*Rangel Alves
da Costa
O mais famoso
regabofe da história nordestina foi posto à mesa entre hóstias e balas de
rifles, entre água benta e cartucheiras. E para a serventia do sagrado e do
profano, para deleite da fé e do destemor, para proveito da cruz e da espada. E
assim porque o famoso regabofe foi servido em mesa onde se juntava na mesma
fome a igreja, através de sacerdote, e o cangaço, por meio de seu líder maior.
O ano era
1929, o mês era abril. Neste mês a população devotada do pequeno arruado de
Poço Redondo se preparava para a celebração de missa na Igreja de Nossa Senhora
da Conceição. Missa era raridade naqueles tempos, principalmente pelo fato de o
sacerdote viver em ocupações na sua paróquia de Porto da Folha, se dirigindo
àquela povoação somente duas vezes ao ano: 15 de agosto, na festa da padroeira,
e noutra data escolhida pelo povo.
Assim, para a
celebração do dia seguinte, numa data escolhida, ao entardecer do dia 18 de
abril o vigário Padre Artur Passos despontou nos arredores do lugarejo em cima
de lombo de burro. Era uma viagem cansativa de Porto da Folha até Poço Redondo,
entrecortando perigosas e poeirentas estradas de chão. Cansado, se recolheu na
casa do amigo Teotônio Alves China - o China do Poço -, onde logo adormeceu
para chamar a si sonhos terríveis: Homens rudes e cheios de armamentos chegavam
para confrontar sua igreja e sua cruz. Quanto mais jogava água benta mais eles
avançavam sobre o templo cristão.
Acordou
sobressaltado. Não imaginava o que logo mais ocorreria ali na residência dos
bons e acolhedores China e Marieta, sua esposa. Com efeito, com o dia já
clareado, homens estranhos ao lugar, todos revestidos de roupas grossas e suor,
com brilho dourado se derramando pelos dedos e chapéus de abas largas e
levantadas, cartucheiras vistosas perpassando os peitorais, bornais enfeitados,
portando armas e punhais, chegaram pelos arredores da povoação e foram logo
procurando a casa de China. Já traziam informação certeira acerca daquele que
lhes daria acolhida.
Lampião e seu
bando surpreendiam mais uma vez. O medo então se espalhou pelo lugar. Quando a
notícia começou a correr, no mesmo instante começaram os desmaios, as
carreiras, o deus nos acuda. A povoação pronta e cheia de alegria para a
festança e a missa, logo se viu tomada de pavor indescritível. Preciso foi que
o próprio Capitão intercedesse afirmando que estava ali de passagem e que havia
chegado na paz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Bastou o eco da fé e da
religiosidade para que a vida retomasse seu passo.
Mas a calma
com as palavras do Capitão não chegou para China e Marieta. Pelo contrário,
estavam mais apavorados e temerosos que tudo. E por um só motivo: O que fazer
com Lampião ali no alpendre e o sacerdote no quarto? Acaso o da igreja abrisse
a porta e se deparasse com o da caatinga, as consequências seriam
inimagináveis. Enquanto China se remoía por dentro, Dona Marieta se lançava em
rezas e promessas. Mas num repente o dono da casa resolveu dar um basta naquela
aflição toda. Então contou ao cangaceiro sobre a presença do sacerdote.
Prontamente
Lampião afirmou a China que não se preocupasse e se dirigiu até o aposento onde
ainda repousava o Padre Artur. Bateu à porta, chamou, se anunciou. Sem
acreditar no que ouvia, o costumeiramente mal-humorado sacerdote abriu a porta
esbravejando. Num instante e frente a frente a igreja e a sangrenta valentia.
As mais de cem Ave Maria de Dona Marieta surtiram efeito neste momento, mas não
antes que o rei cangaceiro ouvisse poucas e boas do padre, principalmente
quando aquele informou que tinha interesse em assistir missa.
Depois de
muito conversar, enfim o padre resolveu aceitar dividir a mesa com o cangaceiro.
Pelo adiantado da hora, o que era para ser um café da manhã acabou se
transformando em almoço, num regabofe arretado de interessante. Há de se
imaginar Lampião e Padre Artur brindando com vinho de jurubeba, se deleitando
gulosamente com a diversidade de pratos caipiras preparados por Dona Marieta.
Por essa hora já estavam prontos a buchada, o sarapatel, cozidos e mais
cozidos.
Talvez a
admiração diante tanta comida tivesse diminuído os rompantes de fúria do
sacerdote, pois não demorou muito e o proseado descambou em diálogo amigueiro.
E também a aceitação para que a cangaceirada assistisse o ofício religioso,
desde que o armamento pesado ficasse do lado de fora da igreja. Dizem que
Lampião explanava com profundo conhecimento sobre a fé e a religião, e não
menos interessante o que o velho sacerdote conhecia do mundo cangaceiro,
afirmando até mesmo que não fosse pela desmedida violência até que seria uma
justa causa.
Foi assim,
naquele dia 19 de abril de 1929, que se deu o encontro da cruz e da espada e o
mais famoso dos regabofes. Duas vertentes numa mesma feição do mundo sertanejo.
A profunda religiosidade e a luta constante. Na fé e no sangue, pois o homem
também vítima de outros destinos que não o da paz.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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