Por Nonato Freitas
Depois de 66
anos no mais absoluto anonimato, sem contar nada a ninguém sobre a vida
deles no cangaço, Moreno e Durvalina, a Durvinha, único casal de
cangaceiros do bando de Lampião (Virgulino Ferreira da Silva) e Maria
Bonita ainda vivo, resolveram relatar os longos e dramáticos momentos que
juntos passaram na caatinga sob a perseguição implacável da polícia. No
dia da morte do Rei do Cangaço, na Gruta de Angico, na beira do rio
São Francisco, em Sergipe, pela volante (força policial) do
tenente João Bezerra, Moreno e Durvalina estavam em Mata
Grande, distante 70 quilômetros do local. Homem de confiança
de Virgulino, ele cumpria uma missão no comando de um subgrupo de
cangaceiros.
Moreno lembra
que, além de Lampião e Maria Bonita, mais nove cangaceiros foram mortos e
degolados naquele dia (28 de julho de
1938). Ao todo, entre homens e mulheres, eram cerca de 47 pessoas. Os que
escaparam do cerco se entregaram em seguida à polícia. Corisco o Diabo
Louro sanguinário e igualmente homem de total confiança de Lampião, no
momento do massacre encontrava-se do outro lado do rio, a três quilômetros
de Angico.
Tinha sob seu
comando um subgrupo. Moreno recorda que Corisco chegou a ouvir os tiros,
mas nada pôde fazer em defesa dos companheiros por estar à margem oposta
do rio, sem condição de atravessá-lo.
Hoje, aos 98
anos, Moreno vive com Durvalina, de 93, em Belo Horizonte. Ambos estão aí
vivinhos, lúcidos e cheios de histórias para
contar. Histórias repletas de dramas vividas num tempo em que, no
Nordeste, a lei era ditada pela boca do mosquetão e
pelas afiadas lâminas de punhais que chegavam a medir 87 centímetros.
Com a morte de
Lampião, o medo se espalhou como um fantasma entre os cangaceiros que não
haviam sido capturados.
Eles temiam
ser degolados a qualquer momento. Assim mesmo continuavam a desafiar as
incansáveis volantes que eram comandadas por homens experientes e
destemidos.
Dois anos após
a morte de Lampião o tenente Zé Rufino da polícia alagoana, temível
caçador de cangaceiros quase decepou a cabeça de Corisco, que preferiu morrer
lutando a se entregar às forças do governo. Naquele tempo, a ordem era uma
só: ou o cangaceiro se entregava, ou então era morto e degolado em
seguida. Diante dessa crua realidade, Moreno tomou uma decisão. Homem
corajoso que sempre foi, chamou a companheira de um lado e
confessou que não se entregaria aos macacos, termo usado por
Lampião e seus cabras para desqualificar os soldados das volantes.
SOZINHOS NA
CAATINGA
Depois daquela
manhã em que Lampião tombou morto ao lado de sua amada Maria e de
mais nove companheiros, o cangaço, na verdade, ficaria riscado,
definitivamente, do mapa do Nordeste.
Corisco ainda
resistiu durante dois anos ao lado de Dadá, sua brava e fiel
companheira. Mas sem Lampião, sem Maria Bonita, e tantos outros, como
Corisco, Luiz Pedro, Virgínio, Zé Baiano, Juriti, Ezequiel (Ponto Fino,
irmão de Lampião), Sabonete, Menino de Ouro e Jararaca, todos eles homens rudes
e de extrema valentia, sem essas legendas do cangaço, que ficaram para
trás, mortos em combate com as volantes, o mundo do crime nada mais
representava para Moreno e sua Durvalina.
O que fazer
então com a vida? Abrir mão da liberdade e se entregar à polícia? Ou seria
melhor pôr o pé na estrada e fugir?
Fugir para
onde, se apenas conheciam as veredas áridas e abrasadoras das caatingas? E
se na próxima curva dos caminhos desérticos
fossem surpreendidos por uma volante? Ah, isso tudo ia moendo, pouco a
pouco, o juízo de Moreno.
Era o ano de
1940. Lá fora Hitler mostrava suas garras para o mundo. A Segunda Grande
Guerra, com as famigeradas câmaras de gás,
começava a ceifar milhares de vidas inocentes. No cinema, a grande
sensação era E o vento levou, rodado um ano atrás em Hollywood. No Brasil,
para variar, surgia um movimento simpático ao III Reich, ou seja, algumas
figuras importantes da nossa política trabalhavam, às escondidas, em prol
das idéias nazistas lideradas por Hitler. Felizmente o raciocínio não
vingou e, dois anos depois,no dia 23 de agosto de 1942, Getúlio Vargas
decide declarar guerra ao eixo formado por Alemanha, Itália e Japão. Mas
para Moreno, perdido naquele mundinho de nada, sem tomar
conhecimento de qualquer fato exterior, nada disso tinha a
menor importância.
Em pleno
sertão nordestino, acuado agora pela solidão de haver perdido tantos
amigos, Moreno optou então pela fuga. Mas, como um homem
rude, sem nenhuma instrução escolar, que mal conhecia os limites da região
onde nasceu e da qual nunca se ausentou,
conseguiu romper a vigilância dos homens da lei e fugir, ao lado de sua
amada, para um lugar tão distante como Minas Gerais? Pois Moreno e
Durvalina, caro leitor, conseguiram romper esse cerco.
Antes de
contar esta fascinante história de fuga, vamos conhecer um pouco a
trajetória desses dois intrépidos cangaceiros.
Natural de
Tacaratu, PE, Moreno, cujo nome completo é Antonio Ignácio da Silva,
nasceu no dia lº de novembro de 1909. São seus pais: Manuel Ignácio da
Silva e Maria Joaquina de Jesus. Ele entrou para o cangaço ali pelo ano
de 1930, quando era apenas um jovem de 21 anos. Antes de
abraçar a vida do cangaço, Moreno era um pacato trabalhador que
ganhava seu honesto dinheirinho prestando serviços nas fazendas
da região. Numa destas fazendas, de propriedade de um
senhor chamado André, Moreno, ou melhor, Antonio (como
era chamado antes de ingressar no cangaço), praticou o
primeiro homicídio, das 21 mortes que cometeu durante sua longa vida
de cangaceiro. O fato é narrado em todos os seus detalhes por João de
Sousa Lima, diretor de publicação e arquivo público do Instituto Histórico
e Geográfico de Paulo Afonso, na Bahia, no livro intitulado Moreno
e Durvinha – Sangue, amor e fuga no cangaço, lançado em 2006.
Uma sobrinha
do dono da fazenda enamora-se de Antonio. Para azedar a amizade entre
ambos, uma agregada da propriedade, conhecida por Antoninha, conta para
Antonio que a moça não é mais virgem. Acrescenta que ela havia “se
perdido” em troca de uma novilha de gado. Esta mesma conversa é levada ao
conhecimento de André pela própria Antoninha, mas de forma
envenenada. Diz que o boato fora espalhado por Antonio, que é
abordado pelo patrão. Injuriado, ele nega tudo, argumentando que soube do fato
pela boca de Antoninha. Ao entardecer, André reúne no pátio da fazenda,
além de sua sobrinha, todas as pessoas que convivem ali com ele. Lá estão
também Antonio, um irmão de André, de nome Ananias, Antoninha e seu
marido. Ao notar a aproximação de Antonio, Antoninha se antecipa,
dizendo:
- Oh, seu Zé,
que história é essa que o senhor foi contar para o André?
- Aquela que
você me contou.
- Mentira sua,
disse ela nervosa.
Antonio
respondeu que não era homem de mentira e aplicou um violento murro na
orelha de Antoninha, que caiu zonza no chão. Diante
da cena, o marido dela partiu furioso sobre Antonio, que sacou de uma faca
peixeira e, ato contínuo, cravou a arma no peito do homem, que caiu se
esvaindo em sangue sobre a mulher e, em seguida, morreu.
Antes de
fugir, Antonio, a faca assassina em punho, ainda mirou as pessoas ali
presentes com o olhar transtornado de quem estava pronto
para o que desse e viesse. “Quem se considerar meu amigo não se
aproxime!”. Como ninguém fez um único gesto para detê-lo, pegou o caminho
do mato e sumiu no meio do mundo. Esta foi a porta aberta para Antonio
entrar no desafiante e incrível mundo do cangaço. Depois de trabalhar
numa usina de açúcar e em algumas fazendas da região, Antonio se depara,
numa dessas propriedades, com um bando de cangaceiros. Eram eles:
Virgínio, Luiz Pedro, Maçarico, Fortaleza e Salviano, vulgo Medalha.
Deixaram com
ele um recado para o Sr. Antonim, dono da fazenda, avisando que em
determinado prazo voltariam para pegar uma encomenda.
Eram duzentos mil réis. Quando voltaram, trouxeram com eles
um coiteiro, devidamente amarrado, que os havia denunciado à polícia.
Traição no cangaço era sinônimo de morte. Os cangaceiros se
arrancharam na fazenda durante uns três dias e fizeram amizade com
Antonio, que se mostrou interessado em segui-los. Antes de partirem,
submeteram-no a um teste de fogo. Entregaram-lhe uma “Mauser” (carabina
automática, de fabricação alemã) e pediram que fizesse o serviço.
Frio como uma
pedra de gelo, Antonio segurou a arma com firmeza e mirou calmamente o
peito do miserável. Em seguida, acionou o
gatilho. O pobre homem caiu morto no meio do acampamento. Naquele
instante, Luiz Pedro, famoso pela valentia e por ser um dos
homens de confiança de Lampião, deu dois passos em direção a Antonio e
afirmou, convicto: “Você vai com a gente. E de agora em diante seu novo
nome será Moreno”. Estava, assim, selado o batismo do ingresso de Antonio
Ignácio da Silva no cangaço. Por ser um homem extremamente arisco e
muito valente e, acima de tudo, pelo faro que tinha das coisas, cedo se
destacou entre os companheiros como uma pessoa altamente
preparada para o cangaço. Mais tarde vamos vê-lo substituindo
Virgínio, cangaceiro morto em combate, no comando de um subgrupo
de Lampião.
Durvalina
Gomes de Sá nasceu em Paulo Afonso, BA, no dia 25 de dezembro de 1915. Seu
umbigo está enterrado na Fazenda Arrasta-pé, de
propriedade de seus pais, Pedro Gomes de Sá e Santina Gomes de Sá. A
fazenda, um oasisinho aconchegante, ficava a dois
passos do Raso da Catarina, região inóspita, talvez a mais inóspita do
País. Era lá, no Raso, onde Lampião e seus cabras se refugiavam quando a
perseguição das volantes se tornava mais intensa. Amigo da família de
Durvalina, Lampião escolheu a fazenda Arrasta-pé como um dos seus coutos
preferidos. O local, palco de comemorações familiares, com direito às
devidas festinhas, vivia sempre rodeado de cangaceiros.
Numa dessas
visitas, o cangaceiro Virgínio, vulgo Moderno, viúvo de Angélica Ferreira
da Silva, irmã mais velha de Lampião, se enfeitiçou
por Durvalina, que tinha apenas 15 anos. Ela era muito bonita e vivia
triturando o coração dos rapazes que frequentavam a fazenda de seus
pais. Virgínio, 27 anos, natural do Rio Grande do Norte (nasceu em 1903),
com fama de galanteador, não perdeu tempo. Pegou Durvalina e,
para desespero dos pais dela, fugiu com a moça para o cangaço.
Amigo próximo
e ex-cunhado de Lampião, Virgínio era chefe de um sub-bando.
Perverso, costumava castrar suas vítimas.
Há registro de
diversos casos em que ele mesmo castrava ou mandava alguém do bando
executar o serviço.
Durvalina
nutria por ele um grande amor. Tiveram dois filhos, Lourdes e Pedro,
que, criados longe dos pais, vieram a falecer nos primeiros anos de
vida. Durvalina ficou ao lado de Virgínio até o dia em que, atingido
no joelho por uma bala desferida em combate por um soldado,
ele morreu depois de perder muito sangue.
Profundamente
abatida, Durvinha é amparada por Moreno, que faz parte do grupo, sendo a
segunda pessoa de Virgínio. Ele pergunta se
ela quer voltar para a casa dos pais ou se quer ficar com ele. Ela aceita
ficar com Moreno. Então, a partir daquele momento, Durvalina
e Moreno iniciam um romance que se perpetua até os dias de hoje. São 72
anos de união.
Agora, Moreno
é o novo chefe do bando. Amigo inseparável de Virgínio, ele chora
copiosamente no momento em que vai enterrar o
velho companheiro de incontáveis lutas. Em seu livro, João de Sousa Lima
conta que, no dia seguinte à morte de Virgínio, ocorrida em outubro de
1936, nas proximidades da fazenda Rejeitado, sul de Sertânia, Pernambuco,
os soldados desenterraram o corpo dele e arrancaram os dentes de
ouro que estavam incrustados na boca do morto. E ainda, num ato
de extrema selvageria, cortaram a orelha do cangaceiro e a
levaram salgada para ser exibida no povoado Morro Redondo.
Com a morte de
Virgínio, Moreno assume a chefia do grupo, que começa a se esvaziar. Mas a
debandada é passageira. Logo o bando se
fortalece de novo e Moreno segue sua vida no cangaço ao lado de
Durvalina. Vez por outra ele retoma o contato com Lampião para
juntos discutirem estratégias e novas investidas dos grupos.
Nesses encontros, que se dão em coutos ou em plena caatinga, as
presenças de Corisco, Luiz Pedro e Zé Sereno, também chefes
de subgrupos, são imprescindíveis. Vale lembrar que os
subgrupos funcionavam sob a supervisão de Virgulino.
No intenso
calor das caatingas, saqueando ou fugindo das volantes, a vida de
Moreno e Durvalina era um verdadeiro inferno.
Nos poucos
momentos em que não estavam sob a mira dos fuzis inimigos, os dois
aproveitam as sombras da noite para fazer amor. Algumas
vezes nem podiam terminar o ato porque eram surpreendidos pelas
volantes e tinham que fugir às pressas.
Numa dessas
paradas, com o céu incendiado de estrelas, conforme lembra Durvalina,
a polícia não apareceu. E ali, no meio da mais profunda
solidão da caatinga, os dois se amaram intensamente. E vieram outras
noites calmas e abençoadas por Cupido.
Outras manhãs,
outras tardes, outras madrugadas. E haja amor entre os dois
cangaceiros. Corria o ano de 1937. Durvalina passou a mão sobre a
barriga e descobriu que estava grávida. No dia 03 de janeiro de 1938,
ela deu à luz um menino, nos carrascais da fazenda Riachão,
em Tacaratu. Quem serviu de parteiro foi o próprio Moreno.
Com muitas
dificuldades para criar o menino na vida de nômades que levavam, Moreno e
Durvalina decidiram doar a criança para o cônego
Frederico Oliveira Araújo, de Tacaratu. A criança foi batizada com o nome
de Inácio e ficou com o padre até o dia em que este morreu, 14 de janeiro
de 1944. Depois, Inácio foi levado à cidade de Paulo Afonso para conhecer
a verdadeira família. Hoje, Inacinho, como é mais conhecido, vive no Rio
de Janeiro, onde é oficial da Polícia Militar daquele estado.
A FUGA
Agora que o
cangaço não tinha mais horizontes, pois todos os seus grandes líderes,
como Lampião e Corisco, estavam mortos, só haviam duas
saídas para Moreno: se entregar à polícia ou fugir. O próprio padre Frederico
Oliveira fazia apelos insistentes para que o casal fugisse, pois do
contrário a presença deles em suas terras, caso fossem descobertos,
poderia trazer grandes problemas para o sacerdote. Moreno decidiu
atender os pedidos do padre, mas disse para Pedro Tiririca, porta-voz do
vigário, que precisava de ajuda para ir embora. O padre lhe mandou roupas,
calçados, um burro com mantimentos e 200 mil réis.
No dia 02 de
fevereiro de 1940, dia da Festa de Nossa Senhora da Saúde,
Padroeira de Tacaratu, os cangaceiros aproveitaram o silêncio da
noite e partiram. Tiveram, antes, o cuidado de trocar as
tradicionais roupas do cangaço por vestes comuns. Em
seguida, Moreno escondeu todas as balas num oco de pau.
Depois, emocionado, pegou o velho mosquetão que o acompanhou por
tanto tempo e o colocou, cuidadosamente, na fenda de uma rocha. Ali
também deixou o chapéu, mas não se esqueceu de arrancar da peça
uma moeda de ouro e uma libra esterlina que serviam
de adorno. Com o coração partido, Durvalina chorou copiosamente por
se ver forçada a afastasse do filho. Moreno, acostumado às
brutais estocadas do cangaço, também não resistiu e seus olhos
encheram-se de lágrimas. E ainda improvisou os seguintes versos: “Dentro
do meu coração/Nasceu um pé de flor/Mas toda folhinha murchou/por causa de meu
filho Inacinho/Que em Tacaratu ficou”. Matos têm olhos e paredes têm
ouvidos. Era preciso, portanto, muito cuidado nessa nova empreitada. O
peito protegido por uma medalha de Nossa Senhora e do Sagrado Coração de
Jesus, Durvalina, um longo xale a cobrir-lhe a cabeça e os ombros, era
a imagem perfeita de uma pacata senhora em sua monótona mas decidida
marcha rumo ao desconhecido. De nomes mudados, os cangaceiros pegaram as
margens do rio São Francisco, cuja rota seguia em direção a Minas Gerais.
Quando perguntavam para onde iam, a resposta era a sempre a mesma: “Somos
romeiros e vamos pagar uma promessa em Bom Jesus da Lapa”.
O autor deste
blog junto ao filho de Moreno e Durvinha, Inácio.
Depois de
quatro longos e extenuantes meses, alimentando-se de peixes, arroz de
leite, arroz solto, feijão, farinha, rapadura, tudo isso
servido por pescadores e ribeirinhos, sem falar nos mantimentos dados pelo
padre, chegam finalmente a Bom Jesus
da Lapa,
interior da Bahia.
Logo nos
arrabaldes da cidade, foram acolhidos na casa de uma senhora chamada
Gertrudes. “Durvalina chegou aos extremos de suas
capacidades, dentro do seu limite, enfadada, sentindo dores e o corpo com
um pouco de inchaço”, observa João Lima em seu livro.
A cangaceira estava há vários dias com a menstruação atrasada. Mesmo
recebendo o carinho e a atenção da dona da casa, que abrigou o casal por
uns dias, o estado de saúde de Durvalina se agravava cada vez mais. Chegou
um momento em que, enlouquecida, saiu correndo totalmente nua ao encontro
de Moreno, que estava descansando, sentado debaixo de uma árvore na frente
da casa. Ao perceber a cena, assustado, ele segurou a companheira e a
conduziu para dentro da residência. Dias depois, já restabelecida,
Durvalina parte em companhia de Moreno na carroceria do primeiro caminhão
que encontraram parado na feirinha da cidade. No bolso, os duzentos mil
réis que acabara de receber com a venda do burro. Seguiram rumo a
Montes Claros, Minas Gerais, mas desceram em Araçuaí, no
entroncamento, pois o motorista havia avisado que só ia até aquele
local. De lá foram furando de novo a estrada a pé. Doçura de
caminhada. O pior já tinham deixado lá para trás. Chegaram em Montes
Claros ao alvorecer do outro dia. Compraram umas coisinhas na
estação, com o dinheiro apurado na venda do burrinho e, em
seguida, tomaram a direção de Bocaiúva. Ali passaram um ano na
fazenda Taboa, onde Moreno trabalhava cortando lenha para a velha
Maria Fumaça, maquinazinha a vapor que até hoje encanta as pessoas.
Moreno queria
abrir novas veredas. Então, arrumou de novo as tralhas e partiu com
Durvalina para Augusto de Lima, onde trabalharam na
fazenda Curumataí, no povoado de Santa Bárbara, de propriedade do Sr.
Torval Sampaio, durante dez anos. Dez anos de trabalhos abençoados. Moreno
começou a crescer. Além de cultivar muita mandioca, ele extraía lenha e vendia
o produto para a Estrada de Ferro Central do Brasil. Chegou a ser o
maior fornecedor de farinha da região do Norte de Minas. Seus
negócios prosperam bastante. Depois, abriu uma casa noturna, que
permaneceria em seu poder até o ano de 2000, quando resolveu
“se aposentar”, aos 91 anos.
Hoje, ele vive
em Belo Horizonte ao lado da mulher e dos cinco filhos (além dos netos e
bisnetos), todos nascidos em Minas.
São eles:
Murilo, João, Nely, Dadá e Dinho. Inacinho, o primeiro filho deixado para
o padre Frederico criar, virou oficial de polícia e vive
no Rio de Janeiro. Aliás, o casal soube orientar bem os filhos. João, além
de poliglota (escreve e fala fluentemente vários idiomas sem nunca ter ido
a uma escola especializada), é maître de um grande hotel em Belo
Horizonte. Nely é funcionária pública, Murilo foi motorista e aposentou-se
como instrutor da empresa de ônibus Gontijo, e Dinho é comerciante. O
casal passou 66 anos, desde o dia em que deixou o cangaço, no mais
absoluto segredo, sem contar um dedo de sua emocionante história a
ninguém. A ninguém mesmo. Nem os filhos sabiam de nada. Em 2005,
adoentado, Moreno pensou que ia morrer e resolveu contar tudo para os
filhos. Antes, conversou com Durvalina sobre o assunto, mas ela não concordou
com o marido. Depois de muita insistência ela cedeu. A primeira
pessoa a saber dos fatos foi Murilo, filho mais velho do casal. Depois,
os ex-cangaceiros reuniram o restante da família e contaram, olho
no olho de cada filho, a longa e dramática vida que levaram no cangaço.
A emoção tomou
conta de toda a família e, como não podia ser diferente, as lágrimas
inundaram os olhos de todos. Nely começa a travar uma alucinada busca na
esperança de localizar o irmão Inacinho. Faz desesperadas tentativas. Liga
pra quase todo mundo em Tacaratu, cidade onde ele foi deixado
pelos pais com o padre Frederico Araújo. Depois de angustiantes
telefonemas conseguiu falar com a Casa de Cultura e, por
intermédio de dona Joana, fica sabendo que Inacinho vivia no Rio de
Janeiro e só aparecia em Tacaratu durante os festejos da
Padroeira. Quando Nely falou com o irmão pelo telefone e contou
a história dos pais, Inacinho pensou tratar-se de mais um dos
muitos trotes que recebera na ânsia de localizá-los. Então, para
convencer o irmão, Nely pôs Durvalina do outro lado da linha.
Finalmente
convencido de que Durvalina era sua mãe, ele desabou a chorar.
O encontro de
Inacinho com os pais e o restante dos irmãos e demais parentes, inclusive
os tios, irmãos de Durvalina, se deu no dia 05 de novembro de 2005 na casa
de Moreno, em Belo Horizonte. Parecia cena de filme. Aliás, o cineasta
cearense Wolney Oliveira vai aproveitar algumas imagens que fez desse
encontro para o filme que está rodando sobre o cangaço, intitulado
Lampião, Governador do Sertão.
Durvinha faleceu
em 2008 e Moreno em 2010"
AUTOR – Nonato Freitas – Jornalista, bacharel em Letras pela Universidade de Fortaleza (UniFor), poeta, pesquisador e servidor aposentado pelo Senado Federal
FONTE – Revista SENATUS – Maio 2008, Senado Federal, Brasília – DF.
http://blogdomendesemendes.blogspot.com