Por Raul Meneleu Mascarenhas
O velho
fazendeiro dizia a seu hóspede, que lhe pedira para passar uma noite arranchado
em seu alpendre, visto o tempo ter fechado no horizonte próximo com nuvens
escurecidas de chuva.
- Tem que ter
cuidado pois essa região está infestada de cangaceiros!
E o mascate
que pela primeira vez aventurava-se por aquela região, concordava com o
balançar de cabeça e olhos arregalados. Vestia-se como um dandy. Seu modos
finos e trejeitos denunciavam-lhe como um citadino que tentava imitar, e o
fazia com perfeição, os modos finos daqueles que tinham bom gosto e senso
estético, mas que não necessariamente pertenciam à nobreza.
Trazia junto
com ele, muitas quinquilharias de uso doméstico, juntamente com finos tecidos
no intuito de vender para aqueles que tinham dinheiro para isso. As
quinquilharias não; essas eram geralmente de preço acessível para as donas de
casa em geral. Toda a mercadoria armazenada em uma cafuringa pequena, tipo T
modelo 1929 da Ford.
A mulher e as
filhas do fazendeiro, não saiam de perto, admirando aquele homem de fino trato
e de olho nas mercadorias que ele lhes mostrava. As de uso doméstico mais
cobiçada pela mulher do fazendeiro, e pelas filhas os mimosos e coloridos
tecidos que poderiam fazer vestidos de festa.
- Pois bem,
dizia o fazendeiro, "tive até que contratar jagunços pra proteger nossa
propriedade e a gente. O governo seu moço, não cuida do sertão e abandona toda
essa gente dessas bandas..."
A noitinha já
tinha chegado e estavam sentados à mesa para fazerem a refeição da janta quando
ouviram pisadas lá fora e um barulho de confusão. O fazendeiro levantando-se,
foi abrir a porta e deparou-se com soldados de polícia, segurando os dois
jagunços que tinha contratado e que foram presos pelo comandante da volante que
apresentava-se à frente.
- Ora, ora,
então quer dizer que coiteiro agora se protege com jagunços em armas né? Disse
de chofre o tenente que comandava a volante.
- Que é isso
seu tenente... esses homens estão ai pra proteger a gente dos cangaceiros!
Disse o fazendeiro.
O tenente
olhando pra dentro da casa, viu a mulher, as filhas e aquele homem engraçado
com aquelas roupas apertadas, e entrando sem pedir licença foi dizendo:
- Quem é você
cabra? O que está fazendo por essas bandas? É seu aquele caminhãozinho que tá
lá fora?
E o
comerciante, levantou-se e todo aprumado respondeu a inquirição:
Me chamo
Aderbal Ventura, sou do Recife e estou nesse sertão de Deus para trazer
progresso para essa gente tão abandonada. Minhas mercadorias estão como o
Senhor pode ver, naquele canto ali, apontando para a lateral da sala.
- Pois muito
bem 'seu" Aderbal, vá se afastando pro lado pois a conversa aqui não lhe
compete. E virando-se para o fazendeiro disse: "Soubemos que o senhor está
acoitando cangaceiros e viemos aqui pra lhe dar um aviso!"
Ao ouvir isso,
o fazendeiro ficou lívido de temor e disse de imediato: "Como! Estou
gastando dinheiro pra manter cangaceiros fora de minhas terras e protegendo
minha família como o senhor pode bem ver com esses dois homens que estão ai
presos! Como pode dizer isso?"
- Esses dois
cabras estavam armados ali na porteira e devem fazer parte do bando que se
acoitou aqui. Diga a verdade homem!
- Esses dois
foram contratados por mim para proteger a fazenda e não são cangaceiros não
"seo" tenente!
O tenente
olhando malevolamente para a moças e para a mulher do fazendeiro, que entraram
no quarto com medo, disse a seu sargento:
- Oiticica,
pega um desses cabras, esse mais moço... e leve ali pra fora e tenha uma
conversinha com ele pra ver se ele abre o bico.
De dentro da
casa, todos ouviam a peia cantar em cima do pobre rapaz, que gritava espavorido
da surra que tomava.
- Senhor
tenente... mande parar por favor! - disse Aderbal.
- Que nada
senhor Aderbal, o senhor tá passando por aqui pela primeira vez e não conhece
essa corja de fazendeiros coiteiros de cangaceiros! O senhor vai ver que esse
safado - se referido ao dono da casa - é coiteiro sim!
O fazendeiro
olhava fixamente para o oficial e disse: "Isso que o senhor está fazendo é
pior que os cangaceiros fazem!"
O tenente com
muita raiva, partiu pra cima do velho e disse-lhe: "Véio safado é melhor
você calar a boca senão lhe meto a chibata!" - Nisso o sargento vinha
entrando na casa e disse: Senhor, o homem desmaiou,o que faço? E o tenente
disse: "Pega o outro" - E o outro jagunço foi levado e feito o mesmo
serviço com ele. Apanhou até dizer chega, mas não disse nada que incriminasse o
dono da fazenda.
O Tenente,
abriu a porta e disse para o cabo que guarnecia a porta: Juventino, vá lá na
cozinha e pegue a empregada e leve ali pra fora pra ela se explicar também!
O velho
fazendeiro, com ira nos olhos arregalados por ver tanta perversidade, disse:
"Essa é sua autoridade tenente! Bater nas pessoas de bem?"
- Cala a boca
véi safado, senão lhe meto uma bala nela!
Foi quando a
mulher do fazendeiro e as filhas, chorando e gritando pedindo que parassem com
aquilo, saíram do quarto e a mulher do fazendeiro foi dizendo: "Eu conto
tudo "seo" tenente! Não faça nada com meu marido!" - e o chororô
aumentava e as moças tremiam de medo - E ouvia-se o clamor da empregada sendo
surrada no pátio da fazenda. A lua iluminando com sua luz prateada, o terreiro,
o curral e os bois deitados como se tudo estivesse bem. Os soldados riam
daquela cena, espichados pela calçada do alpendre. A empregada não tinha levado
nem três lamboradas de cipó de pau-ferro, quando gritou que iria falar.
- Eu conto...
eu conto tudo... - gritava a mulher. - "eles estiveram aqui a cinco dias
atrás... estão agora lá naquele lagêdo das sariemas. Ficaram aqui apenas uma
noite e foram embora. Ouvi eles dizer que iam pra Sariema "seo"
tenente!"
- Não disse
senhor Aderbal? O senhor pode entender de comércio, mas quem entende de
coiteiro sou eu. - E virando para o sargento disse: "Solta todo
mundo! Vamembora gente, vamo pegar esses safados!"
Esvaziaram a
dispensa, saquearam o que podiam saquear, e a soldadesca invadiu a casa e
levaram também muitas bugingangas e tecidos do dandy que olhava estupefato sua
mercadoria sumir na noite adentro.
Já eram umas
quatro horas da manhã e o dandy arrumando o restinho de sua mercadoria na
cafuringa, ouviu quando a empregada disse baixinho para a patroa "que
tinha mentido para se ver livre da peia."
- Fala baixo
menina, fala baixo... dizia a patroa.
A manhãzinha
já vinha clareando tudo e o sol amarelado despontava. A chuva que prometera
arriar no sertão tinha ido embora como se dissesse que aquela terra não merecia
suas águas. O galo cantava e o mascate apressado para ir embora dali, rejeitou
o convite do fazendeiro para tomar café. O fazendeiro despediu-se dele dizendo:
Tá vendo
"seo" Aderbal... é cangaceiro de um lado e a volante do governo por
outro!
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