Por José
Romero Araújo Cardoso
Para Maria de
Lourdes Araújo Cardoso (In memoriam), Jerônimo Vingt-un Rosado Maia (In
memoriam), Benedito Vasconcelos Mendes, Ignácio Tavares de Araújo e a Wilson
Bezerra de Moura
Biró de Onofre veio ao mundo no dia das comemorações da proclamação da
República do ano de 1926, falecendo em dois de agosto de 1976, ambos os fatos
ocorridos em Pombal (Estado da Paraíba). Em 1961, ano que assinalou importantes
comemorações a nível local no que tangem ao centenário de emancipação política
da velha urbe sertaneja, conhecida como terra de Maringá, casou-se com Maria de
Lourdes Araújo Cardoso, de quem era parente próximo, a qual namorou por mais de
vinte anos.
Era filho de Onofre Benigno Cardoso, descendente de judeus sefaraditas que
saíram às pressas do litoral paraibano para o sertão, devido a chegada da
Inquisição, depois da expulsão dos holandeses do Nordeste açucareiro em 1654, e
de Francisca Martinha Cruz Cardoso, a qual fazia parte do ramo dos Rosado
surgido através do casal Jerônimo Ribeiro Rosado – Francisca Freire de Andrade
( Cf. ROSADO, Vingt-un. Informações genealógicas sobre alguns Rosado.
Mossoró/RN: Fundação Guimarães Duque, 1982 (Série C, Coleção Mossoroense, Vol.
CCXXIII) ).
Coincidentemente, seu grande ídolo, Luiz Gonzaga, encantou-se para o plano
espiritual no mesmo dia e mês do ano de 1989. O eterno sanfoneiro do riacho da
Brígida foi, por toda existência de Biró de Onofre, a referência musical mais
expressiva, na qual pautou seu imaginário enquanto fomento às noções de
pertencimento à região Nordeste.
Biró, bem como sua prima em segundo grau de nome Maria de Lourdes Araújo
Cardoso, conhecida por Lia de Lourdes, tiveram pouca instrução, cursando apenas
até o quinto ano do ensino primário. Naqueles tempos difíceis, era verdadeira
odisseia conseguir evolução nos estudos. Somente pessoas bem situadas na
estratificação social regional, ou alguns privilegiados pelo destino, caso de
Josué de Castro, por exemplo, autor de célebres obras sobre o problema da
nutrição, como Geografia da Fome: O dilema Brasileiro – Pão x aço, lançada
em 1946, conseguiram esse feito.
Lia de Lourdes ainda galgou alguns degraus no quesito instrução, pois dispôs de
curso teórico e prático para técnica em enfermagem, no ano de 1949, em João
Pessoa (Estado da Paraíba), cujo objetivo foi viabilizar exercício de funções
empregatícias no Posto de Puericultura da Legião Brasileira de Assistência que
o governo federal instalou em Pombal e que foi criminosamente fechado, quando
do advento dos anos de chumbo da ditadura militar instalada no País em primeiro
de abril de 1964.
O grande sonho de Biró era um filho homem para poder compartilhar o que sabia
sobre o sertão, seus segredos e mistérios, suas perspectivas, formas de
contatos humanos, enfim, tudo que dissesse respeito às terras adustas
ressequidas pelo sol escaldante e seu aliado incondicional, o vento alíseo
nordeste.
Dos três filhos que o casal Biró de Onofre – Lia de Lourdes teve, sobreviveu
apenas o nascido em 28 de setembro de 1969. O primeiro, a esposa abortou em
agosto de 1967. Uma “comemoração inusitada” em um casamento de um primo
legítimo foi o estopim para a perda do primogênito. Aconteceu no sitio Lajedo,
comunidade rural localizada em Pombal (Estado da Paraíba), pertencente à
família Menandro da Cruz, herança do rico fazendeiro Sinhozinho Vieira, pai de
Martinha Vieira da Cruz, esposa de Menandro José da Cruz. A companheira
inseparável de Seu Menandro pertenceu a um ramo familiar que ainda hoje é
conhecido em Pombal como os Maniçobas.
Tratava-se de um bêbado que disparava a esmo. Biró foi tomar as providências.
Desarmou-o, pois sabia perfeitamente todos os procedimentos a fim de
neutralizar o atirador. Lia de Lourdes, infelizmente, não suportou o estresse.
O segundo nasceu forte e saudável, também no mês de agosto, ano de 1968, mas
foi vítima da falta de cuidados. No Hospital e Maternidade Sinhá Carneiro, uma
garotinha de uns 13 anos tomava de conta do berçário. Uma queda e o bebê bateu
forte com a cabeça no chão. Não resistiu e morreu. Assim como o primeiro, o
casal havia decidido que deveriam colocar no segundo o nome de Severino Cruz
Cardoso Filho. Sonharam em seus devaneios e confianças e já o chamavam
carinhosamente de Birozinho.
Adepto fervoroso de uma cachacinha, hábito que manteve desde quando trabalhava
na pedreira de gesso das voçorocas da Espadilha, localizada no antigo termo de
São Sebastião, hoje município de Governador Dix-sept Rosado (Estado do Rio
Grande do Norte), época em que notabilizou-se a maior extração de rocha
sedimentar gipsita no Brasil, talvez na América Latina, Biró entregou-se à
boemia, tendo como símbolo maior a música Juazeiro, de autoria de Luiz
Gonzaga e Humberto Teixeira, não obstante gostar também das canções compostas e
interpretadas por Nélson Gonçalves, Orlando Silva e Vicente Celestino.
Não largou sua opção etílica de forma alguma, pois manteve-se incólume em sua
sina até seu trágico desencarne, vitimado por fenomenal descarga elétrica,
quando desafiava trifásica ameaçadora que tangenciava-se com as galhas de uma
cajazeira. Tragar sofregamente fumo DuBom enrolado em papel-seda ou em palha de
milho era outro vício que Biró tinha e que cultivou até o final de sua
existência.
Apesar de Juazeiro ter se transformado no hino oficial da pedreira de
gesso, o qual fazia-lhe recordar momentos marcantes em São Sebastião, era com A
Triste Partida que a emoção fluía por todos os poros. A magistral poesia
matuta de Patativa do Assaré, narrando a saga, as desditas e os sofrimentos
passados por uma família de retirantes tangida pela seca do Nordeste para o
Sul, levava Biró de Onofre às lágrimas. Quando chegava no refrão sobre o meu
pobre cachorro quem dá de comer, ele chorava compulsivamente. Lembro-me que em
certa época chegamos a ter mais de dez cachorros em casa, cada um inseparável
companheiro de caça de Biró de Onofre. Jolí e ligeiro foram os preferidos. Ele
nunca levou-me para uma caçada, pois dizia sempre que era perigoso levar
crianças e eu obedecia-o, não relutava, não pedia para acompanhá-lo, apenas
ficava esperando-lhe, apreensivo, pois sabia muito bem quem era meu pai. Se
desarmado era perigosíssimo, imaginem então com uma espingarda calibre 28 a
tiracolo e dispondo de mais de quarenta cartuchos em um bornal?
Nas festas do Rosário do mês de outubro, em Pombal, quando o profano, sem
sombras de dúvidas, torna-se extremamente mais visível que o sagrado, Biró de
Onofre entregava-se de corpo e alma à bebida. Inúmeras vezes saiu comigo pelas
ruas de Pombal, completamente bêbado, pois, para desespero de dona Lia,
tirava-me da rede onde dormia, colocava-me em seu pescoço e saia se
equilibrando, orgulhoso em mostrar aos amigos, muitos, incontáveis, que
finalmente realizara seu grande sonho de ter um filho homem para poder dividir
o que sabia sobre a terra dos desafios, a grande e soberana nação sertaneja.
Não vou dizer com absoluta certeza que ele era incapaz de fazer mal a alguém,
pois era uma fera. Domá-lo, quando se enraivecia, era tarefa hercúlea. Diversas
vezes eu o vi, quando dos pic-nics com os amigos e conhecidos, quebrar a cara
de incautos e fazer riscos de faca em peçonhentos que ainda existem no sertão e
que costumam exceder em certas práticas nocivas, como a falta de respeito para
com os semelhantes.
Eu o vi muitas vezes desarmar diversas pessoas, apetrechadas de faca ou com
arma de fogo. Ele avançava sem medo, sem titubear, pois quando menos
esperava-se ele estava em cima, irresoluto, sem pestanejar, dando o recado
àqueles que não sabiam que desconhecia o significado do substantivo masculino medo. Tio
legítimo de nome Romeu Menandro da Cruz, irmão de Francisca Martinha da Cruz
Cardoso, era do mesmo jeito, tendo chegado ao ponto de desafiar Sabino Gório e
seu bando sinistro no dia 28 de setembro de 1926, em Cajazeiras dos Rolins
(Estado da Paraíba). Sabino foi chefe de subgrupo do bando de Lampião, tendo se
destacado pela ferocidade e perversidade inauditas.
Não posso esquecer ainda da participação de Lourenço Cruz, enquanto sinônimo de
bravura, como defensor de Mossoró, postado de forma estoica e abnegada nas
trincheiras de Saboinha, ou seja, na estação da estrada de ferro, em 13 de
junho de 1927, quando Lampião e seus cabras invadiram a terra de Santa Luzia,
sendo rechaçados por parte da população local e pelos poucos policiais que
guarneciam a ameaçada cidade potiguar.
Eu, criança que não entendia muito bem o que estava acontecendo, ficava
distante, temendo pela vida do meu genitor, mas ele sabia se safar bem, pois
impor respeito através dos velhos métodos sertanejos era uma das especialidades
de Biró de Onofre. Tem horas, no presente, que parece até que um filme está
voltando em minha mente, com certas atitudes do meu filho mais velho. Romero
Júnior tem muitas coisas do avô. Jerônimo Vingt-un Menandro, calmo e
dócil, até o presente momento, parece ser o contrário do irmão afobado e
afoito.
Bruto ao extremo, papai certa vez despertou toda
rua Benigno Cardoso devido aos desdobramentos de uma caçada de tatu. Ligeiro,
cachorro de sua predileção, destemido e brabo como ele só, não dava espaço para
que Biró de Onofre cavasse o local onde se encontrava o pobre animalzinho
acuado. Com raiva, pegou o facão e rolou o rabo do desditado cachorro.
Desesperado, ligeiro desceu os lajedos do riacho do bode em desabalada
carreira, deixando rastros de sangue por onde passava. Papai conservou em casa,
até sua morte, o pedaço que ele arrancou do rabo do cachorro ligeiro.
Outro amuleto que guardava a sete chaves, o qual conservo comigo, é uma velha
fotografia do Vasco da Gama que ele trouxe quando foi trabalhar na Mineração
Jerônimo Rosado S. A., em São Paulo. Quando dos deslocamentos para o Rio de
Janeiro, aproveitou para adquirir souvenirs do time do coração, tendo aumentado
significativamente sua coleção de lembranças referentes à associação desportiva
nucleada em São Januário.
O restante da coleção sobre o Vasco da Gama que possuía não consegui localizar.
Nem preciso dizer que a opção futebolística do meu pai influenciou de forma
basilar na minha decisão referente para qual time torcer.
Na década de setenta do século passado, provavelmente no ano de 1974,
protagonizou feito inaudito e, creio, talvez inédito para um sertão
desacostumado a um certo tipo de fauna exótica, pois, na companhia do
inseparável amigo Curinha de Dr. Lourival, deram caça a um jacaré no rio
Piancó, conseguindo capturar o animal que havia sido retirado do seu habitat
natural na região norte ou no Maranhão e levado para Pombal, sendo jogado nas
águas do velho rio, tendo crescido consideravelmente, passando a impor medo nas
lavadeiras e frequentadores do balneário natural.
O rio Piancó foi um dos relicários sagrados da minha convivência com Biró de
Onofre, pois nos tradicionais banhos fui batizado perante as inclemências da
terra do sol, sendo uma das garantias de pertencimento ao velho chão sertanejo.
Sob pretexto de que eu tinha que me virar, Biró praticava certo tipo de
“esporte” por demais perigoso para uma criança, pois atirar-me em locais
profundos do curso d´água sertanejo consistia em verdadeiro divertimento para
ele. Conforme Dedé Espalha, de saudosa memória, amigo pessoal de Biró de
Onofre, o argumento de papai para tal prática era que eu deveria saber como me
virar perante os segredos e mistérios do rio Piancó.
Dona Lia, concentrada em seus trabalhos no Hospital Distrital de Pombal,
confiava-lhe para que tomasse-me de conta, ficando comigo em casa, pois,
conforme dona Lourdes, minha avó materna, “boa romaria faz, quem em sua
casa está em paz”.
Ledo engano. Papai aproveitava que a vigília materna não estava próxima e
tomava comigo o rumo das águas tortuosas do rio Piancó, levando-me de madrugada
para conhecer de perto as coisas do nosso sertão.
Ele improvisava pescarias noturnas, bem como diurnas, com tarrafas, com anzol,
com landuá, bem como com as mãos. A facilidade que tinha para pescar era
fantástica. Logo tínhamos peixes em grande quantidade. Tratá-los, temperá-los,
principalmente com manjericão, essência nativa do semiárido, e cozinhá-los,
também eram tarefas fáceis, pois Biró de Onofre sabia muito bem como aproveitar
os frutos de sua aptidão natural como pescador. Era comum naquela época
encontrarmos panelas de barro enterradas ao longo do leito do rio Piancó.
Existia um local que margeava o curso d´água que era conhecido por panela,
justamente por encontrarmos esses utensílios artesanais enterrados para que
houvesse viabilidade no cozimento de espécies da fauna aquática que eram
pescadas, bem como para o preparo do tradicional arrubacão à beira do rio.
Obter fogo através da fricção de paus era algo simples também para ele. A farra
de madrugada estava garantida. Eu me concentrava nos saborosos peixes e ele
tanto saboreava o que cozinhava como aproveitava para dar um gole na garrafa de
pinga que nunca esquecia quando “roubava-me” para fazer parte de suas aventuras
pela madrugada.
Não sei como, talvez atraídos pelo cheiro dos peixes sendo cozidos na panela de
barro deixada por “solidários boêmios”, bem como pelo odor, para mim
insuportável, da cachaça que não faltava quando papai estava por perto,
principalmente no rio Piancó e na bodega de Severino Pedro, logo o improvisado
acampamento estava repleto de apreciadores de uma peixada com pinga, sendo a
maioria moradora das redondezas que conheciam por demais Biró de Onofre.
Confesso com franqueza que ainda não conheci alguém mais conhecido do que ele
em seu torrão natal.
Depois de saciada a fome, geralmente vinha uma das partes que mais gostava.
Papai preparava uma cama com folhas de jitirana, tendo seu ombro como
travesseiro, momento que ele aproveitava para ensinar-me sobre o sertão,
dizendo-me de quem eram os cantos dos passarinhos que pululavam pela madrugada,
bem como cada uivo dos animais, apontando ainda, sem pestanejar, denominações
vulgares das espécies vegetais próximas.
Biró conhecia como poucos cada entoação do
canto da mãe da lua, das corujas, das peiticas, da temida rasga-mortalha de
canto considerado fúnebre no sertão, do bacurau, etc.
A variedade de peixes encontrados no rio Piancó, na época, era tão
impressionante, que vislumbrava a todos, enchendo os olhos a diversidade
fantástica. Era grande a quantidade de piaus, tucunarés, traíras imensas,
curimatãs, cascudos, piranhas, etc., que faziam a felicidade dos pescadores e
boêmios.
Essa riqueza piscícola era garantia de suplemento alimentar à população de
baixa renda que dependia bastante do que o rio Piancó oferecia. Essa profusão
de peixes também era verificada no rio Piranhas, o qual recebe o Piancó logo
além da forquilha das Junqueiras, seguindo seu curso para o vizinho Estado do
Rio Grande do Norte.
Certa vez, quando de uma pescaria noturna com amigos, da qual não participei,
Biró chegou em casa com o polegar direito quase partido ao meio. Sangrava
bastante. Em um gesto inopinado, resolveu desalojar com as mãos imensa piranhas
preta que escondera-se em uma afloração granítica localizada, na época, ao
longo do leito do rio Piancó. A piranha preta, feroz e perigosa, levou a melhor
na pescaria, terminando-a de forma tragicômica.
Biró conhecia ainda cada espécie de nossa flora tão ameaçada de extinção. Não
apenas fazia uma catalogação mental referente a cada árvore e a cada arbusto,
como sabia também a serventia de cada um para manter saudável a saúde do sertanejo
ou de quem quer que fosse.
Luiz Gonzaga foi muito feliz quando gravou extraordinária e belíssima canção, a
qual enfatiza de forma sublime que: “como é bonito a gente ver, em plena
mata o amanhecer”. Biró de Onofre mostrou-me o sertão de corpo e alma, através
de suas essências mais marcantes.
Parece até que ele se inspirava nesse hino sertanejo quando me levava para
conhecer a natureza que rodeia nossa nação, nosso espaço, hoje, infelizmente,
tão ameaçado pela intensiva ação antrópica.
É no amanhecer que o sertão se torna mais sertão, pois o cheiro inigualável das
árvores nativas e das águas dos rios é percebido pelo olfato mais sensível
daqueles que amam a região.
Quando das tradicionais vaquejadas ocorridas no mês de julho no Parque Manuel
Arnaud, em Pombal, Biró transformava-me em um vaqueiro-mirim, pois fazia
questão que eu ostentasse chapéu de couro, luvas, chibatinha e outros adereços
integrantes da indumentária do grande herói do sertão.
Exímio aboiador, resultado de
suas lidas no trato com o gado no Carro Quebrado, denominação toponímica da
propriedade de Onofre Benigno Cardoso, herança do velho ourives Benigno Ignácio
Cardoso D’ Arão, Biró desfilava comigo pelo chão de terra batida do Parque de
Vaquejada pombalense, como troféu, entoando a sonoridade laborial do vaqueiro
sertanejo.
Entusiasta da nossa cultura popular, levava-me à tradicional feira
dos sábados em Pombal para ouvir cantadores e repentistas declamarem versos do
Pavão Misterioso e de outros clássicos da literatura de bolso nordestina. Os
folhetos de cordel foram despertando-me a atenção em razão da forma como
viabiliza a produção poética do autêntico literato regional, pois a maioria é
composta por seres humanos desprovidos de recursos, sem condições de publicar
livros refinados.
A feira foi sendo-me revelada espetacularmente, pois tudo que havia da produção
artesanal sertaneja encontrávamos com facilidade naquela época. Selas
impecavelmente trabalhadas, arreios, botas e chapéus de couro, bem como de
palha, chocalhos, feitos cuidadosamente por hábeis ferreiros, panelas de barro,
jarras para colocar água, aguidares, lamparinas, quartinhas, bornais e peias de
couro, etc. eram comercializados na feira de Pombal. Hoje, a globalização mudou
muito o rumo das coisas, modificando os produtos que encontramos à disposição,
não obstante ainda encontrarmos muito da cultura popular de nossa região sendo
vendido no lócus livre da comercialização pombalense.
Incontáveis vezes fizemos o trajeto Sousa – Governador Dix-sept Rosado –
Mossoró e vice-versa, nos vagões das composições férreas da saudosa estrada de
ferro inaugurada em 1915. A velha terra do alho, do gesso e da cal era,
geralmente, o destino mais procurado, pois marcas indeléveis estão fincadas por
lá de forma mais efetiva e proeminente, não obstante ser batizado em Mossoró e
na capital do oeste potiguar estarem fixados inúmeros familiares, tendo em
vista que após a fragmentação e a marginalização das explorações de gesso e da
cultura do alho e da cebola às margens do rio Apodi-Mossoró a migração de
inúmeros dix-septienses para a segunda aglomeração urbana potiguar tenha se
efetivado de forma intensa.
Festas de São Sebastião em Governador Dix-sept Rosado constituíram-se em um dos
motivos de deslocamentos da Paraíba para o Rio Grande do Norte nas companhias
de Biró de Onofre, de dona Lia e de dona Cora, sendo que essa última era minha
tia paterna e mãe de criação.
Todas as noites, depois que dona Lia dava-me banho, ficava sentado em seu colo
para esperarmos a chegada do vento refrescante de Aracati. Pedia-lhe para
contar-me histórias do tempo da pedreira. Lembro-me bem de uma, referente a uma
ema que apareceu nas imediações da exploração de gesso.
Disse-me que chamou um conhecido, compadre Bevenuto, para abater a imponente
ave, conhecida como avestruz das Américas. Conforme relatou-me, era tão grande
que foi preciso ser transportada nas costas de um burro.
Naquela época era comum bandos de emas e varas de porcos-do-mato serem vistos
na chapada do Apodi. Hoje, infelizmente, não existem nem rastros desses animais
nos seus habitats naturais. Foram extintos pela irresponsabilidade humana.
Naquele fatídico dia dois de agosto de 1976 eu parei, atônito, pois foi-se para
sempre meu herói, meu ídolo, meu bandido, meu pai amado de quem nunca
esquecerei. Hoje, quarenta anos sem a presença física de Biró
de Onofre no plano terrestre, as transformações são intensas e visíveis no espaço
que tanto amou.
O rio Piancó continua poluído, imundo, cheio de dejetos de toda espécie. Os
peixes não existem mais em tamanha profusão como naquela época e os pássaros
migraram para longe ou simplesmente desapareceram por que, entre outros motivos,
a mata ciliar nativa foi derrubada para servir a fins diversos.
O que não muda é a saudade de abraçar novamente meu pai e dizer-lhe o quanto o
amo e o quanto sou agradecido por todos os momentos que passamos juntos, pois
foram importantíssimo para que meu fascínio pelo sertão se efetivasse da forma
mais proeminente possível.
José Romero
Araújo Cardoso. Geógrafo. Escritor. Professor-Adjunto IV do Departamento
de Geografia da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade do Estado
do Rio Grande do Norte. Especialista em Geografia e Gestão Territorial e em
Organização de Arquivos. Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Sócio da
Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço (SBEC) e do Instituto Cultural do
Oeste Potiguar (ICOP). Filho único de Severino Cruz Cardoso (Biró de
Onofre) e de Maria de Lourdes Araújo Cardoso (Lia de Lourdes).
http://blogdomendesemendes.blogspot.com