas o relógio não permite um
gole completo.
Sendo assim,
sorte daqueles que sentam à mesa, passeiam pelo jardim de xícara à mão ou abrem
a janela para avistar o mundo sempre saboreando aquele negrume quentinho e
confortante. Os jornais são folheados, página a página, com gole após gole e
xícara após xícara. Um cafezinho apenas ou em xícara grande, o que importa
mesmo é o prazer de transformar a notícia em algo menos intragável. E somente
com o café para suportar tanto desalento noticiado.
Por isso mesmo
que o café se transformou em costume inafastável à maioria das pessoas. Sua
falta provoca indisposição, dor de cabeça, mau humor. Basta um gole e tudo
passa, tudo estará refeito. E aprecio tanto seu paladar que de vez em quanto
converso com a xícara. Então, de lábios colados à borda, pronuncio em
pensamento: Bom dia, café. Como vai? Certamente que ele vai bem e sempre desce
bem desde as madrugadas dos meus dias.
Recordo-me de
um tempo de café em grão, batido em pilão nos quintais, peneirado e depois
despejado na chaleira de água fervente no fogão de lenha. O seu cheiro, seu
aroma e perfume, eram de encantar, verdadeiramente apaixonar. Pelos espaços
aquela fragrância forte, gorda, negra, saborosa, fascinante demais. Nos
quintais e cozinhas interioranos costumava-se despertar com a festa do café
pelo ar. Bastava o cheiro e já se sabia de qual chaleira vinha aquele nobre e
contagiante perfume. Não raro que a vizinhança se achegava implorando um
tiquinho, um golinho, um pouquinho no fundo de xícara. E o prazer da manhã
estava garantido.
Os tempos são
outros. Praticamente não há mais café batido em pilão de quintal, fogão de
lenha e chaleira. Somente nas regiões interioranas mais distantes ainda é
possível encontrar um cheiro bom e original de café. Mesmo nos sertões
nordestinos, as facilidades do café em pó ou solúvel, industrializado,
transformaram aquela magia do amanhecer e do entardecer num ato comum de ferver
água e misturar o café.
Ainda assim,
mesmo sem o encanto de outros tempos, o cafezinho continua companheiro
inseparável das manhãs, das horas, dos dias. Mas nada de água quente em garrafa
térmica, cafeteira ou já preparado e esperando somente ser esquentado O bom
café possui um romântico ritual que não pode ser esquecido: primeiro o seu
aroma, depois o seu sabor. Se houver um bom amigo por perto, com proseado daqueles
que faça alegrar coração, nem precisará ser açucarado. No diálogo a doçura da
vida.
Poeta e
cronista
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