07 de março de
1985
O cearense Delmiro Gouveia ligou-se ao comércio ainda jovem, exportando peles,
algodão, mamona e couro de bois. Mais tarde, em recife, construiu o mercado do
Derby, vendendo carne verde e farinha de mandioca a preços inferiores aos dos
concorrentes. Foi em Pedra, no sertão alagoano, que a visão comercial e o
espírito empreendedor de Delmiro Gouveia projetaram a captação de energia
elétrica da cachoeira de Paulo Afonso para utilização numa fábrica de linhas de
costura, a Cia. Agro fabril Mercantil, inaugurada em 6 de junho der 1914. Nessa
época, a Machine Cottons – grupo inglês produtor das linhas Corrente – detinha
o monopólio do mercado sul-americano. A primeira Guerra Mundial (1914-1918)
impediu a chegada dos produtos ingleses à América do Sul, possibilitando à Cia.
Agro Fabril Mercantil a conquista desse mercado, principalmente o brasileiro.
Pressionado pelo poderoso truste inglês, Delmiro Gouveia resistiu com firmeza,
até ser assassinado em 10 de outubro de 1917.
Coronel Delmiro Gouveia
O crime nunca foi esclarecido. Os mandantes e verdadeiros assassinos do coronel
Delmiro Gouveia ficaram impunes. Dois operários da Fábrica da Pedra – Róseo
Morais do Nascimento e José Inácio Pia, o popular Jacaré – e um desocupado
Antônio Felix do Nascimento foram apontados como os criminosos, e, brutalmente
torturados, sendo condenados a 30 anos de prisão. José Inácio fugiu da prisão e
morreu num tiroteio com a polícia, em 1924. Antônio Felix foi assassinado em
1953, depois de ter cumprido sua sentença. Róseo Morais do Nascimento cumpriu
metade da pena e saiu da penitenciária de Maceió em 1932, amargurado por ser
chamado de assassino. Iniciou, então, um longo processo para tentar provar sua
inocência, concluído por sua filha Laurentina Morais do Nascimento, após sua
morte em 1979. Finalmente, em 1983, o Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas
absolvei postumamente Róseo Morais do Nascimento, levando em consideração um
telegrama – localizado pelo historiador Moacir Medeiros de Santana e juntado
aos autos pelo advogado Antônio Aleixo Paes de Albuquerque – em que o coronel
Gonçalo Prado assegurava que Róseo e José Inácio Pia estavam em Maroim (SE) no
dia em que Delmiro Gouveia foi assassinado.
A partir de um depoimento de Róseo Morais do Nascimento, obtido em 1975, o
jornalista alagoano Jorge Oliveira – ganhador do Prêmio Esso de Jornalismo 1980
– escreveu Eu não Matei Delmiro Gouveia, livro-reportagem apresentado por
Barbosa Lima Sobrinho que revela os detalhes do “maior erro judiciário no
Brasil”. “As versões sobre os verdadeiros criminosos – diz Jorge Oliveira no
começo da obra – ainda são flagrantemente contraditórias – mesmo porque o álibi
apresentado por Róseo Moraes do Nascimento até meio de 1983 era considerado,
pelas Justiça alagoana, ‘irrelevante’. Quanto aos autores intelectuais da morte
do coronel, as suspeitas caíram sempre na Machine Cottons, fábrica inglesa de
linhas de costura concorrente de Delmiro Gouveia no Brasil e em outros países
da América do Sul. Os galegos da fábrica inglesa – como eram chamados os
trustes na época, início do século – ter-se-iam aproveitado de algumas
desavenças de Delmiro Gouveia com chefes políticos locais, para liquida-lo,
através de terceiros, e desativar seu poderia econômico no País. Nesse jogo
sujo de interesses, os dois lavradores humildes e indefesos foram envolvidos”.
Foi o próprio Governador do Estado de Alagoas, Batista Acyolli, quem indicou o
Capitão da PM Pedro Nolasco da Silva (“homem bruto, carrancudo, torturador
conhecido”) para chefiar as investigações do assassinato der Delmiro Gouveia,
exigindo a prisão dos criminosos “de qualquer maneira”. Saindo de Maceió com 20
soldados, o Capitão Nolasco chegou a Pedra e, após espancar inocentes e
alvoroçar a cidade, apresentou o primeiro suspeito: José Inácio Pia, o Jacaré,
que negou de joelhos a autoria do crime, a legando que no dia do assassinato
estava viajando de trem em direção a Sergipe. Baseado no depoimento de Róseo,
Jorge Oliveira relata as primeiras torturas que Jacaré sofre: “No primeiro
soco, Jacaré desequilibrou-se e caiu desacordado no cimento frio do armazém. As
botinas dos soldados de Nolasco esmagavam o corpo de Jacaré. Os homens do
capitão amassavam Jacaré como quem amassa barro para fazer tijolos. Com a cara ensanguentada
e marcada pelos socos, Jacaré estremecia no chão, via, em logos jatos, seu
sangue misturar-se à lama do piso molhado do armazém. Nolasco, cansado, fazia
breves intervalos. Passava o comando a seus policiais. Com um saco de estopa
amarrado à boca, os gritos de Jacaré eram abafados”.
Logo em seguida o Capitão Nolasco prenderia Róseo em Maroim (SE), onde estava
morando e trabalhando, acusando-o de cúmplice de jacaré. Róseo teve todos os
seus dentes arrancados pelas coronhadas que recebeu, no rosto, do fuzil do
sargento Cunha, e também foi barbaramente torturado. Os dois acusados receberam,
inclusive, chibatadas de bimbas de boi, seguidas de banho com água com sal
grosso. Róseo recorda os maus-tratos: “Me deram uma surra de palmatória na sola
dos pés que ainda hoje engrossa o couro. Depois me amarraram com corrente. Ao
meu lado colocaram um pedaço de bacalhau. Para matar a fome e eu era obrigado a
mastigar o bacalhau, quando pedia água, era espancado”. Após 30 dias de
torturas. Róseo e Jacaré, desnutridos, esgotados e famintos, “confessaram” o
crime que não cometeram para se livrarem das torturas.
Concluído o inquérito, o processo começou a ser manipulado, conforme conta o
autor: “Havia uma tendência muito clara a que as suas principais peças,
especialmente as que foram fornecidas à Justiça por testemunhas-chaves,
inocentando os dois acusados, desaparecesse, o que permitia, a quem desejasse,
retirar qualquer peça do inquérito sem alterá-lo. Para que isso fosse
facilitado, as folhas não foram numeradas. Assim é que dois importantes
documentos sumiram. Apenas um apareceu mais de 50 Anos depois, usado para
inocentar Róseo, em 1983. Agora, o processo será arquivado porque ninguém pode
ser condenado duas vezes pelo mesmo crime. Os verdadeiros criminosos estão
isento de qualquer condenação”.
Róseo e Jacaré acusados da morte do coronel Delmiro Gouveia
O primeiro julgamento de Róseo e jacaré ocorreu em agosto de 1919. Jorge
Oliveira, apoiado no depoimento de Róseo, descreve a viagem dos acusados de
Pedra para Água Branca:
“Depois do meio-dia, Nolasco autorizou a viagem. Puxados pelos policiais, Róseo
e Jacaré iniciaram, a pé a longa viagem até Água Branca. Os policiais viajavam
em lombo de burro. Róseo e Jacaré, acorrentados, eram puxados e arrastados.
Quando caiam, continuavam puxados até se reerguerem num esforço sobre-humano”.
Ameaçados pelo Capitão Nolasco (“Cabras, em Juízo vocês tem que confirmar que
mataram o Coronel Delmiro, senão mato os dois na volta e enterro aqui mesmo”),
os réus confirmaram os depoimentos anteriores e foram condenados a 30 anos der
prisão. Alegando uma série de irregularidades no processo, entre elas a
inexistência de testemunhas que tivessem presenciado Róseo e Jacaré matarem o
Coronel Delmiro Gouveia, o advogado Linduarte Villar apelou da sentença.
Surpreendentemente, no segundo julgamento, surgiu um terceiro réu: Antônio
Felix do Nascimento, que teria sido indicado por interesses políticos. O
Tenente João Medeiros, com seis policiais, conduziu os três presos de Pedra a
Água Branca, recusando um suborno para dar sumiço neles e garantindo suas vidas
até entrega-las na penitenciária de Maceió, ao terem sido condenados a 30 anos
de prisão no novo julgamento.
O jornalista Jorge Oliveira também entrevistou o Tenente João Medeiros, em
1976, que relembrou uma frase pronunciada por Róseo, a caminho de Água Branca:
“Seu Tenente, o senhor pode crer por Nosso Senhor Jesus Cristo e a Virgem Maria
que nós tamo pagando por uma coisa injusta”. O Tenente João Medeiros, temeroso,
preferiu omitir o nome da pessoa que tentou suborná-lo: “Ainda hoje está viva
muita gente desse caso, muita gente envolvida diretamente na morte do Coronel
Delmiro Gouveia. Eu também ainda quero viver um pouco mais”. Instado pelo
jornalista, disse quem matou o industrial Delmiro Gouveia: “Foi realmente
Herculano Vilela, por vingança, porque antes tivera uma briga com o industrial.
Mas quem organizou tudo foi o Firmino Rodrigues. Agora, quem foi junto com
Herculano para matar o Coronel Delmiro ainda não morreu”.
Jorge Oliveira chegou aos verdadeiros autores do crime: “Em 1960, pouco antes
de morrer, Herculano Soares Vilela confessou a seus amigos, num sítio em
Satuba, Alagoas, ter matado Delmiro Gouveia, juntamente com seu cunhado Luis
dos Angicos e o amigo Manuel Vaqueiro, também já falecidos”. Em Eu não matei
Delmiro Gouveia, Jorge Oliveira, como diz o jornalista Mauricio Azedo na orelha
do livro, “fez de seu ofício de repórter, mais uma vez um instrumento de
afirmação da verdade”, comprovando a inocência de vítimas do arbítrio e
indicando os verdadeiros autores do assassinado do Coronel Delmiro Gouveia –
industrial nacionalista e progressista que enfrentou as multinacionais
inglesas, tantas vezes louvado – ao lado dos conterrâneos Antônio Conselheiro e
Padre Cícero – pelos poetas populares, como nesses versos anônimos, citados por
Jorge Oliveira:
Quando o
enterro de Delmiro
Foi pela rua passando
Parece que a gente ouvia
A cachoeira
chorando.
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